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Crônica: O MESTRE DE CAPOEIRA

"…a cobra não tem braços,
  não tem pernas, 
  não tem mãos e não tem pés,
  e como ela sobe e não subimos nós…." 1.     
Aquela era uma noite de festas  um tanto profano, um tanto religioso: a antepenúltima noite  das esmolas do Divino. Os presentes em tudo variado: das distâncias;  das idades; dos cabedais. Mestre Benicio buscava  conversas entremeadas de filosofia e misticismo  – para agradar, atrair e alegrar a  todos. Pediram-no para falar da última viagem, da Capoeira  em Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro – dos feitos dos Mestres.
 
– “O Mestre de Capoeira antes não dependia das cidades, pós-libertação é necessariamente urbano-periférico. Analfabetos ou pouco letrados, assumem o domínio do povo – dos “capoeira” aos presentes, passando pelos da circunvizinhança. Quase todos vivem num ambiente limitado: numa visão missionária; há os que imprimem viagem mundo afora. Conforto restrito, quase de pobreza material absoluta; de tão absoluta a compensa no seu imaginário pela fama, também absoluta – adquirida num encanto intelectual não se sabe de que origem; mas encanta, cativa, prende os praticantes, como os presentes quaisquer que sejam”.
 
– “A Capoeira não tem fim,  não teve começo. Já mestre – é  a primeira distinção conferida a uma pessoa em reconhecimento
pelo  fazer, ensinar e disciplinar – do plantio  ao cultivo; da caça à pesca; da dança às crenças”. Mestre Benício, professor, cantador e “contador”, negro de família forra, alforriada pelos Castro Alves”, como gostava de dizer. Dizia para enfatizar os valores de ser livre, conversava em zigue-zague, assim atraia a atenção de todos, e a todos satisfazia.
 
Ainda noitinha, frio de maio cortando, vento soprando leve mas constante, fogueira já com labaredas altas ajudando o clarão da lua. O anfitrião despacha mais uma rodada de licores em doses e espécies variadas – jenipapo, caju, mangaba, até de “pau-ferro” – “iche Maria!”.
 
Aduziu mais algumas considerações a este perfil  e contou-nos da simbiose homem-arte-crença. – "Adquire  ele todo o orgulho do seu estado, da sua condição. Recebe  dos seguidores, dos freqüentadores,   uma marca de superioridade do seu meio; uma marca de elevação, de supremacia, de predomínio, que nem um outro ser humano  consegue.
 
Mestre Benício a nada definia a tudo comparava. Como todo bom “capoeira”, quer trazer todos para o centro da conversa, precisa provocar uma discussão, dá margem à participação, dar a si a vaidade da contenda:
 
– “Toda relação de obediência pressupõe uma troca que traga um ganho ou afaste um medo”. Muitos dos presentes aproveitaram para cada um dar uma pitada. Platéia variada, uns lidos e corridos, outros nem tanto, conversa solta…
 
– “Mesmo a nossa obediência para com Deus requer  troca. Troca pela vida eterna; a volta da saúde  meio abalada…” Chamando
mais para o centro da Roda, provocando bem ao feitio de quem melhor conhece a alma humana – “para com  o  f e i t i c e i r o”, falou pausado – “dono de forças situadas entre o divino e o temporal; entre o ético e o safado –  a obediência está na base de trocas de mesmo calibre  – à volta da mulher traidora, safada, porém gostosona;  o namoro com o filho do vizinho; a traição com o primo, paixão de meninice, com quem não se casou impedida pelos pais.” Certa inquietação. Agora sim, chegou a hora! –  “Quem mais recorre ao feiticeiro é a mulher, quem mais faz promessas a todos os santos – é a mulher, quem antes enjoa do cônjuge é a mulher…” – provocou, para completar – “O Mestre de Capoeira encerra em si  o nível de obediência mais sadio, a mais voluntária das  obediências entre pessoas, fora das relações estritamente familiares. Entre ele e os seus não há um apelo, uma oferta, uma promessa. Na maioria das vezes ele, o Mestre, é o mais pobre do seu meio”.
 
Diante do sorriso geral, um cuxixo e outro,   prosseguiu impassível, não diria sádico, mas sem um  gesto de dó:
 
– "Na sua grande maioria, como que errantes, e os são; esguios pelos exercícios estafantes e o mau passadio;  nutrem-se como agentes da consciência do prestígio; dos  valores da inteligência voraz, iletrada  – a construir  uma FAMA  que o alimenta – apoiados na reverência dominadora, de um lado; de outro na crença que só é possível em quem julga ser responsável por uma banda do Mundo". Depois de tecer explicações do caminho percorrido, completa – "No passado muitos eram sapateiros, estivadores e tantos ferreiros, com forjas ordinárias no quintal acanhado da casa rota; alguns alfaiates – Mestres de Capoeira são vaidosos, gostavam de ostentar “as mãos finas”;  hoje,  tantos são pedreiros, serventes, pequenos comerciantes, carpinteiros; tantos meros biscateiros. Os que têm (tinham) meios de vida, afora a Capoeira, a tudo abandonam, se um projeto lhe surge – viagens noutras paragens, no estrangeiro, nos navios, para "levar a tradição".
 
