Portal Capoeira Capítulo 10 - Veneno da Madrugada Nestor Capoeira - Capoeiristas, Pulp Fiction Tropical

Capítulo 10 – Veneno da Madrugada

 

CAPOEIRISTAS

PULP FICTION TROPICAL

 

Nestor Capoeira

capítulo 10

 

Finalzinho do capítulo 9 

Estes “homens de dinheiro” e politicos, semelhantes aos militares de 1964-1984, não têm competência, nem criatividade, nem visão, para instaurar a verdadeira democracia que nosso país merece. e que tem todas as possibilidades de ter devido às suas riquezas e potencialidades.

Fim do capítulo 9

 

capítulo 10

 

VENENO-DA-MADRUGADA

 

RICARDÃO

Naquela tarde, quando Veneno ainda era um pre-adolescente, o La Vai Bola deu um show no futebol de areia.

Quando os dois olheiros do Fluminense se aproximaram de Veneno e Carlinhos Piu-Piu – que comemoravam a vitória do La Vai Bola no calçadão da praia de Ipanema -, Ricardão, um jovem marrudo e arrogante, ficou na bronca da inveja.

Mas não podia bater de frente com Piu-piu, que era maior doidão mas que não dava mole pra Kojack; treinava capoeira na academia do Peixinho e jiujitsu com o Rickson Gracie. E, alem de tudo, era irmão do Delano Bule que, na época, já trabalhava na Polícia Civil.

Sobrou pra Veneno, que era praticamente um menino.

Ricardão se aproximou de Veneno, já dando esporro:

“O veadinho, tu tá muito deslumbrado, pivete. Presta atenção! Presta atenção! Quando eu disser ‘passa a bola’, é pra passar a bola. Não é pra tirar uma onda de Garrincha e sair driblando até a linha-de-fundo pra centrar pra pequena área.”

Ricardão deu um empurrão em Veneno que recuou uns 2 ou 3 passos.

A galera, em silêncio e de braços cruzados, assistia ao teatrinho.

Todos se conheciam desde criança e Ricardão já conquistara seu lugar e privilégios há muito tempo. Na verdade, não havia novidade pra ver: todo o mundo já tinha passado por aquilo quando, ainda garotos, tinham levado uma dura de alguem da turma dos mais velhos.

Era quase um ritual de iniciação:

– Veneno ia levar uns cascudos, botar o galho dentro;

– Ricardão ia se acalmar;

– e ia todo mundo encher a cara no Mau-Cheiro, um botequim na esquina da Rainha Elisabete com a praia, que tinha um chope super-gelado.

Ricardão deu outro empurrão em Veneno, que recuou mais alguns passos.

“Hoje tu deu sorte porque o Piu-piu consertou as merdas que tu fez. Mas se continuar assim, querendo tirar uma de estrela, tu não vai ser convocado e ainda por cima vou te dar umas porrada pra tu cair na real. Nós somos um time e o capitão desta merda sou eu. Tu não é porra nenhuma; ainda tem que comer muito feijão com arroz. Entendeu, seu merdinha?”

E Ricardão deu mais um passo a frente, já na intenção de dar mais outro empurrão, ou talvez um tabefe na orelha de Veneno.

Ora, Ricardão na época, tinha uns 23 anos, quase 10 a mais que Veneno; era uma cabeça mais alto, e uns 20 quilos mais pesado; tinha muita experiência de tatame, e também de briga de rua.

Por isto ninguém reparou que, apesar do garoto manter uma expressão neutra e boba no rosto, e de ir recuando calado à medida que levava empurrão; um brilho mau tinha iluminado, por dentro, o olhar quase infantil de Veneno.

E talvez por Veneno ser tão jovem – 14 anos , ninguém lembrou que em casa de malandro, vagabundo não pede emprego.

 

A PANTERA NEGRA

Quando Ricardão começou a dar esporro, aquela coisa escura e terrível que morava dentro de Veneno acordou.

Veneno reconheceu-a imediatamente: o mesmo lance de dois anos atrás quando enfrentou Zeno, um pivete mais velho que disputava a liderança da turma da Estação de Trem Japeri – estação terminal de uma linha da Estrada de Ferro Central do Brasil.

Em Japeri, Veneno fingiu medo – “… calma meu irmão, não precisa esquentar”. E quando Zeno cresceu e baixou a guarda, Veneno entrou com tudo numa cabeçada na boca do estomago.

