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Bahia: Forte protegido

Vigilante, a capoeira tem no Santo Antônio uma espécie de lar com o qual mantém relação de amparo mútuo

“Nasci para ser contestadora”, diz a capoeira, sentada aqui em frente, personificada sobre o banco de madeira no salão que aguarda os pingos de suor se tornarem muitos na roda de logo mais. Ela agora está tranqüila, é mestre Moraes, honra e glória do Forte do Santo Antônio, seu lar. Quase um quartel de convivência naquele quadrilátero que um dia foi erguido para defender a cidade, ocupado por gente que queria manter a arte nobre, negra, necessária para deixar acesa a chama da História da Bahia. Hoje são tempos melhores e o mestre abre o sorrisão durante a conversa. Mas nem sempre foi assim.

O Ato Institucional no5 fazia pipocos ecoarem pelas avenidas, mas Pedro Moraes Trindade estava em alto-mar, na viagem entre a sua terra e o Rio de Janeiro, o fuzileiro naval segue para fazer curso pela Marinha. Na recém-destituída capital federal, iria dar seqüência ao que tinha aprendido anos antes, nas ruas ocupadas por prostitutas e meliantes. Era ali, em uma portinha original de um casarão remanescente, no Largo do Pelourinho, 17, na academia do mestre Vicente Ferreira, o Pastinha, hoje restaurante do Senac, que os mestres João Grande e João Pequeno o ensinaram a voar no molejo da luta batizada com aquele país irmão-colônia. “Mas lá no Rio ninguém conhecia Angola”, reverbera, indignado, com o estilo que o acompanha até hoje. A solução foi passar o conhecimento, estava formado o primeiro grupo para fluminenses, que começaram a perceber que a Bahia é mais África do que aparenta. O som do berimbau no clube Gurilândia, escola primária de classe média, ecoava em Botafogo.

O AI-5 pára tudo no país, mas ela avança. E já em 80, ainda no Rio, mestre Moraes funda o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho, o GCAP. “Não me interessava perder a identidade com as minhas origens”, diz como quem dá um martelo, marca terreno. Três anos depois, volta às raízes e busca, em Salvador, um espaço para dar continuidade ao grupo. É o pós-ditadura, o recomeço.

O forte é legal, é mais ou menos perto do velho largo, mas está repleto de moradores de todos os becos imaginários, verdadeiros sem-tetos que ocupam e fazem a história em Salvador. Ainda assim, foi entrando. “A escola funcionava ali em cima, era o lugar de mestre Ezequiel antes de ele morrer”, aponta para o céu, na direção do antigo primeiro andar, onde existiam celas, derrubado na mais recente reforma do espaço, motivo de controvérsia, conforme dito.

A situação era difícil. “Teve dia de eu entrar aqui e o tiroteio começou a acontecer”, lembra ele, resistente.

Abandonado, o forte vivia ao léu, não havia chaves para trancar o portão principal. Cada um tinha a da sua cela, da sua sala.

A essa altura, já havia acontecido a transferência dos presos, realizada em 1978, para o Presídio Regional, no bairro da Mata Escura. O Estado inicia as investidas, como uma batalha na qual, dessa vez, o forte não é parte na contenda, e sim, o objeto a ser conquistado. Em 80, é feita a proposta de transformar o forte em centro de cultura popular, sob o projeto do arquiteto Paulo Ormino. No ano seguinte, são iniciadas as obras de limpeza e reparo para o centro, que não vinga.

E os anos passam. Ilê Aiyê deixa a senzala do Barro Preto e ali faz os ensaios. Grupos de rock encontram no lugar palco bom para shows. Antes, o bloco carnavalesco Os Lord’s também ensaia para, na época, os três dias de Carnaval. A capoeira dali não sai, sempre à espreita, vigilante. Assiste a tudo, certa. “Foram cortadas água, luz, não tinha segurança. E a gente segurou a onda”, orgulha-se o mestre Moraes.

Em 97, surge novo projeto que tenta transformar o forte em casa das filarmônicas. Após o início das obras, são descobertos elementos de valor arquitetônico, como a cisterna que hoje ocupa o centro do pátio. Nova paralisação dos trabalhos.

A bandeira angolana, pregada que está no teto do salão, começa a tremular justamente quando acontece a virada da história da capoeira no Forte de Santo Antônio. Finalmente, as tratativas são iniciadas com a Secretaria de Cultura para transformar o lugar em forte da capoeira, em 2004, ano em que Moraes, multi-artista, concorreu ao Grammy – um dos prêmios mais importantes da música mundial –, com o disco Brincando na roda. Dessa vez, as obras seguem em ritmo alucinante para, no final do ano passado, estarem prontas.

Nesse ínterim, nem tudo são flores. Relações tensas nasceram naturalmente. E briga boa é com ela. Quiseram criar crachás para quem fosse jogar no forte. “Dizer quem é quem? Para um capoeirista? Todos são capoeiristas e basta”, esbraveja o mestre. “Ela não é para ser vista como folclore. Ela questiona a postura do poder”, abre a meia-lua inteira, sopapo, ele que é professor da língua inglesa, na rede estadual de ensino médio e fundamental, além de mestrando em história social na Ufba, o que o também credencia para aqui falar o idioma da sua gente, vencedora.

