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O Elo Perdido – Parte 2

A capoeira e os capoeiristas até 1930, estavam nas favelas, nos guetos, nos cais, nos armazéns, nas festas populares, nas feiras, com sua natureza combativa, irreverente. Não havia estilo de capoeira e nem escolas. Aprendia-se no dia-a-dia, nas rodas, nas feiras. Era coisa de vagabundos, marginais, negros… Éramos assim rotulados.
Os capoeiristas eram todos de uma mesma classe, classe inferior. Cada qual com seu jeito próprio de expressar fisicamente suas amarguras ou alegrias, porém com os mesmos objetivos culturais,mesmo que inconscientes, que era ser e existir com dignidade.
 
Promoveram fortes conflitos com a polícia, desencadeando uma verdadeira guerra à sociedade da primeira classe. O que era considerado pelos poderosos, bagunça, desordem, carnificina, para os capoeiristas era nada mais do que reivindicação dos direitos básicos. Era o nosso sindicato. Por isso, tentaram aniquilar os capoeiristas com prisões, assassinatos, leis federais, deportações, aliciações, como fazem nos dias de hoje, com os que ousam liderar qualquer movimento contra os interesses dos poderosos, são assassinados, comprados ou desmoralizados.
 
Os capoeiristas estavam apavorando a sociedade branca por terem espírito combativo, resistente, não se intimidavam, nem se vergavam diante do sistema. E a capoeira continuou combatendo, reivindicando, revidando, porém dissimulada, com sua identidade avessa, marginal, temida, respeitada. Os poderosos, na tentativa de suprimir a capoeira e os capoeiristas, passaram a conhecer o poder combativo e resistente dos mesmos. Não tendo êxito com pancadas e assassinatos, gerando sempre mais revolta e revide, mudaram a tática de combate à capoeira. Infiltraram-se, nos adotaram, e com a falsidade de sempre, de que iriam nos incluir, nos respeitar, simplesmente nos amansaram, enfraquecendo os ideais da luta cultural e quase nos matam o espírito.
 
Essa adoção da capoeira pelo governo teve início na época em que Getúlio Vargas foi o ditador do Brasil, na década de 30. Sabemos que os políticos representam os poderosos e tudo que fazem é para simplesmente se manterem no poder e darem continuidade ao covarde projeto de seus antepassados: “comer sem trabalhar”. No momento em que nossos reais inimigos nos adotaram, o conflito que era declarado, entre as elites e os da classe inferior, que antes invadiam, pilhavam os candomblés, reprimiam os capoeiristas, na tentativa e suprimir toda cultura afro, ficou mascarado. Aparentemente não havia mais conflito, a capoeira passaria a ser esporte nacional, passando a ser consumida pela classe média, que eram os filhos dos opressores. Sendo a capoeira um embate à eles mesmos, jamais poderiam compreender a fundo o que representava a capoeira para os que estavam na miséria. Só compreende realmente, quem sofre na pele, o que não era o caso da classe média. Tanto é verdade que Jair Moura, escritor e capoeirista, um dos poucos que o Mestre Bimba graduou, diz que “a capoeira antes de Bimba era instrumento de ataque e defesa manejado principalmente (na Bahia) por desordeiros indisciplinados das camadas mais humildes da população e que a maior contribuição de Bimba foi transformar a capoeira num esporte que granjeou muitos adeptos, além da criação de uma verdadeira metodologia para o aprendizado da luta dos negros, tornando-a um verdadeiro curso de educação física”. Verdadeiro absurdo, Jair Moura desvaloriza toda capoeira antes da adoção pelo governo, não percebe a face de resistência cultural, julgando-os simplesmente desordeiros. Não foi Bimba quem tirou a capoeira da “margem” e sim o Governo, para sua conveniência. Não estou culpando-os, tinham outros valores, comiam, estudavam, viajavam, iam ao teatro, eram direcionados para leitura etc… Muitos, até acredito que se sensibilizavam com tamanha desigualdade, mas muito longe de compreenderem de fato tal contraste.
 
O que me entristece é saber que muitos da classe inferior, que conseguiram com muito esforço e sacrifício estudarem, quebrando a regra da ignorância, foram absorvidos totalmente pelo sistema. E hoje cheios de títulos, trabalham para distanciar cada vez mais a capoeira de seu objetivo, transformando-a em simples atividade esportiva. Deturparam o trabalho do Mestre Bimba, que foi o escolhido pela elite para servir de modelo referência para todo esse processo de descaracterização dos reais objetivos culturais da capoeira.
 