Zeno caiu esparramado no meio dos trilhos e Veneno, que já no início da discussão tinha localizado uma pedra de bom tamanho no chão, apanhou-a rapidamente e desceu a mão com pedra e tudo na cabeça de Zeno. O moleque caiu pra tras semi-desmaido.

Veneno ficou em pé imóvel, triunfante e excitado, os olhos brilhando de maldade, com o corpo do adversário estendido a seus pés.

Era como se, possuído por aquela coisa poderosa que o fazia sentir-se superior e invencível, visse o mundo de cima de uma alta Torre de Ébano Negro.

 

FOSFORECENTES OLHOS AMARELOS

Agora a mesma coisa, a mesma Força Escura.

O Predador, negro e reluzente como um grande felino, acordou, bocejou, e seus fosforecentes olhos amarelos olharam – de dentro para fora, através dos olhos quase infantis de Veneno – o mundo ao redor.

O brilho do sol da tarde de sábado ofuscou o Grande Felino por uma breve fração de momento, mas logo suas pupilas se adaptaram à inusitada claridade.

O Grande Felino Negro atravessou a folhagem tropical caminhando ondulando suavemente num tempo imemorial, num espaço desconhecido dos mortais, E aproximou seus olhos, por dentro, até quase tocarem as pupilas de Veneno. Então, com uma deliberada calma fria e curiosa, fixou seu amarelo olhar fosforecente na sua presa.

Veneno já não via Ricardão como um cara mais velho e mais forte; via apenas um otário que se aproximava cheio de marra e com a guarda baixa.

Quando Ricardão preparou o empurrão, sempre esbravejando, Veneno deu um rápido passo à frente, e soltou seu martelo de direita.

 

O MARTELO

Malhado, o sambista e malandro que dominava geral a Estação de Japeri, tinha sido um bom professor: todos pivetes da área eram instruídos na arte da tiririca – a capoeiragem carioca, herança das violentas maltas que tinham tocado o terror no Rio de Janeiro durante todos os 1800s. E, dentre eles, destacava-se o adolescente Veneno-da-Madrugada.

A perna de Veneno subiu rápida e certeira como se fosse uma lâmina de aço flexionada que subitamente é liberada.

O pé passou alto e veloz por cima do ombro esquerdo de Ricardão, já na intenção da orelha e da têmpora e do lado da cabeça.

Veneno, atento, a visão clara e cristalina, totalmente aqui e agora, esperava o desfecho: quando o pé explodisse na cabeça de Ricardão, o falastrão ia, ou cair apagado, ou então bambear e dar uns passinhos bêbados antes de desabar no chão. Era só ficar calmo, ver como ia terminar a novela, localisar uma brecha na confusão de braços e pernas do inimigo que se estabacava, e entrar com tudo, chutando novamente a cabeça do mané, finalisando a peleja.

Mas não foi isso que aconteceu.

Ricardão era um lutador experiente.

Mesmo pego totalmente de surpresa, seus reflexos reagiram. Desviou instintivamente a cabeça – mas não o suficiente -; e o martelo de Veneno não encaixou em cheio, pegou de revesguete.

Mas, mesmo assim, tinha sido um porradão. Ricardão balaçou, tonteou, mas não caiu.

Recuou dois passos trôpegos, mas já com a guarda de box fechada, protegendo o queixo e as têmporas.

Veneno ficou olhando, surpreso, mas sem perder o foco da situação.

Em volta, os dois times de futebol olhavam completamente boquiabertos: aquilo era algo totalmente inusitado e inesperado..

Carlinhos Piu-piu, que se amarrava em Veneno, se aproximou rápido e murmurou: “Vaza! Vaza, moleque! Cai fora!”

Veneno, sem saber o que fazer – fugir ou encarar? -, continuava ligado em Ricardão que, agora, ensaiava uns passinhos de box mas ainda sem partir para o ataque.

Aí, Veneno se lembrou  da pedra.

 

HAVIA UMA PEDRA NO MEIO DO CAMINHO

Veneno se lembrou da pedra.

Da pedra que tinha rachado a cabeça de Zeno.

E tambem do monte de pedra portuguesa deixado pelos operários que consertavam a calçada da rua Teixeira de Melo, logo ali pertinho.

Veneno recuou alguns passos.

Ricardão avançou devagar, cauteloso, sempre na guarda do box.

