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Mulher na capoeira: Claudivina Pau-de-Barraca

 
Não muitos anos atrás, as poucas mulheres que ousavam se meter na capoeira eram rejeitadas pelos homens, que viam nisso uma intrusão em território próprio. O que não impediu algumas guerreiras de irem para frente, na capoeira como em tantos outros setores de dominação masculina. Assim numa lembrança de Lúcia Palmares. Alguns termos não encontram-se em dicionário. Em caso de dúvida, deixem o cursor em cima por dois segundos para ver se não aparece um esclarecimento: exemplo.

Dona Valdelice morava quase do lado da nossa casinha na Capelinha de São Caetano, um subúrbio pertinho de Salvador. Tanto Mãe como Dona Valdelice eram pessoas discretas e que não se metiam em fuxicos; iam na igreja evangêlica e acontecia que conversando no caminho Dona Valdelice falasse:

— Ah, dona Damiana, Vina não tem jeito. É a a ovelha negra da família.

Mãe não fazia questão de perguntar por que. Eu não imaginava o que era ser ovelha negra. Não tinha ovelha nenhuma na Capelinha de São Caetano, e quando Claudivina visitava a irmã, eu via apenas aquela negrona bonita de cabelo curto bem arrumado, preso atrás da cabeça, vestida direitinho, como se diz la na minha terra, nada que explicasse o que era ser ovelha negra. Mãe dizia somente que era coisa que não prestava, e uma criança de sete anos esquece logo as coisas da gente grande. Vina não tinha nada de especial, a não ser o tamanho, na faixa de um metro e noventa, meia cabeça a mais da irmã.

Se calculo bem, foi por volta de 1963 que deixei a casinha de taipa na ribanceira e o nosso pé de mamão por uma vida bem melhor no bairro de Uruguai. Juliana, a irmã gemêa de Mãe, passou a ser minha Mãe, e eu fui morar na rua Conselheiro de Abreu, 39, com os meus pais adotivos. Logo ouvi falar de uma tal arruaceira e desordeira conhecida como Pau-de-Barraca, e não demorei de ver essa mulher que passava entre os verdureiros e todo jeito de vendedores ambulantes que tinham seus fregueses no bairro. Uma coisa que me chamava atenção é que ela usava coturnas e boné meio de lado, macacão azul ou então bermuda, nada de saia. Quando ela passava, os garrotos que jogavam baba paravam para olhar aquela negrona com seu andar gingado, seguro como se seguisse uma música. Mesmo no barulho dos ônibus e dos carros, nos gritos das crianças brincando nos poços de água da rua de chão, o vozeirão dela fazia todos correrem às janelas e às portas. E na primeira vez que eu também corri p’ra ver, eu reconheci Vina.

Ela sorria para todo mundo e dizia piadas às vezes piquantes, que mexiam com os mais velhos :

— Que mau exemplo para as meninas!

Mas Vina não ligava para nada disso. Ela tirava os jornais da sua sacola de pano azul, e fazia as suas entregas para os assinantes, indiferente. Também trabalhava de mecânico de automóveis, consertava casas, vendia picolé. Andava nas ruas não importava a hora, entrava em botequim para jogar dominó. Isso era coisa que mulher direita nem pensava em fazer no Nordeste. Pau-de-Barraca alimentava conversas.

— Não é p’ra olhar essa muié! Muié macho é contra os olhos de Deus. Na certa fez pacto com o Capeta.

Minha Mãe era uma mulher corajosa e determinada; mesmo assim creio que achava que Pau-de-Barraca era o diabo em figura de gente. Vina brincava com todas essas coisas que diziam dela, e gritava às vezes nas suas passagens:

— Olhem suas filhas minhas senhoras, que estão de olho em mim…

e seguia o caminho dela quase sempre alegre, e sempre pronta para os desafios da vida dura que ela levava.

