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Capoeiristas homenageiam 119 anos de mestre Pastinha

Matéria retirada do Correio da Bahia, onde o Jornalista Ciro Brigham, faz uma justa a merecida homanagem a Vicente Ferreira Pastinha.

Maior ícone da capoeira angola morreu há 26 anos, mas continua vivo na lembrança dos discípulos
 
Era o maior de todos e, ainda assim, só media 1,56m. Faria, hoje, 119 anos. Número longe de ser redondo. Mas para quem conhece a história de Vicente Ferreira Pastinha, qualquer referência à sua trajetória merece a dignidade mínima de bolo e velas. O pequeno gigante, rebentado em fins do século XIX da relação entre um espanhol e uma negra, resgatou a capoeira angola da marginalidade.
 De uma tradição agonizante e estigmatizada, transformou-a em orgulho difundido, filosofia de vida apreendida e repassada na roda, malícia institucionalizada em gingado lento. Guardiã inquebrantável da cadência angoleira, a imagem de mestre Pastinha, morto há 26 anos, recusa-se a deixar os holofotes. Para o bem da posteridade, ele é patrimônio indissolúvel daquilo que ajudou a eternizar.

“O homem é eterno copiador. Só aprendi o primeiro livro. O resto, a vida me ensinou”. Ensinou, por exemplo, que caberia a ele a condução dos destinos da capoeira angola. Que deveria tirá-la da desordem das ruas escuras, cenário do qual o próprio Pastinha – “adornado” com sua faca de dois cortes na cintura e uma pequena foice no cabo do berimbau – fazia parte naquele início de século XX. Bateu, sim, em “policial desabusado em defesa da moral e do corpo”, como deixou escrito. Com ele, ninguém podia. “Na hora da precisão, fazia miserê com as pernas”, já depôs mestre João Grande, 77, hoje em Nova York.

Tutor – Emanado da vadiação, o mulato inflamado – que na infância trocou a pipa por aulas de capoeira com um octogenário (velho Benedito), para deixar de apanhar dos mais velhos na rua – transformou-se em tutor de uma ancestralidade que defendeu, enquanto foi vivo, das influências capazes de eviscerar o lúdico e ortodoxo sistema de jogo. Não queria vê-lo transmutado em algo como a acelerada e reestilizada capoeira regional, obra de outro gigante, seu contemporâneo, mestre Bimba.

Pastinha levou a capoeira das ruas para rodas em locais fechados e adequou regras de jogo aos ritos africanos, banindo a brutalidade e metamorfoseando possibilidades mortais em representações de risco absolutamente controlado. Trajes impecáveis (em amarelo e preto, as cores de seu Ypiranga), dogmas, obediência: era uma nova maneira de conceber capoeira, com a pedagogia do esporte a entranhar na carne do bailado afro-baiano.

“Ele não criou a angola, criou um tipo específico dentro da capoeira, mais condizente com os preceitos tradicionais”, esclareceu o pesquisador Frede Abreu ao repórter Alexandre Lyrio, em matéria publicada no caderno Correio Repórter de 25 de fevereiro de 2007.

Ensinamentos chegam à África

Com a notoriedade de Pastinha, as fronteiras da capoeira angola se alargaram. Depois de Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Brasília, o mestre ousou atravessar o Atlântico para demonstrar a arte de sua turma. Na inversão da diáspora, aterrissou em solo senegalês em 1966, acompanhado de José Gato, João Grande, Camafeu de Oxóssi, Gildo Alfinete e Roberto Satanás. Na capital Dakar, Pastinha foi recebido com louvores no 1º Festival Mundial de Arte Negra (1966), e mostrou do que os capoeiras baianos eram capazes.