Aí, Veneno deu as costas, botou vinte no veado, e saiu correndo avoado.

Atravessou a mil a Avenida Vieira Souto se desviando dos carros, e só quando dobrou na Teixeira de Melo arriscou uma olhadela pra trás.

Ricardão, quando viu Veneno correr, sacudiu a chocolateira pra clarear as ideias, deu um grunhido de raiva, e partiu atrás.

Agora, Ricardão tinha acabado de atravessar a Vieira Souto e corria a toda. Entrou na Teixeira afobado, com medo que Veneno pudesse escapar.

Dobrou a esquina e, aí, deu um branco.

Ricardão não entendeu bem o que estava acontecendo: Veneno, em vez de estar correndo lá na frente, estava parado na calçada – imóvel no meio do quarteirão.

Ricardão não parou para raciocinar. Ao contrário, deu outro grunhido e engrenou uma terceira.

Não reparou no monte de pedras portuguesas atrás de Veneno.

Nem tampouco que o pivete segurava uma pedra – pedra negra e dura, com aquelas arestas de quase cubo – em cada mão.

Ricardão se aproximou na corrida.

Veneno deu uns 2 ou 3 passos largos, ritmados, e lentos na direção de Ricardão. Fez um movimento amplo que lembrava o dos lançadores do beisebol americano.

A pedra partiu e acertou Ricardão em cheio no meio da ideia.

Os braços de Ricardão continuaram a se movimentar. mas num movimento atabalhoado. As pernas amoleceram em plena corrida. Os olhos rolaram para cima. E o zé grandão desabou, se desmanchando pela calçada quase aos pés de Veneno.

 

MÁRMORE NEGRO

Anos depois, quando visitou um museu na Europa e deu de cara com a estátua de David segurando a funda com a pedra, pouco antes de seu combate com Golias; a primeira reação de Veneno foi de estranheza.

Alguma coisa estava errada.

O olhar era aquele mesmo; estava correto.

Não era o olhar de um pastor adolescente e otário subitamente iluminado por Jeovah.

Era o olhar ameaçador, frio, calculista, letal, de um homem jovem que conhece e tem intimidade com a violência e com as ferramentas da Guerra e da Morte.

Um homem jovem que decide arriscar a própria vida apostando numa  estratégia inesperada e um tanto louca: despir a armadura do rei que, apesar de proteger, iria tolher seus movimentos; esquivar-se das tres lanças de Golias; provacar o gigante fazendo pouco de sua competência.

E quando, enlouquecido pelo orgulho, Golias atacou sem se preocupar com a defesa; David usou a funda com a pedra.

O gigante tombou.

David cortou a cabeça do inimigo com a própria gigantesca espada dele; agarrou pelos cabelos o troféu ainda vertendo sangue aos borbotões; levantou alto a medonha cabeça, exibindo-a, arrogante e despudoradamente, ao estremecido exército inimigo.

O olhar de David estava correto – era aquilo mesmo -, mas alguma coisa estava errada.

Só então percebeu que estava pensando que a estátua deveria ser de mármore negro – negro como ele, Veneno, e não branco.

Sorriu, e finalmente pode curtir totalmente a beleza da obra de Michelangelo.

Mas foi na Praça Saint-Michel, em Paris, com a estátua de São Miguel Arcanjo em bronze – transfigurado num quase extase religioso -; e, caído aos seus pés, Lúcifer – Aquele Que Porta a Luz, o mais belo dos Anjos do Senhor já metamorfoseada em demônio -; foi ali que Veneno comprendeu total e profundamente uma das possibilidades da Obra de Arte.

A  Arte se torna magnífica quando retrata um Grande Momento que pode ser vivenciado pelo ser humano.

E Veneno se reconheceu no Arcanjo assim como tinha se reconhecido no David:

– igualzinho quando ficou no meio dos trilhos de Japeri com Zeno caído a seus pés;

– e igualzinho quando, Ricardão desmaiado com a boca aberta babando, Veneno tinha lentamente lentamente lentamente se aproximado do inimigo; abaixou-se e olhou-o de perto; e em quase êxtase, energisado pela adrenalina que corria loucamente pelas suas veias, ficou novamente em pé, o corpo todo tremendo levemente elétrico, e ergueu os deslumbrados olhos amarelos fosforecentes para o céu.

 

SARTORI / EPIFANIA

Isso tinha acontecido há muitos anos atras.

O tempo passou.

