Crônica: Pensando bem, aprendi mais do que ensinei!

Deficientes. Insuficientes?  Imperfeitos? Aqui vão alguns exemplos.
 
Quando ouvi este termo pela primeira vez imaginava algo anormal e o sentimento que me tomava era o de pena. Então comecei a vê-los pelas ruas. Transitando em suas cadeiras de rodas, com ajuda de tutores e bengalas. Caminhando com dificuldades, porém sempre presentes em todos os cantos.
 
Fui crescendo e comecei a morar perto de alguns, estudar com outros e dividir os mesmo espaços de trabalho e lazer. Percebi que nos seus olhares havia algo diferente. Talvez piedade? Talvez compaixão? Não! Certamente estes não eram os sentimentos que brilhavam em suas pupilas.
 
Então, eu já escutava o que tinham para falar. Alguns não falavam, expressavam-se corporalmente. Outros falavam demais, pois ninguém os queria ouvir. Mas alguma mensagem sempre ficava na minha mente. Cadeirantes, na maioria das vezes com seqüelas de acidentes ou paralisias na infância comunicam-se perfeitamente. Com tudo em pessoas com problemas mentais e dependendo do nível da deficiência, o diálogo se torna mais difícil, porém não menos perfeito. O corpo fala e para bom entendedor pingo é letra. Tem muita gente que fala, fala e tu não entendes é nada!
 
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Na foto a aluna Luciana e o professor Beija Flor
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Um dia, conheci pelas ruas o Paulinho. Depois fiquei sabendo que se tratava do Mestre Paulo Duarte da academia Zumbi dos Palmares. Uma das primeiras do ABC Paulista, pioneira mesmo. Cadeirante, Mestre Paulo trabalha atualmente na Prefeitura de São Bernardo do Campo, nas bibliotecas públicas. Vítima de um grave acidente de carro, Paulinho ficou paraplégico. Memória viva da capoeira aparece em fotos ao lado de Pastinha. Há algum tempo atrás, ele cruzou a América Latina a bordo de um carro. Um Gol 1000. Adaptado por ele e sem nenhum conforto. Detalhe; sozinho e sem algum tipo de patrocínio. Agora está prestes a sair em aventura até os Estados Unidos. A bordo de seu carro! Cruzará o oceano de navio e seguirá viajem. Pergunto-me qual é a dificuldade dele. Às vezes não vamos daqui até ali por preguiça ou um simples resfriado. Mas certamente a história do Mestre Paulo Duarte está registrada em poucas mentes.
 
Sempre lembro do Paulinho e suas convicções. Uma delas é a de que “você tem surpresas na vida e ela te coloca em caminhos nunca antes percorridos”. Foi bem assim que aconteceu no momento que finalizei uma aula de educação corporal para alunos do ensino médio de uma grande rede de ensino privado na cidade de Santo André em São Paulo. Alunos ditos “normais” e que me davam um enorme trabalho pela rebeldia e falta de compromisso com o futuro. A escola tinha um programa de atividades com a APAE, que oferece tratamento a deficientes físicos e mentais, e enquanto saíamos, cerca de trinta portadores das mais diversas disfunções mentais entravam para começar a atividade com uma terapeuta. A minha sorte foi que ela não pôde chegar e ministrei uma aula de iniciação à capoeira para a turma. Incluindo prática corporal e instrumentação.      
 
Guardo esta aula como uma das melhores. Foi incrível o retorno desta galera, que me deu menos trabalho que a anterior e enorme satisfação. Experimentaram novas propostas de aprendizagem, enxergaram o mundo de cabeça para baixo e aproveitaram ao máximo todas as possibilidades que a capoeira contempla. Ao final, o que mais me tocou foi uma gota. Sim uma gota. Uma garota, que devia ter por volta dos seus 17 anos com deficiência mental moderada insistiu durante uma hora para segurar o berimbau. Às vezes eu me aproximava dela e dava uma dica. Mas percebi que ela queria solucionar o problema sozinha. Deixei; mas não tirava o olho de sua luta. Foi então que ela tirou três notas do instrumento. E por mais simples que pareça, isto a emocionou e a fez derrubar uma lágrima. Conclui com isto que pequenas bobagens para alguns são grandes conquistas para outros! Isto me fez refletir sobre a importância que “deficientes” demonstram perante a vida e suas conquistas. Como minha querida aluna formada Luciana e seu parceiro de treinamento o Ivan. A Lú, está com 22 anos e o Ivan com 45 anos. São portadores de síndrome de down e a capacidade de aprendizado deles é surpreendente. Dias com aulas de capoeira são os dias mais importantes da semana. Respondem muito bem do ponto de vista motor e cognitivo. Sem falar do lado afetivo aflorado. Se eles simpatizam com alguém, são amigos para sempre.
 
