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Mestre Marinheiro: “Aqui, sou o Barack Obama”

Mestre Marinheiro: “Tudo funciona pelo querer e amor ao próximo”

Sábado cedinho, o menino desperta e vai com o irmão mais velho para o saveiro que sai do pequeno píer de Salinas da Margarida rumo a Salvador. A embarcação vai carregada de frutos do mar para vender a comerciantes do Mercado Modelo.

O irmão é marinheiro do saveiro, e o menino vai olhando o mar da Baía de Todos-os-Santos, ansioso para ver chegar a capital, onde no pátio do imenso  mercado o som do berimbau e o cântico de negros impõem-se na balbúrdia como algo hipnótico.  

É fim da década de 60 (século XX) e na capital a capoeira ferve sob o sol do meio-dia no mercadão. O menino contempla os grandes da capoeira que ali fazem roda: mestres Cacau, Dois de Ouro, Gajé…

“Eu vi a nata da capoeira jogando”, lembra Valcir Batista Lima, hoje, na altura dos 47 anos e mais conhecido como mestre Marinheiro na comunidade onde mora, no Engenho Velho da Federação. Mais precisamente na Baixa da Égua, um dos locais onde a violência é grande e jovens se expõem ao tráfico de drogas.

“Eu vi muitos jovens expostos nas esquinas. Muitos entraram na capoeira e se encaminharam na vida”, diz Marinheiro, que já ensinou a arte da capoeira a 500 pessoas e formou cinco  mestres.

No miolo do bairro, construiu o centro de cultura Ginga e Malícia, vinculado à União Internacional de Capoeira Regional (Unicar), e hoje também um dos Pontos de Cultura identificados pelo Ministério da Cultura (Minc), que investiu no local R$ 180 mil. É ali que muitos jovens e crianças, por meio de atividades culturais, conseguem driblar a escolha de um futuro inseguro. Pelas ruas do bairro, todos o respeitam: “Aqui, sou o Barack Obama”, brinca.

Infância – Marinheiro sabe bem o que é nascer pobre. Ele lembra de quando, menino, levantava às cinco da madrugada para ajudar a mãe, dona Regina Célia, a mariscar nos mangues de Salinas para ter não só o que comer mas também o que vender e sustentar a família. Foi assim até a mãe  morrer. O pai, que vivia de biscate, há tempos passava dias em Salvador. A irmã mais velha, Rosa Maria, nem pensou duas vezes para trazer os meninos para a capital, em 1975.

Foram morar no Engenho Velho de Brotas. Tentava frequentar a escola, mas a vida urgia e passou a carregar sacola de mercado para “as madames”. “Ia pouco para a escola porque tinha a necessidade da sobrevivência”. Quem conversa com Marinheiro hoje, porém, não diz que ele ainda tenta concluir o 2° grau.

O fato é que Valcir fez de tudo um pouco para ganhar dinheiro, até como assistente de cozinha de restaurante chique no Hotel Meridien trabalhou. Também cozinhava no Sesc ali de Piatã. Era quando via os salva-vidas treinarem, na piscina olímpica do clube.

Um dia, no ano de 1983, decidiu fazer o teste para ser salva-vidas. Passou numa das cinco vagas entre 80 concorrentes. Foi na praia que conheceu mestre Orelha, também salva-vidas, que o incentivou a entrar para a capoeira.

Foi ali na Associação de Capoeira Regional, no Pelourinho, que Valcir conheceu mestre Bamba, que viria a batizá-lo como Marinheiro – o porquê da alcunha é guardado a sete chaves por Bamba –  e criá-lo também mestre. Muitos anos se passaram entre o ofício de salva-vidas, a capoeira e o casamento que lhe deu três filhos: Valcir Junior, Amanda e Luanda – esta, que é o braço direito do pai no centro de cultura na Baixa da Égua. Mestre Marinheiro já nos anos 90 se esforçava em busca de espaço para ensinar capoeira à meninada do bairro, onde até hoje mora.

Conseguiu o primeiro espaço na Escola Municipal do Engenho Velho da Federação. Mas o sonho de Marinheiro era ter uma sede própria. Foi num dos encontros de capoeira com estrangeiros – sim, Marinheiro sempre recebeu gente da Europa e EUA para ensinar a capoeira –, que conheceu um inglês, Henrique Franklin, que se tornaria um dos seus melhores amigos e seu “amuleto da sorte”.

Quando Henrique voltou para a Inglaterra, tratou de promover festas nas quais arrecadou fundos em prol da instituição de Marinheiro. Foi assim que ele comprou o terreno e construiu o galpão. Mas a capoeira foi apenas o motivo para transformar o local num verdadeiro centro de cultura, arte e cidadania. Ali os jovens aprendem informática, teatro, capoeira e tem até brinquedoteca para crianças.

Marinheiro já viajou à Europa mais de 10 vezes. Numa dessas viagens batizou o filho de Henrique. Teve oportunidades, se fosse de seu feitio, de ganhar dinheiro. Mas os planos de Marinheiro são pela coletividade. Seu ganha-pão ainda é o ofício de salva-vidas.

“Tudo funciona pelo querer e amor ao próximo. Não é discurso bonito, é prática”, diz. São muitos os projetos do centro de cultura precisando de dinheiro. Mas desânimo é palavra que não existe no vocabulário de Marinheiro.

Fonte: http://www.atarde.com.br/cidades

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