Quando Veneno, comendo uma moqueca de peixe num botequim no dia do jogo do Brasil, percebeu a troca de maletas entre Piu-piu e o Gringo Grandalhão, em frente ao Hotel Copacabana Palace, não teve dúvidas: compra de drogas, das pesadas.

Veneno entrou em alfa, e logo em beta, e gama e delta.

Sentiu calafrios.

Sentia o corpo arder em febre, os cabelos se arrepiaram.

Pouco depois, percebeu com o canto do olho que a luz da suite do terceiro andar do Copacabana Palace – a única que estava apagada – tinha acendido.

Tinha acendido no tempo que demoraria para o Gringo Grandalhão chegar ao seu quarto.

E com a luz que se acendeu na suíte, tambem fez-se luz na mente de Veneno.

Uma calma incomensurável se apossou dele – epifania, sartori.

Veneno, em 2 ou 3 segundos, percebeu tudo ao mesmo tempo:

– as ruas desertas;

– as pessoas nos apartamentos e bares completamente hipnotisadas pelo futebol na televisão;

– a noite que já tinha chegado – todos os gatos são pardos -;

– Piu-piu que partira de carro com as drogas, e o gringo que voltara para sua suíte com a grana de Piu-piu;

– a elegante arquitetura do Copa Palace, com suas colunas de estrias horizontais, quase como uma escada;

– percebeu, até mesmo, que estava vestindo uma roupa tipo moleton bege claro, da cor das paredes do Copacabana Palace – camuflagem perfeita -; e que, alem de tudo, tinha um capuz adendo ao casaco, que esconderia seu rosto.

O corpo de Veneno moveu-se por si só.

Qualquer um diria ser uma loucura escalar a parede do hotel cinco estrelas para entrar no quarto de, talvez, um mafioso grandalhão, atual dono da maleta de executivo que, talvez, estivesse cheia de dólares.

Outros diriam que o bom jogador faz a coisa certa no momento certo; mas só o verdadeiro mestre faz a coisa errada no momento certo.

Mas Veneno estava em outra. Ele era apenas um passageiro atento e lúcido transportado por aquela carcaça de ossos, músculos e sangue – seu próprio corpo -, que se movia rápido e  harmoniosamente por conta própria.

 

 

AS TORRES DAS IGREJAS

Veneno-da-Madrugada matutava com seus botões e relembrava os fatos recentes, acontecidos no Copacabana Palace, enquanto olhava a festa louca que rolava na Praça do Lido.

Alheio ao seu racional, seus pensamentos, aos poucos, recomeçaram a viajar nas lembranças das estórias de seus ancestrais mitológicos – os negros capoeiras, as maltas de 1800s, Manduca da Praia, os malandros de 1920, os mestres Bimba e Pastinha.

Entre estas lembranças havia uma que, naquele momento, o obcecava: é que, por volta de 1830 – época, como vimos, de muitas ocorrências -, pela primeira vez, aparecem relatos de capoeiristas escalando, por fora, as torres de igrejas e saltando sobre os sinos – com perigo de queda e morte -, cavalgando-os, fazendo-os soar inesperadamente de madrugada, ou em dias de festa e procissão, ante o olhar embabascado da multidão. 

As igrejas eram marcos nítidos e importantes das diferentes áreas e freguesias da cidade; e “dominá-las” era simbólico de dominar aquela freguesia.

Esta lembrança das igrejas, que girava e tornava a girar na cachola de Veneno, vinha provavelmente do texto de algum livro do iluminado e luminoso Frede Abreu ou de Waldeloir Rego; ou talvez de uma palestra de Muniz Sodré num evento de capoeira na academia de algum conhecido.

Pode ser.

Mas mesmo assim, Veneno sentia-se confuso e um pouco perturbado.

É que, ao escalar a fachada do Copacabana Palace sem nenhum esforço e sem nenhum preparo prévio, Veneno teve a nítida impressão de já ter realisado façanha semehante muitas vezes, há muito tempo atrás.

E aquela escalada naquele cenário difuso e distante tambem tinha uma trilha sonora: o bimbalhar de grandes sinos de bronze das igrejas de épocas remotas.

 

A CANÇÃO DE VENENO-DA-MADRUGADA

É, meu nome é Veneno,

Veneno-da-Madrugada.

De Iansã eu tenho o raio,

de Ogun tenho a espada.

