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A vida é como uma roda

  

Dizem os mais antigos que filho de peixe, peixinho é. E sendo assim, no dia 23 de janeiro de 1936, dona Maria Pequena Malvadeza, capoeirista famosa nas vizinhanças da pequena localidade de Passagem do Teixeira, no recôncavo baiano, e mulher do também capoeirista José Martins dos Santos, o José da Pemba, botavam no mundo o pequeno Jaime Martins dos Santos. Neto de Pedro Virício Curió e detentor da herança de Besouro de Santo Amaro, Jaime (ou Curiozinho, como era mais conhecido pelos amigos e parentes) desde muito cedo percebeu que a vida é como uma roda: para ficar até o fim do jogo é preciso ter ginga, malícia, força, esperteza, inteligência, bravura e respeito. Às características familiares foi acrescida a experiência de uma lenda da capoeira: mestre Pastinha.

 

   Assim como no jogo, a vida também deu muita rasteira no pequeno Curió. Logo cedo sua mãe faleceu e seu pai casou-se mais uma vez, transferindo-se definitivamente para Salvador. A convivência com a madrasta era difícil. Havia o despeito com o filho da outra e, aos 7 anos de idade, Curiozinho fugiu de casa. Para conseguir se sustentar, o capoeirinha trabalhava como vendedor de balas e de mingau. A vida da rua era dura e o menino foi internado numa instituição para correção de menores. Dessa época, Curió lembra das surras e do fato de não ter se tornado bandido porque – segundo ele – Deus não quis. Numa das fugas organizadas pelos meninos maiores, Jaime decidiu voltar para a casa e mudar de vida. O retorno ao lar paterno não foi bem recebido e, motivado por mais uma surra, Jaime fugiu novamente. Nas ruas, o menino conhecia pessoas e fazia visitas à cidade dos seus avós, passeando por diversas localidades do recôncavo.

A vivacidade no olhar da criança, o jeito meigo e a rapidez em aprender fizeram com que Jaime fosse se empregar em casa de família. Na residência do juiz Elieser Baleeiro, Curiozinho começou a se educar e foi batizado. Mais tarde, na casa dos Prado Barreto, o rapaz teve uma educação formal e começou a despertar para uma das suas vocações: a culinária. Por gostar de comer e ser muito observador, em pouco tempo o garoto começou a dar provas do seu talento na cozinha. As aptidões de Jaime não passaram despercebidas pelos donos da casa, que lhe conseguiram um emprego como servente no Hotel da Bahia. Em pouco tempo, Jaime foi ascendendo na profissão e conheceu as atividades de ajudante de açougue, de padeiro, de cozinha, cozinheiro e, finalmente, chefe de cozinha.

 

Herança legendária
 

O espírito aguerrido do rapaz não o afastou da herança dos antepassados e, enquanto se aperfeiçoava na cozinha, Jaime foi crescendo na capoeira sob a orientação do lendário mestre Pastinha. Mas a "vadiagem" (como os mais velhos chamavam a capoeira) não era a única arte marcial a encantar Curió e assim o capoeirista começou a treinar caratê (onde permaneceu por 18 anos), boxe (durante 12 anos) e luta livre. "Todo o meu tempo era ocupado com inúmeras atividades, nunca parava, nunca tinha tempo sobrando para ficar pensando besteira", lembra Jaime Martins dos Santos.

A voz mansa e o jeito calmo não escondiam a bravura do jovem e, como todo bom capoeira, por inúmeras vezes o mestre Curió teve que dar golpes de esquiva na morte. Uma dessas situações aconteceu no município de Candeias. Solicitado para preparar o banquete de um casamento, o então chefe de cozinha só conseguiu receber a primeira metade do valor do serviço. Quando foi cobrar do cliente a segunda parte do que lhe era devido, Curió foi agredido verbalmente e chamado de negro atrevido e descarado. "Naquela época não levava desaforo para casa e parti para a briga", relembra. Revoltado, o mau pagador resolveu apelar para a covardia e chamou algumas pessoas para "dar cabo" do cozinheiro. Apesar dos 12 tiros que o mestre Curió afirma ter tomado, ele sobreviveu para contar essa história e lembrar com um sorriso maroto as outras tantas bravatas em que já se envolveu.

 

Superando mágoas
 

O tempo foi passando e o mestre Curió foi ganhando maturidade para superar as dificuldades e esquecer as mágoas familiares. Logrando a dor do passado e encarando o futuro com força e vontade, Curió fez as pazes com o pai, que continua vivo e mercando na Feira de São Joaquim. O perdão foi estendido também aos que perseguiram o mestre na sua carreira como cozinheiro. "Eu ia muito bem no trabalho até que descobriam que eu jogava capoeira e me demitiam", relembra o mestre. No seu último emprego, na cozinha da Pellikan, o chefe inclusive lhe falou claramente que o cozinheiro não precisava de emprego, pois vivia viajando de avião para apresentar a capoeira no mundo e era famoso, já que desde os 22 anos de idade saía na capa de jornal e revista.

 

   Cansado de tanta hipocrisia, o mestre Curió decidiu que viveria só de capoeira e que dedicaria os seus dias a seguir os ensinamentos dos seus antepassados e do seu mestre. Pai de 21 filhos e vivendo com sua terceira mulher, a ex-ajudante de cozinha Joana Pereira, hoje Curió dá aulas de capoeira na Escola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos do Mestre Curió, na Escola Mestre Pastinha (ambas no Pelourinho), nas oficinas do Ara Ketu e ensina gratuitamente na comunidade de Colina do Mar, em Paripe.

 

   Na capoeira, o pequeno Jaime Martins dos Santos contou com inúmeros mestres. Primeiro foi o pai e o avô, depois Curiozinho foi aprender com o melhor e deixou-se levar pelos ensinamentos de Pastinha. O respeito e o amor ao mestre fizeram com que Curió – junto com o colega Papo Amarelo – mantivesse a academia próximo à Ladeira do Ferrão funcionando até não restar mais aluno. Foi Curió também quem ajudou a esposa de Pastinha a conseguir recursos para cuidar do mestre no Abrigo D. Pedro II, até a sua morte.


 http://www.correiodabahia.com.br/2000/10/10/noticia.asp?link=not000009045.xml

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