Mestre Bimba foi um grande lutador e quando foi chamado para ir ao Palácio do Governo da Bahia, não tinha dúvida de que iria ser preso. A capoeira até então era “coisa” de malandro (da perspectiva da elite) e uma ameaça aos bons costumes. Sendo o Mestre negro e capoeirista, não restavam dúvidas quanto à sua prisão. Mas foi surpreendido pelo Interventor Geral da República, convidando-o para exibir sua capoeira aos “ilustres convidados”. Em 1937 então, Mestre Bimba foi autorizado pelo Governo a ensinar a capoeira em recintos fechados, tirando-a da “marginalidade”. Não é de estranhar tanta flexibilização por parte do Governo? Com certeza fizeram exigências, resultando em uma nova tradição para capoeira, tradição essa que não a associasse ao caráter marginal da então capoeira que era jogada e ensinada inclusive pelo próprio Mestre Bimba, antes de toda essa falsa abertura pelo Governo.
 
Mestre Bimba foi e sempre será para nós um grande capoeirista, mas para as elites não passou de inocente útil aos seus interesses. A capoeira saiu dos guetos, não os capoeiristas, tanto é verdade que depois de usado, Mestre Bimba foi descartado pelos mesmos, vindo a morrer na miséria como todos os de sua classe.
 
A classe média passou a consumir a capoeira, enxertaram seus valores, que não eram os valores dos que estavam nas favelas e promoveram a capoeira na versão burguesa mundo afora. Esse é o modelo de capoeira que ganhou espaço na mídia, visibilidade e apoio, em detrimento da capoeira cultural dos resistentes velhos mestres. A capoeira adentrou a sociedade, porém sem espírito, totalmente desprovida de suas raízes, sem identidade, sem causa, sem ideais.
Essa abertura do Governo à capoeira, não foi conquista dos capoeiristas, se fosse realmente nossa conquista, a capoeira não precisaria ser remodelada para o consumo das classes abastadas, perdendo totalmente a identidade.
 
Precisamos resgatar urgentemente para nossa expressão física, o espírito, os ideais por melhores condições de vida, por equilíbrio social entre os que trabalham e os que mandam trabalhar. Esse é o elo perdido, esses são os objetivos. Caso contrário, continuaremos a reproduzir o sistema social escravista, dentro de uma arte libertária.
 
Não estamos incluídos no contexto social, uma guerra social mascarada, onde as armas são as canetas e nossa total desarticulação. Com isso estamos permitindo que usem o nosso sindicato contra nós mesmos. Se não resgatarmos esse elo, a capoeira não terá mais o objetivo que teve no passado, que era combater a desigualdade social.
 
Para que possamos entender a capoeira de hoje, temos que urgentemente nos informar, ler as histórias do passado, para nos situarmos no presente. Sei que para nós é muito difícil ler, não somos educados para leitura e sim para televisão, propositalmente. A televisão trabalha para os ricos, adentra nossos lares, maquiando a escravidão, incentivando o racismo, impondo valores, modas, hábitos, atitudes, padrões. Onde há uma televisão ligada não há diálogo, ficam todos consumindo novelas e outros programas que nada contribuem para nossa vidas. Estamos descendo rio abaixo sem sabermos dos fatos anteriores, das escolhas feitas no passado, quem as fez e em que circunstâncias foram feitas, das quais estamos sofrendo as consequências.
 
Continuaremos reclamando e transferindo para o outro, o que por ignorância reproduzimos. Portanto, temos que nos organizar, nos unir, independente de grupos, ou estatutos, que foi outra forma eficaz de nos dividir. Temos que mandar à merda todos esses títulos, esses valores não servem para a capoeira, esses são valores dos burgueses.
 
Temos que parar de reproduzir o racismo, doença que nos divide, promovida hereditariamente pelas elites, sendo hoje fortemente mascarada, mas que convive conosco dia-a-dia. O fato de minha pele ser mais clara, ou mais escura, não significa que eu seja totalmente branco, ou negro, ou índio. Mesmo que haja entre nós alguém “puro”, não deve ser motivo para divisão. Nossa luta deve ser por equilíbrio social, respeito à nossa cultura, e não por supremacia de raças, sendo que estamos todos na mesma condição social. Se não nos livrarmos dessa doença chamada racismo, vamos continuar comendo restos e carregando esses miseráveis com nosso trabalho. Não podemos permitir que nos façam esquecer a escravidão do índio e do negro, com falsas histórias, ou queimando documentos como fez Rui Barbosa. Mas não devemos com isso nos dividir, pois hoje somos todos escravos. Compreendo que o negro sofra duplamente, sendo a sociedade hipócrita e racista.
 
Como se não bastassem as Federações de capoeira, que nos manipulam, vigiam, nos ditando regras, agora já temos os CREF´S, que vão criar seus filhos com o suor de nossas gingas.
 