 

Eu sou livre como o vento,

venho de uma linhagem nobre;

Só respeito o velho Tempo,

com o Tempo ninguem pode.

 

Na roda da capoeira

o meu golpe nunca falha;

Tenho fé no meu Axé

e no fio da navalha.

 

Galo cantou!

côro: Eh, galo cantou, camará!

 

(Nestor Capoeira, 2014; CD A balada de Noivo-da-Vida e Veneno-da-Madrugada)

 

 

INTERMEZZO

 

O bom de escrever livro é poder, a qualquer hora, mudar a estória, criar novos personagens, e até começar a bater papo com o leitor, ou a leitora.

Vejam bem o que está acontecendo:

 

VENENO

 Veneno, um cara firmeza, muito bom de porrada mas sempre na dele, entrou numa grana firme.

Eu diria que, com aquela grana, Veneno poderia curtir uns dois anos na maior. Ou até comprar um conjugado em Copa; ou um quarto-e-sala no Leme, no alto da Ladeira Ary Barroso pertinho da Babilônia e do Chapéu Mangueira, com vista para o mar – duvido muito que ele faça isto.

Fora o recente lance do dinheiro, Veneno sempre teve aquele “probleminha”: um predador alienígena, ou talvez de outra gira cósmica, mora dentro do cara.

Veneno tinha aqueles sartoris e êxtases quando embarcava na Violência. Em Paris – no A Balada de Noivo-da-Vida e Veneno-da-Madrugada -, por pouco ele não assassina o Dr. Turíbio pelo mero prazer de triscar a jugular do gordinho com sua Solingen.

Mas a Escola da Malandragem, e a Malícia da capoeira, fizeram a cabeça de Veneno: ele sabe que quem bate esquece e quem apanha lembra; que Valente sempre morre na mão de Otário; e que etc e tal.

Paradoxalmente, ou talvez deveríamos dizer “complementarmente”, Veneno é um filósofo nato; gosta de observar a vida e as pessoas, e gosta de observar a si próprio.

Sua concepção de vida lembra à de determinados filósofos gregos da antiguidade, que preconizavam a “sabedoria da ação”. Ou então, aos que procuravam determinar o Bem e os meios de alcançá-lo.

Neste momento, Veneno conquistou a possibilidade de viver alguns anos fazendo o que quiser; sem preocupações de dinheiro; no Brasil, ou no estrangeiro, que ele já conhece. Neste momento, Veneno esta livre, leve, e solto; com muita grana e sem compromissos, sem nenhum elo que o prenda à alguem ou a alguma coisa.

 

NOIVO

 Noivo, um jovem que inicialmente só queria ser “mais um jogador, solto no mundo e na vida”.

Mas com o lance da visão clarividente, previra o futuro, e foi mordido pela mosca azul do Poder: resolveu participar ativamente do devir, e “ajudar” o desenrolar dos acontecimentos. Era uma atitude tão Don Quixote que Toninho ria consigo mesmo das pretensões do amigo mais velho e experiente.

Até o dia em que Noivo explicou ao jovem Toninho: “imagina que você pode prever tudo o que vai acontecer; e que dinheiro não é problema; você não ia querer dar uma porrada firme nesta merda que está aí fora?”

Mudar, shapear, o futuro!

É seguramente o sonho de todo super-herói, de todo megalomaníaco, de todo artista!

Mas quando Noivo perdeu sua visão – e seus utópicos sonhos desabaram -, logo em seguida separou-se dos amigos, e finalmente desentendeu-se e se separou de Ingrid.

O mínimo que se pode dizer é que o cara tava fudido.

Mas eis que agora parece que Noivo tomou pé e vai encetar um novo movimento qualquer. O que será?

Uma volta aos ideais de liberdade de sua juventude?

Ou um sucedâneo para a malograda utopia de ajudar a melhorar o mundo?

 

TONINHO

Toninho Ventania amadureceu e se transformou num jovem e elegante Malandro.

Aprendeu as lições básicas sobre o sexo e a sensualidade com mestre Leopoldina, Mr. X, e inúmeros cafetões, cafetinas, gigolôs e putas. Está tendo um sucesso extraordinário com as mulheres.

Esta curtindo o lance, mas tambem esta preocupado.

Toninho se lembra de um período que passou em PortoBelo Road, em Londres; ele, Veneno, Noivo, grana, e muita mulher.