Depois   de longo silêncio, João Pequeno, garimpeiro não negro, deu uma pitada: "Homens contaminados pela magia poderosa da música; pela perspectiva a que a luta vencida nos conduz; pela vaidade da exibição física; pela nobreza com que nos afaga o poder intelectual.”. Pedindo desculpas devolve a palavra ao Mestre Benício, que vai falando, agora dos seus receios –”.
 
– “De quanto ganha, pouco se sabe. O que se vê – é  ser muito inferior ao valor do  trabalho efetivo  realizado. Sempre pronto a acudir em  cada biboca. De concreto é que tudo faz pela arte, os elogios, pela admiração do povo; após cada luta,  cada apresentação continua como antes. Eu nunca quis saber  como chega em casa, de mãos vazias, a cada dia. Como patrimônio ou consolo – sempre querido, cercado; trilhando soberbo e doce. Na morada, afora grande acervo de áudio,  vídeo e escritos variados – nada tem que passe de um mocambo. Muitos viveram assim; muitos vivem ainda assim”.
 
– Dona Vitória Gama, mulher negra, professora, garimpeira, cantadeira e rezadeira, sempre pronta a ajudar a Mestre Benício com as datas e os nomes dos autores de cada feito, mantinha-se calada e sentada. Em nada coubera uma data, um nome, conversa genérica. Temperou a guela e interveio:
 
– “A superioridade cria inimigos, este é o mais geral princípio da guerra”. Consentida a intervenção, com gentilezas e mesuras pelo Mestre e  interesse pelos presentes, vai explicando o que conhece bem, estudos variados – Guerra e Revolução.
 
– “Não pensem que as relações na Capoeira são mornas. Não. São estremecidas. Não raro ao extremo. Nos encontros entre
 
Mestres, os mimos não duram mais que poucos minutos e  já surgem as alfinetadas –  tão maliciosas, sutis, para atingir a fama do outro; quanto cuidadosas, para zelar da pessoa.  A fama é o objeto da contenda. Esta é das diferenças entre guerra e Revolução: a renúncia à  superioridade faz a Revolução; a luta pela superioridade, causa a guerra”. (2)
 
– “Embora toda cultura seja conservadora, sendo a capoeira extremamente conservadora, pelo seu caráter igualitário  eu diria ser a Capoeira a única ação revolucionária no Brasil. A que avança, embora lentamente, como soe ser”. E finalizou –  “ao “capoeira” para com seu Mestre – nada lhe é mais de ofício que  engrandecer-lhe;  que ouvir de outros referências elogiosas”. E alfinetando, para manter a tradição –  “Eu gosto é de elogios e não de crítica, por isto procuro fazer bem feito, proclama cada Mestre”, finalizou.
 
Foguetes no alto do Morro Azul, (absurdo) o mais vermelho dos lajedos –  estão chegando, as esmolas, a bandeira, o Divino…
 
O velho Mestre vai arrematando da última viagem – “felizmente vi, soube e até conversei, com alguns Mestres doutores, de anel no dedo e tudo,  e olhe que todos novos, 30 a 40 e poucos anos.  Não me lembra de ninguém já nos 50 anos. Tem tantos já escrevendo livro, quem diria?”. E tacou nas notícias que o empolgavam – “Mestre dando aula na Inglaterra – ensinando mesmo, especializações diversas, nas Universidades, para formar doutores também”. E completa – “soube também de muitos “capoeiras”, entrando nas universidades;  como vi, eu próprio, muitos das universidades entrando na Capoeira…", parou, voz impostada. Notava-se um fio de esperança naquele negro “de família forra”, como dizia –  “Meu Deus, cinco séculos de escravidão e descaso!!!
 
 
Nota do autor: Validando as últimas afirmações de Mestre Benício, neste semestre, julho/agosto, o meu Mestre João Coquinho, Mestre do Grupo Berimbau Brasil, 42 anos de idade,  e quase isto de Capoeira; de muita luta e igual quantum de dificuldades, botará anel no dedo, bacharelando-se em Ciências Contábeis, aqui em São. Em data ainda não acertada.
 
 1 Canção de domínio público, africana;
 2 “Os Jacobinos Negros”,  CLR James.

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