E ao lado de Moraes, no salão ali ao lado, está o mestre João Pequeno de Pastinha, o discípulo nonagenário. Completou no último dia 27. A dupla da salvação. “Se não fossem esses dois capoeiristas, o forte já estaria destruído”, altiva a voz outra personificação. Agora, estamos no vale que um dia foi palco de manifestações do candomblé, terreiro famoso, lá está outro adepto. José Leal trabalha hoje na Cesta do Povo do Ogunjá e traz na lembrança aquelas recordações de quando ficou à frente das obras para a recuperação do forte como o burocrático gerente de patrimônio imobiliário do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac). “Eram diversas famílias entre drogados, homicidas, prostitutas, traficantes e alguns por necessidade que ocupavam o local”, lembra. “Algumas famílias tiveram indenização pecuniária, enquanto outras foram relocadas para outras partes da cidade”.

Leal informa que o forte encontra-se situado na área poligonal traçada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para o tombamento do Centro Histórico de Salvador. “Lá é o ponto limítrofe”, explica ele, que participou das terceira, quarta e quinta etapas de reforma do Pelourinho.

Recorda de dois grandes aprendizes e braços-direitos do mestre Pastinha. João Pequeno e João Grande, que resolveu mudar de ares e hoje está na Califórnia, nos Estados Unidos. De Pequeno, reverencia-o como o pioneiro no espaço ao fundar, em 1982, o Centro Esportivo de Capoeira Angola (Ceca). “Tudo aquilo ali é fruto da capoeira, ela e o forte historicamente se complementam”, diz.

O mundo também é uma roda. Jogam capoeira aproximadamente oito milhões de pessoas no mundo em mais 180 de países. Só na rede mundial de computadores, já são mais de três mil sítios.

O entusiasmo cresce. A idéia é criar uma forma compartilhada de gestão entre o Estado e a Capoeira, com maiúscula mesmo, elevada à condição agora oficial de transformadora da sociedade. E recrudescem os esforços para que ele se torne uma política pública, independente do governo que esteja aí. “É uma obrigação constitucional preservar a memória de um povo e a capoeira está nesse contexto”, advoga Leal.

Existem ainda propostas nobres a serem postas em prática como a preservação da biriba, árvore da qual se faz o berimbau. “Se não for dela, o instrumento é falso”, determina.

A agora vibração está presente ao falar dos mestres que hoje dão seqüência à arte e à luta dos irmãos Moraes e João Pequeno: Curió, Boca Rica, Nenel. E, claro, dos trabalhos de reforma.

“Eram mesmo lendas as histórias de túneis que ligam o forte de Santo Antônio ao do Barbalho e para o Comércio, que teriam sido feitos pelos jesuítas, não tem nada lá.”, esclarece. “E a cisterna descoberta tem autonomia para até 750 mil litros de água”. E conclui, conclamando: “a capoeira não aceita tutela, ela parte para o confronto. Que agora é o político”.

De volta ao forte, em uma confortável sala recém-inaugurada na antiga administração, sente-se o choque térmico com o ar-condicionado trabalhando bem. O atual gestor do lugar, Magno Neto, representante da Secretaria da Cultura, rabisca as prováveis futuras atrações do Santo Antonio, que não se resumirão à capoeira. “Vamos fazer alguns shows aqui, mas nada muito pesado, algo mais intimista para preservar o lugar”, adianta.

A presença constante de um representante do Estado dentro do forte é algo novo. E, antes de se ajustarem – capoeira e o Poder Público, – tensões se formam. Os capoeiristas ainda não engoliram a rusga criada no último 20 de novembro, dia da Consciência Negra. Com uma programação definida, com várias rodas para comemorar a data, receberam ofício 48 horas antes solicitando que a programação fosse suspensa para que fosse realizada uma premiação de uma regata internacional que acabava de acontecer. “Foi um desrespeito e não mudamos nada”, reclama o mestre Moraes. Os dois eventos aconteceram simultaneamente.

Um mês depois, a paz está selada. Ou não, pode ser apenas uma trégua. E a renovação é necessária e aí gritam lá do largo perguntando ao seu vigia se o espaço está aberto à visitação.

Resposta afirmativa, lá vem curioso o carpinteiro Leonardo Cruz, já sem as mãos dadas com o filho Júnior, 9 anos. Pára na cisterna recém-descoberta, espia as grandes fechadas que dão acesso aos salões. “Quero que meu filho seja capoeirista”, diz ele. “Já joguei muito, gostava daquela capoeira malandra”, sorri.

A noite chega. Com ela, mestre Moraes.
O Forte de Santo Antônio terá ainda muitos anos de vida.

Fonte: Correio da Bahia, Brasil – http://www.correiodabahia.com.br

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