E aconteceu que, no final da gira, e no final da grana, Noivo e Veneno tinham saído fora numa boa. Mas Toninho, que estava curtindo um lance de machão super-potente, tinha ficado bem caído, de saúde e de cabeça.

Mas o próprio Toninho sacava que o problema era que, apesar de conhecer a teoria, apesar de ter posto a teoria em prática numa boa; ele não tinha, naquela época, se livrado de determinados aspectos e fantasias da cultura machista na qual tinha sido criado – no lar, na escola, enfim, no Mundo dos Otários onde eu e você caro leitor, prezada leitora, habitamos.

Será que agora Toninho já tinha crescido o suficiente para viver a vida como um verdadeiro Malandro, e aguentar os retrancos com os quais as mulheres, as pessoas, a sociedade, e todo o Sistema, certamente iriam lhe responder?

Existem, sempre, as respostas “materias” do Sistema; dentre essas, evidentemente, a Polícia era uma instituição com a qual Toninho teria de tomar especial cuidado. Os maridos violentos, idem. Mas esta parte não era tão complicada assim, bastava pisar no chão devagarinho.

O problema maior era saber se ele, ele próprio, já estava livre dos esquemas mentais que castram a liberdade dos indivíduos: a necessidade excessiva de ter Poder, de ser admirado e paparicado, de ter status; a vaidade, o orgulho;  a falta de visão e comprensão a respeito das pessoas e situações.

Será que Toninho já estava “feito”?

 Gato escaldado tem medo de água fria.

 

ESTRANHAS “MEMÓRIAS”

E tem estes lances das “memórias” e “lembranças” dos 3 heróis: as maltas cariocas dos 1800s, os sinos da igreja, as praças como centros nevrálgico-sociais, Manduca da Praia e Sampaio Ferraz, o Cavanhaque de Aço.

Muito estranho.

Tudo bem; são os ancestrais mitológicos do capoeira, e tudo o mais. Mas, mesmo assim, é tudo, tudo muito estranho.

 

OS ESTRANHOS

E tem o Encantado – o Mão de Faca.

E o Predador; o Felino Negro, de uma outra dimensão, que mora dentro de Veneno.

Serão entidades diferentes mas da mesma “área”, da mesma forma que existem diferentes Orixás no Candomblé, e difrentes Anjos e Arcanjos e Demônios na Igreja Católica?

E a visão de Noivo?

Seus planos de intervir no Destino?

Sera que isto tambem não é sinal de algo extra-natural?

E, por outro lado, o extraordinário sucesso que Toninho tem com as mulheres; sera que o Encantado, que está na Terra para curtir os prazeres e desafios da materialidade, está pegando uma caroninha ao acaso com aquelas quatro mineiras maravilhosas?

 Lembrem-se do que Toninho Ventania comentou: “… incendiárias!”.

 

CAINDO NA REAL

Isto está até parecendo aqueles romances de batalhas de Arcanjos e Querubins, misturado com Guerra nas Estrelas, e Carie, a Estranha.

Não é.

Ou, ao menos, espero que não seja.

Pode até querer ser um pouco Matrix.

Pode querer ter aqueles flashbacks, que vão ao passado e voltam, do Pulp Fiction de Quentin Tarantino.

Querer ser um épico tipo trilogia Godfather – tanto nos filmes do Coppola, quanto nos escritos do Mario Puzzo.

Certamente gostaria que este livrinho tivesse a mesma magia que, tiveram na minha infância e pre-adolescência:

– os livros de Tarzan do Edgar Rice Burroughs – coleção Terra-mar-e-ar – ;

– o Sherlock Holmes de Conan Doyle, com seu violino Stradivarius, seus inacreditaveis picos de morfina e cocaína para administrar o tédio, e seus cachimbos de ópio;

– as belíssimas estórias-em-quadrinhos do Príncipe Valente, com os extraordinários  desenhos de Hal Foster;

– e Jack London com o Livro da Jangal, e Caninos Brancos.

Infelizmente não conheci Monteiro Lobato e Mark Twain, na infância.

Quando, adulto,  revisitei aquela ala da galeria, só brilharam alguns do Jack London e os desenhos do Hal Foster.

Já no final da adolescência, na saída dos anos de teenager:

– os Capitães da Areia do Jorge Amado,

– a Trilogia Encarnada do Henry Miller,

– a enciclopédica História dos povos de lingua inglesa do Winston Churchil,

– o Tender is the night e o Great Gatsby do Scott Fitzgerald,

-o Velho e o mar do Hemingway.

