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Mestre Bimba

Mestre Bimba

No dia 23 de novembro de 1899 nasceu no bairro de Engenho Velho, freguesia de Brotas, cidade de Salvador, Bahia, Manoel dos Reis Machado. Teve como pai Luís Cândido Machado, caboclo de Feira de Santana. Sua mãe, Maria Martinha do Bonfim, era uma crioula de Cachoeira.
Logo ao nascer o garoto ganhou um nome que se tornaria símbolo e sinônimo da Capoeira. Isso graças a uma frase dita à hora do parto: – olha a bimbinha dele! Esta exclamação definiu o resultado de uma aposta entre a mãe da criança – que imaginava uma menina – e a parteira, que previra um menino. Ninguém seria capaz de pensar, naquele momento, que Bimba passaria a ser um nome destinado a acompanhar o futuro capoeira em sua entrada na história do jogo.
O aprendizado de lutas se iniciou com o pai, à época famoso lutador de batuque – uma antiga forma de luta negra. Aos 12 anos começou a aprender Capoeira com o africano Bentinho, capitão da Cia. de Navegação Bahiana.
Segundo suas palavras, o sistema de aulas à época era bastante violento. As rodas eram formadas na Estrada das Boiadas (atual bairro da Liberdade), em Salvador, num ritmo bravio ao som do berimbau. Mestre Bimba costumava recordar um golpe formidável aplicado por Bentinho, que o acertara na cabeça, provocando um desmaio até o dia seguinte…
Seu trabalho como mestre-capoeira iria distinguir-se pela divulgação do jogo em todos os recantos do país e a elaboração de um sistema próprio de treinamento e transmissão dos conhecimentos e técnicas do jogo: a Capoeira Regional Bahiana.
Graças aos seus esforços foi aberta a primeira Academia de Capoeira com autorização oficial. Esta seria a forma adotada por inúmeros mestres para obter e legalizar um espaço, onde a prática do jogo não sofreria o perigo de perseguições. Afinal, era o ano de 1937 e o país vivia sob uma ditadura – período que sempre se destaca pela generalização
das arbitrariedade e cometimento de toda sorte de violências pelos detentores do poder.
E o que era tolerado em um dia poderia ser reprimido no outro.
Em sua vida Bimba foi trapicheiro, doqueiro, carroceiro, carpinteiro. Mas acima de qualquer coisa e por todo o tempo, mestre de capoeira. Um dos maiores nomes deste ofício.
Ninguém melhor que um contemporâneo de Bimba para descrevê-lo brincando a Capoeira. Ramagem Badaró – de conhecida família bahiana da zona de cultivo do cacau, que foi enfocada por Jorge Amado em Terras do Sem Fim -, jornalista, advogado e escritor, autor do romance O Sol, deixou interessante relato acerca do mestre, no artigo intitulado
‘Os negros lutam suas lutas misteriosas; Bimba é o grande rei negro do misterioso rito africano’, publicado em Saga – magazine das Américas, no ano de 1944, em Salvador.
"Tinha uma difícil missão a cumprir. Encontrar um assunto para uma reportagem que não fosse sobre guerras, suicídios ou crime. Um assunto diferente que não proviesse da fonte comum de todas as reportagens da cidade. Das delegacias de polícia, do Necrotério ou da Assistência.
Porque os casos de delegacia são sempre os mesmos: roubo, crime e sedução. Os de Necrotério são anacrônicos e os de Assistência, banalíssimos. ‘Estava nesse dilema, quando passou um negro de andar gingante de capoeira. Tinha resolvido o problema. Lembrei-me de mestre Bimba e da velha Roça do Lobo. Fui até o bairro elegante dos Barris, em cujos flancos se derramam em desordem as casas de taipa da vala do Dique. Presépios de palha da miséria sem esperança dos homens do povo. Quando comecei a descer pela picada aberta na ladeira pelos pés
descalços e calosos daquela gente que nasce com o atavismo dos párias e a herança do infortúnio, já os sons dos berimbaus traziam aos meus ouvidos o cartão de Boas Vindas do terreiro de mestre Bimba.
Continuei descendo, até que de repente o caminho se alargou e se confundiu com o terreiro onde os homens lutavam Capoeira. O povo formava um círculo ao redor dos dois homens lutando.
Jogando Capoeira no centro do círculo.
‘O berimbau batia compassadamente, tin-tin-tin… tin-tin-tin… tin-tin-tin…
enquanto os homens pulavam, caíam, levantavam-se num salto e deixavam-se cair outra vez, se golpeando mutuamente. O povo batia palmas acompanhando a música dos berimbaus e cantando
o estribilho da Capoeira:

