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O Mestre de Capoeira

Há dous mil anos te mandei meu grito
Que embalde desde então corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus ? …
(vozes da África, Castro Alves)


Na vida das Américas o Mestre de Capoeira –  negro ou não negro, mas imbuído dessa negritude própria da Capoeira – tem assumido o mister, diria ímpar de ajudar conduzi-lo, ao negro, a passar pelas dores das tantas feridas; aplacar às tantas  carências; vislumbrar um horizonte, não se sabe a que distância, mas capaz de não lhe deixar extinguir os vestígios de honradez e bondade; a capacidade de amar, tolerar e lutar. Dentre estas faculdades está a de cantar.
 
            O que é cultura? – Cultura, para Mestre Benício, "é a luta do homem para preservar o Mundo; e a tolerância do Mundo para conservar o homem". E explicava mais o diabo do sabido "africano":  "a primeira e mais permanente das manifestações culturais, é comer" e reafirmava redundante – "comer, comer de comida". E aduzia, olhar distante – "a segunda é cantar"; completava a sua lista, com a crença. "A crença é mais importante que a comida, – explicava – o homem tem na crença o último ato antes da morte: todos morrem agarrados na crença." Atravessando, João Pequeno clareava – "a crença! e não a fé. A fé é um aleijão! Fé é o único substantivo que não forma verbo" –  provava o "agnóstico".
 
           No meu lugar, região de criadouro de gado, as manifestações de África se juntaram às de mouros e cristãos; ciganos – de europeus em fim. A Capoeira ali deu lugar aos diversos tipos de samba, os chulou até o baião. Os vestígios de Capoeira eram "coisas" de meninos se exercitarem, sem nenhum conhecimento de importância; afora isto só histórias  – Histórias, curiosidades e desejos… Por que da zebra? …"a zebra é o animal tipo cavalo ou jumento que nunca  se amansa," assim ia até a "capoeira". A Capoeira não tem fim!…
 
            Mestre Benício se punha a falar dos  Mestres de Capoeira. Para tudo na África tinha seu mestre. O Mestre se confunde com a própria África e sua História. Hoje, o Mestre e o futuro do negro se confundem.. Citou muitos nomes, desde as lembranças de África:
 
–          "Analfabetos ou pouco-letrados, assumem o domínio do povo, de dentro e de fora da Roda. Os da Roda amam-lhes como a seus pais, os de fora passam a compreender-lhes; – se repetir a visita – passa a amá-los, quase sempre. Antes não dependiam das cidades, pós libertação são necessariamente urbanos-periféricos. Quase todos vivem num ambiente limitado; numa visão missionária, há os que imprimem viagem mundo afora. Conforto restrito, quase de pobreza material absoluta; de tão absoluta  suprem-na, no seu imaginário, com um encanto intelectual não se sabe de que origem; mas encanta, cativa, prende o interlocutor qualquer que seja. Aduziu mais algumas considerações a este perfil  e contou-nos da simbiose homem-arte-crença. – "Adquirem eles todo o orgulho do seu estado, da sua condição. Sabe, ou recebe dos seguidores, ser uma marca de superioridade do seu meio; uma marca de elevação, de supremacia, de predomínio, que nem um outro ser humano  consegue", e prosseguiu, impassível, não diria sádico, mas sem um gesto de dó – " na sua grande maioria, como que errantes, e os são, esguios pelos exercícios estafantes e o mau passadio; paupérrimos, ostentam, num diapasão de consciente prestígio, os valores da inteligência voraz, iletrada e bravia – senhora de si – apoiados na reverência dominadora, de um lado; de outro na crença que só é possível em quem julgar ser responsável por uma banda do Mundo". Depois de tecer explicações do caminho percorrido, ou a percorrer, cala-se um pouco e depois – "No passado muitos eram sapateiros, estivadores e tantos ferreiros, com forjas ordinárias no quintal acanhado da casa rota; alguns alfaiates – Mestres de Capoeira são vaidosos, gostavam de ostentar as mãos finas; hoje tantos são pedreiros, serventes, pequenos comerciantes, carpinteiros, tantos meros biscateiros. Os que têm (tinham) meios de vida, afora a Capoeira, a tudo abandonam, se um projeto lhe surge – viagens noutras paragens, no estrangeiro, nos navios, para "levar a tradição". Ao que,  depois de longo silêncio, João Pequeno, garimpeiro não negro, deu uma pitada: "Homens que não podem resistir à magia poderosa do canto, da luta, da exibição física e intelectual; para uns, eles (Mestres) vivem para encantar o público;  para eles mesmos – "quase uns visionários, …  não há alguém que mais acredite na sua atividade…", – pedindo desculpas devolve a palavra ao Mestre Benício, que vai falando, agora dos seus receios – "Das recompensas materiais, pouco se sabe, o que se vê é que são muito inferiores às alegrias que proporcionam; de visível é que tudo fazem pela fama, pelos comentários, os elogios, pela admiração do povo, de cada e após cada luta, cada apresentação continuam como antes, eu nunca quis saber  como chegam em casa, de mãos vazias, a cada dia; lhes contam  de seu – sempre queridos, cercados; trilhando soberbo e doce; na morada, afora grande acervo de áudio e vídeo – nada tem que passe de um mocambo, muitos vivem assim – "Eu gosto é de elogio e não de crítica" – diz cada um, com sinceridade absoluta.
 