Minha Mãe era ialorixá no bairro de Uruguai. Um dia iamos para a casa de Leleta, uma filha-de-santo dela, quando ao passar na rua da Palestina, ouvimos o vozeirão de Vina acima de outras vozes, exaltadas, de homens, que vinham do beco onde ela morava. Paramos para observar, e não demorou muito, vimos quatro homens saindo do beco, correndo como bala, com Vina armada de um porrete grosso atrás, xingando os caras com nomes que os homens não gostam de escutar. Vina voltou a entrar no beco, xingando todos nós que estavam la olhando os homens fugirem humiliados, iguais a cachorrinho com o rabo entre as pernas. Mesmo com barulho corriqueiro no bairro, era um espetáculo as brigas da mulher macho. Como sempre, a polícia chegou e foi embora. Não sei ao certo, mas parece que Vina tinha amizade na polícia. Nunca foi presa que eu saiba.

Vina se dizia mulher e bem mulher. Não era sapatão, como dizia com a boca bem grande, e nunca ouvi ninguém falar, só que homem para viver com Pau-de-Barraca, tinha de se conformar em ser a galinha, pois o galo, era ela. E as vezes, ficava difícil, e dava briga.

O tempo passou. Nos meus catorze anos eu não falava nada por que tinha medo de levar tabefe de minha Mãe, mas no fundo, admirava aquela mulher. Desejava mesmo de ser corajosa e valente como ela. Acho que um monte de colegas tinham por Vina um pequeno pensamento de admiração, e como eu não ousavam falar. Mulher sem papa na língua, que não levava desaforo para casa, nem de homem! E mulher? Essas nem ousavam lhe dizer uma palavra de desagrado seriamente, poderiam pilheriarem, mas isso ela não ligava. Era como se se sentisse toda poderosa diante do pequeno mundo que as mulheres do lugar viviam naquela época.

Um sábado de verão minha Mão me falou assim:

— Vai dar recado p’ra Miuda vir para o Ingorossí na segunda-feira, sua nigrinha, vá sozinha e não demore!

Minha Mãe não pedia, dava ordens. Dona Miuda morava pelos lados de São Domingos no final da Régis Pacheco. Ir sozinha era para não levar o meu irmão de criação Zé, que não batia bem da bola, e que sempre me fazia desviar do caminho com o paco dele insistente. Mas Zé escutou, saiu de fininho, e correu para me esperar na esquina como fazia sempre.

Aí chegados lá e recado dado, o Largo do Tanque não ficava longe. Ora, tinha sido renovado, e à noite ia ter a inauguração. Só que em Salvador, as festas começam bem mais cedo, ou de véspera. Sabendo disso Zé falou:

— Vamo Lucinha, vamo ver como ficou o Tanque depois da renovação!

— P’ra levar uma surra da minha Mãe ? Não vou!

Mas ele continuava rindo — ele ria todo o tempo, Zé — e insistindo:

— Venha, Lúcia, vamos no largo do Tanque!

Eu curiosa de ver como tinha ficado o Largo do Tanque acabei escutando Zé Doido.

O Largo do Tanque era todo novinho, em folha. Bastante gente trelavam p’ra lá e p’ra cá na calçada nova ou asfalto novo; o tráfico ainda era proibido. A música do alto-falante já alegrava o ambiente, um palanque esperava os políticos falarem, à noite. Eu fiquei andando por ali, Zé olhando para outras coisas. Já era o final da tarde, e prometia que o Grito de Carnaval que ia se passar à noite, seria bem alegre. Aliás tudo é alegre em Salvador, e quase todo vira festa. Nesse meio tempo pensava em tomar o rumo de casa, pois tinha nenhum desejo de tomar cipoada de cipó caboclo. Pensei em procurar Zé, mas ele me encontrou antes, e ele, todo assanhado, me chamou para ver uma roda de capoeira. Sua excitação não era por causa da capoeira.

— Vem Lucinha, Vina vai jogar capoeira, vamo ver.

Naquele tempo não sabia nada de capoeira. Quando eu ficava curiosa de ver o que se passava no interior daquelas rodas que se formavam nas ruas, durante as festas de largo, como a da Boa Viagem ou a lavagem do Bonfim, minha Mãe me puxava pelo braço, falando:

— Isso aí é coisa de gente que não presta, é brincadeira de vagabundo e de ladrão.