Zum, zum, zum, zum
Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum
No terreiro fica um…
Caí também no meio da turma e comecei a bater palmas e a tentar cantar o zum, zum da Capoeira (…)."
Badaró narra o instante que precede a entrada do mestre Bimba no jogo e a emoção que tomou conta dos espectadores.
"De súbito, o tin-tin nervoso dos berimbaus sumiu, calou-se, parou. Os berimbaus deixaram de tocar.
Os homens que estavam lutando também pararam. Com as roupas molhadas de suor desenhando nas dobras
do corpo os músculos possantes.
Os assistentes aplaudiram os homens que tinham acabado de lutar. E eles cantaram um corrido, agradecendo os aplausos.

Ai-ai de lelô
Iem-ien de lalá
Adeus meus irmãos
Nós vamos rezar
‘Nesse momento gritaram:
– Mestre Bimba vai lutar!
‘Todo mundo se voltou para trás, batendo palmas e gritando.
– Mestre Bimba… mestre… viva… viva… vivôôôôôô.
‘Um preto agigantado entrou no círculo formado pelo povo. Sorrindo. A multidão aplaudiu com mais força.

  

O sol bateu-lhe de rijo no rosto escuro, iluminando-lhe as feições. Era de fato, alto. O rosto oval.
Os olhos fundos escondidos numa testa saliente. Nariz chato. Carapinha rala quase careca. E um bigode pequeno, ralo, em forma de triângulo sobre os lábios grossos. Mas no conjunto era simpático.
O jornalista narra a forma como Bimba se prepara para jogar, enfatizando a aura de respeito que envolvia o famoso mestre. Uma disputa de versos antecede o confronto na roda de Capoeira.
"Quando Bimba entrou no círculo os berimbaus começaram a ensaiar uns toques. E a multidão que enchia o terreiro aplaudia freneticamente o seu ídolo.
Nisso, um crioulo possante entrou no círculo, aceitando o desafio. E o povo comentou a coragem daquele homem que ia lutar com Bimba. Porque entrar numa luta com Bimba sem ser convidado por ele é procurar encrenca. Mesmo sendo mera demonstração.
Porque ele é o rei da Capoeira. Os berimbaus ensaiaram um toque e um dos homens perguntou:
– Qual é o toque? – São Bento Grande Repicado, Santa Maria, Ave Maria, Benguela, Cavalaria,
Calambolô, Tira-de-lá-bota-cá, Idalina, ou Conceição da Praia? ‘Bimba pensou rapidamente e disse:
– Toque Amazonas e depois Benguela.
‘Os berimbaus começaram a tocar. O crioulo aproximou-se e mestre Bimba apertou-lhe a mão.
E o povo começou a acompanhar o tin-tin-tin dos berimbaus, batendo palmas.
Bimba balanceou o corpo e cantou:
No dia que eu amanheço
Dentro de Itabaianinha
Homem não monta cavalo
Nem mulher deita galinha
As freiras que estão rezando
Se esquecem da ladainha
‘Mas o crioulo não ficou atrás e cantou, negaceando o corpo no compasso dos berimbaus.