Mas já era tarde demais. Eu curti aqueles livros, é verdade. Mas nunca mais re-encontrei a magia das leituras dos livros de aventuras da infância.

Depois, é verdade tive a sorte de conhecer a Grande Arte do Rubens Fonseca, e os livros do Bukowvsky.

Estou divagando.

E apesar de não dever nada a ninguem. Nem de ter de escrever em determinado estilo (pois meus livros anteriores não fizeram um grande sucesso, que seria algo que aprisionaria o escritor àquilo que deu grana). A verdade é que não consigo escrever na maior, sem nenhuma restrição.

Tenho um grande medo.

Medo de ser chato.

Demos uma escorregadinha, é verdade, nos últimos parágrafos deste Intermezzo.

Mas já passou.

E não doeu tanto assim.

 

 

A ESTRATÉGIA DA ESQUIVA

Placido de Abreu foi um jornalista e escritor do fim dos 1800s. Era um intelectual fascinado pela capoeiragem, na época em que as maltas se agrupavam em dois grandes grupos: os Guaiamus e os Nagoas.

Placido de Abreu realmente viveu intensamente a capoeira, seus meandros e infra-estrutura, e nos deixou um livro – Os capoeiras (1886) – que nos proporciona surpreendentes insights do Império da Navalha – tiulo dado, pelos jornais e tablóides, ao conglomerado formado pelos políticos do fim do Império com as maltas de capoeira.

 Há pouco tempo o bando Guaiamu costumava ensaiar os noviços no morro do Livramento, no lugar denominado Mangueira.

Os ensaios faziam-se regularmente nos domingos de manhã e constavam dos exercícios de cabeça, pé, e golpe de navalha e faca.  Os capoeiras de mais fama serviam de instrutores.

… se os chefes (de maltas inimigas, ligadas aos Guaimus e aos Nagoas) decidiam que uma questão fosse resolvida em combate singular, enquanto os dois representantes das cores vermelha e branca se batiam, as duas maltas conservavam-se à distância e, fosse qual fosse o resultado, de ambos os lados rompiam aclamações ao triunfador.

A chegada da polícia desarticulava os dois grupos que fugiam de forma organizada.

Já existia, em 1886, não somente a capoeira com uma identidade e filosofia – a malícia -, mas também um método de ensino racional e estruturado para transmitir, não somente as técnicas – “constavam dos exercícios de cabeça, pé, e golpe de navalha e faca” -, como também o axé e o saber – “os capoeiras de mais fama serviam de instrutores”.

Já existia também uma “ética”: “se os chefes decidiam que uma questão fosse resolvida em combate singular, as duas maltas conservavam-se à distância e, fosse qual fosse o resultado, de ambos os lados rompiam aclamações ao triunfador”.

Além disto, vejam bem: “… os dois grupos fugiam de forma organizada”.

Certamente, além do Valente – um tipo social que existe em todos países do mundo -, já podemos sentir uns ares de malandragem – um tipo de estratégia social inicialmente carioca, e em seguida brasileira -; e de malandragem “organizada”!

Aliás, esta “fuga organizada”, que já é parte da malícia naquela época, vai ser citada por mestre Bimba como característica da capoeira baiana quase cem anos depois, en 1960:

“Quem aguenta tempestade é rochedo”

Ou seja, o capoeirista, que é um homem e não um rochedo, foge quando a parada é dura demais.

Então esta “fuga organizada”, que é citada por Plácido de Abreu em 1886, e também é mencionada por mestre Bimba por volta de 1960, foi incorporada definitivamente à malícia e vai dar na “estratégia da esquiva”, que prefiro chamar, carinhosamente, de A Arte da Esquiva . Em oposição à uma estratégia de “bater de frente”, ou de “bloquear”, de várias artes marciais; algo que tambem vemos no quotidiano extremamente competitivo do mundo Ocidental.

A esquiva, assim como a rasteira (o capoeira desce se esquivando, ao mesmo tempo que derruba o adversário), é parte do jogo; e também da maneira do capoeirista lidar com os “ataques” que sofre no seu dia-a-dia.

Esta Arte da Esquiva tambem poderia constituir parte de “uma maneira de ser brasileira”, poderia constituir um dos fundamentos de uma “Escola Filosófica Brasileira”.

 

 

Fim do capítulo 10

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