Temos que reassumir a capoeira, exercitando as duas faces. Resgatar verdadeiramente os nossos verdadeiros Mestres. Valorizá-los de
verdade, e não simplesmente usá-los, como acontece atualmente.
As nossas reivindicações devem ser por direitos básicos, uma vez que pagamos por esses benefícios, através de duros impostos, que são desviados para o prazer e luxúrias da elite. Queremos escolas públicas em condições dignas, onde nossos heróicos professores da rede pública possam realizar seus trabalhos e serem valorizados. Universidades gratuitas para todos e em boas condições. Que o plano de saúde pública, que pagamos, realmente atenda com agilidade e eficiência os “contribuintes”.
 
Somos usados para produzir e para consumir, portanto, quem depende de quem afinal? Temos que compreender como funciona o sistema e atuarmos em benefício comum da classe. Somos os responsáveis por toda riqueza, que vem lá de trás com a escravidão do negro e do índio com a permissão e presença da Igreja Católica, que recebia 5% de cada escravo vendido.
 
Apesar de sendo nós os que alavancamos as riquezas, assim mesmo nos desvalorizam, imaginem quando as máquinas nos substituírem de vez, quando não precisarem mais dos nossos braços, onde seremos somente consumidores. Então, estará perdida de vez nossa luta.
 
Seremos jogados ao vento, como fizeram com os escravos em 1888 com a promulgação da Lei Áurea. Que por interesses comerciais, substituíram a mão-de-obra escrava dos negros, pela dos europeus. E ainda se não bastasse, tornaram a Princesa Isabel, uma escravocrata, na redentora dos negros. Infelizmente, muitas pessoas, inclusive capoeiristas, acreditam nessa mentira, são os que só vêem os fatos por cima. As histórias que nos contam, estão todas armadilhadas. Antes de acreditarmos nesses desgraçados, temos que ponderar, analisar a fundo os fatos. Sem eira nem beira, os negros foram jogados para as ruas, não tiveram direito sequer a um pedaço de terra para continuarem a sobreviver, depois de séculos de serventia e maus-tratos. As histórias se repetem, portanto: mãos à obra.
 
Dizem que é destino ser pobre, que somos incapazes, burros, inferiores, mas isso não é verdade, temos as mesma capacidade e potencial, o que falta é igualdade de condições. É muito cômodo apontar o dedo para as pessoas, e rotulá-las de burras, vagabundas, faveladas, quando temos quem nos ajude a enxergar o caminho, ou quando estamos inseridos nas classes abastadas da madrasta sociedade. Quando avançarmos na sociedade e tivermos nossos direitos
assegurados, então faremos nós mesmos nossas próprias escolhas.
Poderemos optar por estudar ou não, irmos ao dentista ou não, enfim… Teremos opção de escolha, o que não temos hoje.
 
Portal Capoeira O Elo Perdido - Parte 2 Publicações e Artigos Portanto, temos um sindicato, temos uma força que é a capoeira, precisamos conhecê-la a fundo. Buscarmos dentro de nós alguma centelha de nobreza e aplicarmos nesse ideal. É uma luta árdua, onde não deve haver espaço para vaidades pessoais ou benefícios isolados.
 
Uma luta que levará tempo e sacrifício, devemos começar por nós mesmos.
Temos que tornar nossos espaços, onde exercitamos o físico, também em espaço cultural, ensinando os alunos não somente a jogar, a cantar, mas também a pensar, ajudando-os a situarem-se na história, para que sejam mais do que jogadores de capoeira ou valentões, sejam pensadores conscientes, para que possam contribuir para causa, passando à frente a mensagem.
Temos que substituir as cordas (graduações) por uma causa. Tornar os encontros de capoeira, para além do jogo, do canto. Temos a obrigação moral de contribuir para a vida dos nossos alunos, e não reproduzirmos o sistema, aproveitando-se da ignorância para tê-los às nossas conveniências.
 
A escravidão está em todos os lugares, mascarada de muitas formas, sendo promovida por capitães-do-mato travestidos, muitos deles de mestres de capoeira…”abre o zóio siri di mangue”.
 
Em causa estão as atitudes, não as pessoas!!!
 
Salve a liberdade… Viva Zumbi!
Mestre Pinóquio
 
[email protected]
 
Leia Também:  ELO PERDIDO – PARTE 1
 
CENTRAL CATARINENSE DE CAPOEIRA
Fundada em 29 de julho de 1998
CAÁ-PUÊRA
EDIÇÃO ESPECIAL:
O ELO PERDIDO – PARTE 2
POR MESTRE PINÓQUIO
MAIO DE 2007
 
ASSOCIAÇÃO CULTURAL CAPOEIRA QUILOMBOLA
“Porque o mundo ainda é uma grande senzala”
 

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