Pois naquele Sábado no Largo do Tanque fiquei curiosa de ver Vina fazer uma coisa tão proibida assim como a capoeira; esqueci das cipoadas que poderia tomar caso eu demorasse de voltar para casa. Cedei aos esticões que Zé me fazia no braço. Quando consegui chegar na beira da roda, a força de Zé abrir o caminho para eu passar, eu vi pela primeira vez uma roda de capoeira. Tinha mais de vinte homens em pé com berimbaus, pandeiros, agogô, e todos assim muito animados, alegres e vestidos normalmente, de calça e camisa de manga curta. Minha curiosidade se dirigia para Vina, em pé na beira da roda, batendo palmas e cantando, vestida de uma camisa de quadradinhos azulada colocada dentro das suas calças jeans de marca Far-West. Também com grande chapéu de palha na cabeça; só ela que tinha esse chapéu. Ela gostava de aparecer.

Com certeza aqueles homens a olhavam com o canto do olho. Não gostavam daqueles eternos desafios dela. Vina tinha um nome respeitado, mas que muitos deles que estavam ali. E é bem claro que alguns deles desejavam apagar aquela arrogância, aquela ousadia da mulher que jogava capoeira e batia em homem. Hoje compreendo que não tinha lugar melhor para fazer-la compreender que ela invadia um território que não lhe pertencia.

Vina logo entrou para jogar com um negão do mesmo tamanho dela. E depois de ginga p’ra lá e ginga p’ra cá, ela não demorou muito de receber um telefone, golpe na capoeira dado com as duas mãos contra as orelhas, violentamente. Um vacilo, sem dúvida. E para minha tristeza, eu vi, como todos os que estavam lá, Pau-de-Barraca desabar de cima de seus metro e noventa de altura e cair estendida no chão desmaiada. Eu vi os capoeiristas a arrastarem para fora da roda. Não fiquei para ver se levavam-la no hospital. A roda continuou; eu tomei o rumo de casa sem demora, pois não tinha permissão de estar naquele lugar. Durante o caminho, Zé que vivia rindo ria mais ainda, e puxava meu braço, dizendo:

–Viu Lucinha, ‘cê viu aquela da Vina…

Eu tinha visto sim. Ficava de certa forma triste. Mas mesmo assim eu não perdi a admiração que tinha por ela.

Penso hoje que ela não devia estar em plena forma naquela tarde; ou devia estar queimada pelos inúmeros inimigos disfarçados que à arrondiavam. O que sei é que as energias foram contra ela. Mas, era uma mulher destemida, impetuosa, e que não conhecia o medo, e talvez não resistiu aos toques arrojados do berimbau. Também sei que aquele telefone que ela recebeu não foi nada diante da força que ela possuia. Jamais a esqueci. Três anos depois entrei na capoeira, cheia de receios, mas determinada a ficar e a conhecer, e sem esquecer que são mulheres de cabeça erguida, como Claudivina Pau-de-Barraca, que mesmo sem ter a fama de outras mulheres de sangue no olho como Rosa Palmeirão ou Maria Doze Homens, conseguem mudar o pensamento de outras.

Digo isso por que aí se trata de capoeira. Conheci as dificuldades que as mulheres enfrentaram, tanto olhares, agressões verbais e xingamentos como disrespeito no jogo de capoeira ou do batuque, por terem tido a ousadia de entrarem naquele mundo sagrado dos homens. Sei que em todas as épocas existiram mulheres excepcionais que se destacaram para a posteridade devido à audácia que tiveram em vários outros setores da vida; e que graças a essas mulheres heroinas que hoje nós mulheres ocupamos uma posição bem melhor na sociedade em geral.

Lucia Palmares & Pol Briand
3, rue de la Palestine 75019 Paris
Tel. : (33) 1 4239 6436
Email : [email protected]

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