A iúna é mandingueira
Quando está no bebedor
Foi sabida e é ligeira
Mas capoeira matou
‘Palmas festejaram o repente do crioulo. Porém, Bimba não deu tréguas à vitória do outro. E respondeu:

Oração de braço forte
Oração de São Mateus
Pro cemitério vão os ossos
Os seus ossos, não os meus
‘Novamente o povo aplaudiu e cantou o estribilho da Capoeira:

Zum, zum, zum, zum
Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum
No terreiro fica um…
‘O crioulo, entretanto, não deixou cair a quadra de mestre Bimba e replicou:

E eu nasci no sábado No domingo me criei E na segunda-feira A Capoeira joguei’A multidão deu vivas e bateu palmas para os dois lutadores no centro do círculo.
Uma preta comentou:
– Bom menino! Se é bom na briga como é no canto, boa parada para Bimba.

Começa então a disputa na roda e Ramagem Badaró conta com detalhes até o momento final:
"Os dois lutadores negaceavam os corpos ao som da música dos berimbaus. Um defronte do outro.
Olhando-se dentro dos olhos, se estudando mutuamente. O crioulo foi o primeiro a começar.
Fazendo algumas fintas, procurando descobrir as partes fracas do adversário.
E mestre Bimba aparentemente deixava-se cair nas ciladas do outro. O crioulo foi começando a tomar gosto e abrindo mais a própria guarda, concentrado no ataque.
A multidão no terreiro da Roça do Lobo, continuava acompanhando com as mãos o tin-tin-tin dos berimbaus. E a cantar em coro o estribilho da Capoeira:

Zum, zum, zum, zum
Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum
No terreiro fica um…

‘Enquanto isso os lutadores continuavam negaceando os corpos, procurando descobrir os pontos fracos do adversário.

‘De repente, pararam de súbito. E ficaram mudos de atenção, apreciando o ataque.
O crioulo avançou rápido, levantou uma perna e deu uma meia-lua-armada pela direita de Bimba.
Porém, não deu resultado, porque Bimba foi mais rápido. Deixou-se cair na guarda, enquanto tentava puxar o adversário numa rasteira.
Mas, o crioulo também era ligeiro e livrou-se do golpe com um aú pela esquerda. Bimba insistiu, tornando a atacá-lo. Tentando pegá-lo numa cabeçada presa. Porém o crioulo contra-atacou com uma calcanheira violentíssima. Entretanto Bimba livrou-se agilmente com um formidável pulo mortal.

‘Os berimbaus tocavam com mais frenesi. Demonstrando a excitação nervosa dos tocadores.
Também as palmas de acompanhamento diminuíram muito, quase cessando.
‘Enquanto isso a assistência completamente em suspenso, apreciava a luta nos seus mínimos detalhes.

‘Bimba notou que tinha bom adversário. O crioulo era bom de verdade. Manhoso, ágil e corajoso.
O crioulo começou a se afastar de Bimba como se fosse dar-lhe as costas numa fuga. Bimba percebeu de relance o truque do adversário e ficou em guarda. Os músculos completamente controlados, prontos
para aproveitar aquela oportunidade.
Como ele esperava, o crioulo deu-lhe completamente as costas, como se fugisse da luta. Esperando que ele caísse no velho truque da Capoeira e mergulhasse num arpão de cabeça, dando-lhe a oportunidade
de contra-atacar com um mortífero arpão de joelho.
Mestre Bimba, que já previra o golpe, defendeu-se com uma negativa. Puxando ao mesmo tempo a única perna do crioulo apoiada no chão, com uma violenta rasteira. Pegado de surpresa, o crioulo perdeu o
equilíbrio, subiu e desabou no terreiro.
Uma gritaria retumbante festejou a sagacidade de Bimba. Todo mundo ficou excitado, menos mestre Bimba.