Tudo o que acumulou em fama e prestígio não o fez em bens materiais. Sempre solícito, Pastinha teve sua imagem usada e abusada por muita gente. E, a exemplo de outros velhos mestres, amargou final trágico, no esquecimento. A primeira rasteira veio em conseqüência de dois derrames cerebrais: ficou cego. Em 1973, o despejo temporário da academia se tornaria definitivo: o Centro Esportivo de Capoeira Angola daria lugar ao restaurante do Senac, no Largo do Pelourinho.

Pastinha foi obrigado a transferir suas atividades para a Ladeira do Ferrão (Ladeira do Mijo).
Empobrecido, sem fonte de renda e na escuridão, o velho mestre sucumbiu à crise e expôs sua amargura. “Nada vejo. Nada, absolutamente nada. Trevas, trevas, estou na miséria”. E mesmo assim, ainda jogava capoeira como ninguém, obrigando os alunos a manter distância. Em 1979, a última tentativa de reerguer a academia a levaria para a Rua Gregório de Matos, 51. Foi por pouco tempo: quem aparecia, queria aula de graça.

Com a capoeira em alta e sua moral em baixa, mestre Pastinha morreu no dia 13 de novembro de 1981, aos 92 anos, no Abrigo Dom Pedro II. Deixou para mais de dez mil alunos aquilo que herdou dos negros das senzalas e, para a capoeira, a contribuição de um mártir.

Sacerdote da prática angoleira

O filho de José Siñor Pastinha e Raimunda dos Santos nasceu em 5 de abril de 1889 e sua estada na escola resumiu-se à alfabetização. Viveu na Rua do Tijolo, passou pela Marinha ainda adolescente, foi pintor de parede, apontador de jogo do bicho e leão-de-chácara. Chamado por Totonho de Maré e Amorzinho à responsabilidade de “mestrar”, não titubeou. Perspicaz e inteligente, aprendeu com as limitações da vida e tornou-se professor, filósofo, sacerdote.

Como cabe aos mestres, misturou vida e obra numa caldeira só, deixando lições apropriadas de um letrado. “Ninguém pode mostrar tudo o que tem. As entregas e revelações devem ser feitas aos poucos. Isso serve na capoeira, na família e na vida”, sugere, num dos manuscritos que hoje compõem o acervo da Associação Brasileira de Capoeira Angola (ABCA), com sede no Pelou-rinho.

Justamente aos poucos, durante as quatro décadas que esteve à frente do Centro Esportivo de Capoeira Angola (Ceca), criado por ele em outubro de 1941 (só conseguiu registrar e fazer o estatuto em 1952), é que Pastinha consolidou sua condição de “velho mestre”, patenteando o legado da tradição em contornos cada vez mais distantes da aura de “arruaça”, emprestada aos que aterrorizavam a capital baiana até o início do século XX. O relato de mestre Gildo Alfinete, que se diz seu eterno discípulo, dá conta dessa ousadia. “Ele criou um centro para uma arte que era totalmente discriminada. Diziam que ele ia ficar maluco, morrer ou perder todos os amigos”.

O que aconteceu não foi bem isso. A reputação deu-lhe amigos e admiradores ilustres, como o artista plástico Carybé, o boêmio Camafeu de Oxóssi e o fotógrafo e pesquisador francês Pierre Verger. Jorge Amado talvez tenha sido um dos melhores. “Mestre Pastinha, mestre da capoeira de angola e da cordialidade baiana, ser de alta civilização, homem do povo com toda a sua picardia, um dos seus ilustres, um de seus Obás, e seus chefes. O primeiro em sua arte, senhor da agilidade e da coragem, da lealdade e da convivência fraternal”, escreveu o literato em Bahia de Todos os Santos.

Discípulos, então, Pastinha fez aos montes: o próprio Gildo Alfinete, João Pequeno, João Grande (há 20 anos em Nova York), Satanás, Boca Rica, Papo Amarelo, Natividade, Malvadeza, Bola Sete e Tom Zé. Isso mesmo, o tropicalista de Irará passou, ainda menino, pela academia de Pastinha.

Fonte: Correio da Bahia – http://www.correiodabahia.com.br

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