O Ivan por estes dias, conseguiu realizar um macaco, movimento característico da capoeira. Ao jeito, dele. Mas foi o macaco mais comemorado que já vi. Na roda, tenho que alertá-lo para não soltar toda hora, pois ele gostou mesmo do movimento.
 
A história dos dois é algo curioso. O Sr.Roberto, pai da Lú, saiu da maternidade transtornado com a notícia de que sua filha era down. Isto no nascimento da Luciana; há 22 anos atrás. Ficou abalado e dirigindo pelas ruas atropelou um garoto com cerca de 20 e poucos anos. Desceu do carro para prestar o socorro e se deparou com o Ivan, down também, levantando do chão com dificuldades e meio atordoado. Aquele pai, desiludido com a notícia que acabara de receber, se emocionou e perguntou ao garoto o que podia fazer a mais por ele além do socorro. O Ivan respondeu que seu grande sonho era ser músico. E então, o Sr.Roberto passou a ensinar o que sabia sobre ritmo e música ao mais novo amigo. E mais, este fato o deu força para aceitar e se orgulhar de sua maravilhosa filha que acabava de chegar ao mundo.
 
O Ivan está até hoje próximo do Sr.Roberto e de sua família. Ele é quem conta o maior número de histórias interessantes lá na academia em dia de treino. É campeão de patinação in line e já viajou por todos continentes. Assim como a Lú.
Ela, por sua vez, já se formou na capoeira e tenho muito orgulho de vê-la desenvolvendo o seu jogo dentro da roda. De fato, necessitam cuidados particulares do ponto de vista anatômico e fisiológico. Mas o ensino é realizado juntamente com os demais alunos da academia. Sem nenhuma diferenciação. Os dois portadores de síndrome de down. Os dois portadores de muita alegria e ótimo bom astral.
 
Com um pouco mais de dificuldades em se locomover, porém com a mesma coragem, recordo de meu amigo Renato. Vítima de um acidente enquanto mergulhava de uma pedra em alguma cachoeira, Renato teve um comprometimento medular grave o que prejudicou drasticamente os seus movimentos. Cursei o ensino médio com ele e nossa sala era no quarto andar. Até hoje não entendo como nossos “engenheiros” não pensam neste pequeno detalhe ao construir estes prédios sem adaptação alguma aos que necessitam. E como é “burrocrático” (desculpe o neologismo) para alguns a simples mudança de uma sala de aula. Subíamos com o Renato as escadas até a sala todos os dias e descíamos ao final. Ele não tinha controle sobre os músculos da bexiga e usava um reservatório com uma adaptação para eliminar a urina. Tinha uma criatividade incrível. Como não dominava também os movimentos da mão, construiu um adaptador para que pudesse escrever.
Hoje o Renato é um advogado respeitado e muito requisitado. Como ver um cadeirante, nestas condições, se expressando na roda de capoeira e não se emocionar? Cantando, tocando o berimbau, fazendo das rodas as suas pernas e muitas vezes até saindo da cadeira para jogar e conhecendo novas perspectivas. E com isto, não quebrarmos as nossas fronteiras para entendermos que tudo é uma questão de força de vontade e otimismo.
 
Assim, quando recebi o convite do Luciano Milani para contribuir com esta coluna, me senti muito emocionado em poder falar do Mestre Paulo, da Luciana e do Ivan, da galerinha da APAE, do Renato e de muitos outros exemplos que tive de superação e de companheirismo. Pensei em escrever sobre métodos, procedimentos e características sobre e trabalho adaptado com a capoeira. Mas no momento que comecei a refletir sobre o tema capoeira sem fronteiras, me deu uma enorme vontade de mostrar o lado humano, vitorioso e na maioria das vezes despercebido desta gente. Uma galera que se supera. Dança, canta, ginga, joga, ensina e vive com uma intensidade ímpar.
E quando você enxergar na roda de capoeira uma luz enorme iluminando um jogador, não se espante, é o dedo do criador que está derrubando as fronteiras do preconceito!
 
Muito Axé e Saúde a todos!
 
Professor Beija-Flor
Ricardo Costa
São Bernardo do Campo/SP
 
 

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