‘O capoeirista caído, levantou-se com a mesma rapidez com que caíra. Porém, estava raivoso, com o sangue fervendo nas veias. Danado de raiva e meio descontrolado.
E afastou-se de Bimba, sempre negaceando o corpo, procurando desanuviar a cabeça.
A assistência gritava e batia palmas acompanhando o tin-tin-tin nervoso da orquestra dos berimbaus e o xiquexique dos chocalhos de vime, cantando sempre o estribilho da capoeira:

Zum, zum, zum, zum
Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum
No terreiro fica um…

‘Nesse instante o crioulo voltou novamente para o centro do círculo. E avançou para Bimba tentando pegá-lo numa vingativa pela esquerda. Não acertou e tomou uma vaia.
O crioulo se descontrolou e avançou louco de raiva. Tentou apanhar Bimba com um golpe de cotovelo e um sopapo galopante. Mas Bimba não se deixava alcançar.
Continuava negaceando o corpo, sempre fintando, por meio de rápidas escapadas. A multidão delirava.
Isso, entretanto, lhe distraiu a atenção.
Fazendo com que relaxasse a vigilância da sua guarda. E o crioulo soube tirar partido desse descuido.
Aproximou-se veloz, levantou a perna e deu-lhe uma bênção em pleno peito.
Mestre Bimba pressentiu o golpe e tentou livrar-se.
Foi ligeiro. Mas não o suficiente para se livrar completamente do golpe.
O peito lhe doeu e a sua vaidade também. Porque as palmas do público festejavam o crioulo.

‘Bimba não deu tréguas à vitória do outro.
Avançou para o crioulo fingindo ir dar um balão açoitado. Depois, ensaiou uma palma e levantou a perna como se fosse dar uma bênção. O crioulo ficou todo confuso com a rapidez e a sucessão dos golpes.
Pensou que aquele último golpe era o verdadeiro ataque que Bimba queria fazer e procurou defender-se caindo numa rasteira.
Viu o seu erro e tentou derrubar Bimba com uma encruzilhada. Também errou e mestre Bimba dominou-o com um tronco de pescoço, antes que ele pudesse livrar-se num balão.
Tinha vencido a luta. O povo invadiu o terreiro aplaudindo o rei da Capoeira. Bimba abraçou o adversário.
E o crioulo mostrou que era homem mesmo. Cantou:

Santo Antônio pequenino Amansador de burro brabo
Amansai-me em Capoeira com setenta mil diabos

‘Bimba gostou do elogio e retribuiu, cantando:

Eu conheci um camarada
Que quando nós andarmos juntos
Não vai haver cemitérios
P’ra caber tantos defuntos
‘A multidão tornou a aplaudir e mestre Bimba abraçou o crioulo (…)."

Com sua incursão no terreiro de mestre Bimba, Ramagem Badaró conseguiu sua reportagem e escreveu bonita página sobre a Capoeira desse tempo, mostrando-nos mais uma vez o quanto é solidária a
autêntica manifestação da luta, nessa arte.

Mestre Bimba dedicou-se ao jogo até o final dos seus dias.
Em seus últimos anos de vida, deixou a Bahia e veio para Goiás, atraído pela possibilidade de encontrar o reconhecimento a que fazia jus.
No ano de 1974 mestre Bimba deixou definitivamente o convívio da família, amigos e discípulos e passou a ocupar lugar de destaque na memória da Capoeira.. "


Curiosidades:

Mestre Bimba só aceitava na sua academia alunos que tivessem a carteira de trabalho assinada, fossem estudantes ou tivessem alguma ocupação reconhecida.

"Esquenta Banho" era a senha que mestre Bimba dava a seus alunos para um jogo rápido, apressado. A expressão nasceu após as aulas, quando Bimba obrigava os alunos a tomar banho frio, ligeiro, porque a caixa de água era pequena.

Mestre Bimba entregava aos seus discípulos um lenço azul após a conclusão do curso, um lenço vermelho após a primeira especialização e um lenço amarelo após a segunda especialização.

A luta de Bimba que demorou mais tempo durou um minuto e dois segundos.

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