            O medo – naquele ano Mestre Benício tinha viajado, foi queimar os minguados de alguns diamantes faiscados. Naquele lustro a bossa nova atingia o seu ciclo de vida, havia um burburim de sons e rítimos; a juventude a tudo contestava e os adultos – a nada davam importância, que não fosse estrangeiro. Dos transeuntes, corpos e roupas espalhafatosas – praça qualquer, de uma cidade qualquer. Para  a Roda, de rua: pessoas simples e seus instrumentos arcaicos em quantidade regular, prontos para a Roda, na espera dos Mestres, na rua é número incerto.  Ofertado, como a um ritual,  o momento de abertura ao Mestre mais velho, – solene e singelo – IÊ!…
 
            "Ninguém interrompe. Não há insulto, censura, pilhéria, desatenção. Há silêncio, silêncio não, as mãos batem palmas, obedecendo aos ditames do Mestre. Todos como se mamulengos fossem – atados nas mãos, nos olhares, nos gestos do Mestre. Ninguém na assistência  entende das canções quinhentistas, curtas, breves – só a música, a melodia imobilizando a todos. O primitivo berimbau imobilizando tantos jovens afeitos à instrumentação eletrônica. Vozes desencontradas, outras afônicas, mesmo porque raros são os Mestres que têm boa voz; dentre os da Roda poucos, ou ninguém conhece teoria de canto, ao contrário da assistência. Das vozes, desacordadas, de agradável sonoridade só o berimbau, o som de uma corda, encantado anulando o descompassar das vozes, coro piorado pelo participar dos visitantes." E prossegue o Mestre Benício falando do seu medo – "aquela juventude bem trajada uns, espalhafatosos tantos; homens e mulheres de roupas finas – um bando de incapazes se queixando da "ditadura" – pareceu-me estarem ali para vaiar, avacalhar, um frio na espinha… Que nada, enganei-me – todos ali, fazendo coro e batendo palmas… alguns até entraram na Roda só para cumprimentar o Mestre, de perto, abraçar, afagar, fotografarem-se. ALIVIO!, como se eu tivesse  algo a haver com aquilo." E arremata da última viagem – "felizmente vi, soube e até conversei, com alguns Mestres doutores, de anel no dedo, e olhe que todos novos, não me lembro de ninguém com mais de 50 anos, soube também de muitos nas universidades, como vi, eu próprio, muitos das universidades entrando na Capoeira…"
 
            Fogos na serra, ao longe, denunciava a chegada dos repentistas, Mestre Benício se apressa: – "Vocês já viram um vulcão? Mas sabem o que é, não sabem?!. "O vulcão não é o morrão, não é o buraco no centro dele, não é a lavareda de fogo que sai, não. O vulcão é tudo junto. É um dos equilíbrios da natureza. O vulcão não  se importa com quem está em baixo ou em cima, cumpre o seu papel. Sem ele pipocava fogo a qualquer hora, em qualquer lugar – no nosso quintal, na nossa casa…" e completou – "Assim é o Mestre de Capoeira é um dos elementos de equilíbrio das sociedades do Mundo. O negro é parte da sociedade, assim como a África é a parte mais importante do Mundo. Sem o negro e sem a África, viver-se-á assim, o fogo explodindo em todo lugar, a toda hora, ferindo, matando a qualquer um…. Até que o Mestre possa cumprir o seu papel" Assim falou Mestre Benício.
           
Andre Pessego, Berimbau Brasil, SP/SP

[email protected]

 

Berimbau Brasil, SP/SP

Mestre João Coquinho

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