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A espinha dorsal do samba

A quadra da Estácio de Sá está vestida de chita, tema do enredo deste ano. O look florido e colorido casa muito bem com o clima do evento daquela tarde: o Encontro de Galerias da Associação de Velhas Guardas de Escolas de Samba do Rio de Janeiro. São 13h e a área ainda está vazia. Os anfitriões, membros da velha guarda da Estácio, já estão por ali, devidamente uniformizados – as mulheres de vestido vermelho e chapéu branco, os homens de camisa social vermelha e calça branca. Movimento intenso só na cozinha, onde, desde o dia anterior, o almoço para cerca de 800 pessoas é preparado: arroz de carreteiro, farofa e ovo cozido, mais romeu e julieta de sobremesa.

Poucas horas depois, o espaço está totalmente tomado de personagens de cabelos brancos. Praticamente todo domingo esse ritual se repete em alguma quadra de escola de samba do estado. A exceção desta terça-feira se dá por conta do feriado de São Sebastião, padroeiro da cidade e da Estácio de Sá. A comida é por conta da casa, mas os convidados também trazem salgadinhos de reforço em tupperwares para o longo dia que vai se seguir. A venda de bebidas também fica a cargo da escola anfitriã, mas a organização da festa em si é feita em todos os detalhes pelos coordenadores da associação. Não é trabalho simples: são 72 grupos participantes, dentre escolas de todas as “divisões”, blocos tradicionais e grupos carnavalescos.

Na associação, que completou 25 anos em 2008, não existe divisão por nota, tradição ou gênero musical. Os associados são a parcela das comunidades que tem mais experiência de vida. Não à toa, as atividades vão além do binômio samba & carnaval. Há palestras sobre doenças geriátricas, bingo, obras… a programação é intensa.

Ali, classificar a turma como da “melhor idade” não é só apelar para o linguajar politicamente correto de hoje. A julgar pela disposição dos senhores e senhoras que começam a chegar para o encontro de galerias elegantérrimos dentro de seus uniformes, se aquela não é a fase mais animada de suas vidas, provavelmente não deixa a dever aos tempos de mocidade. As mesas enormes reservadas a cada agremiação vão sendo ocupadas e o povo trata de comer e beber antes de a cerimônia começar.

E, claro, de se cumprimentar – todos se conhecem, se festejam, independente da escola que defendam.

Não sou a única “forasteira” por ali. A festa é aberta, mas reservada. É gratuita e sem controle na porta, mas é nítido que todos sabem quem é quem. Estou acompanhada de um grupo que se autointitula Guardiões da Memória e é composto por alunos e professores do Colégio Estadual Professor Sousa de Silveira, em Quintino, e do Programa de Reflexões e Debates para a Consciência Negra. Há anos eles frequentam a festa para registrá-la em um documentário. As dificuldades para o filme sair não são poucas, mas ele está ficando pronto e deve ser lançado no dia 17 de fevereiro, às vésperas do carnaval, no Sesc-Madureira. Independente disso, vê-se de cara que todos estão ali por prazer, totalmente integrados à festa e a seus personagens.

Enquanto os grupos vão chegando, com algum atraso por conta da procissão de São Sebastião que se espalha pelas ruas próximas, George, Renata, Albérico e Daiana, da equipe do filme, se organizam para registrar o que falta e me ajudar a produzir imagens para este texto. Em busca de entrevistas junto com Cristiane e Rosana, da equipe de pesquisa, ouço de um senhor da Velha Guarda da Estácio: “Aqui tem hierarquia, é um sistema presidencialista! Podemos falar, mas é sempre bom ouvir o presidente antes”. Se referia ao presidente da associação, que ainda não tinha chegado. Fomos então entrevistar a integrante mais velha do grupo da escola, Waldice Rodrigues de Souza. Ela foi a primeira a falar de algo que se tornaria recorrente nas entrevistas seguintes: a longa história dentro da escola. No caso, dos 72 anos daquela senhora, já eram 61 de Estácio de Sá. “Tinha 11 anos quando saí de baiana pela primeira vez. Naquele tempo diziam que só criança batizada podia sair. Aí minha avó resolveu a questão: me batizou no sábado de carnaval e eu desfilei no domingo”. E ainda dizem que carnaval é uma festa profana…

Tentando descrever a cerimônia indescritível

No carnaval das velhas guardas, a fé tem lugar de destaque. A cerimônia começa com os anfitriões de mãos dadas rezando Ave Maria. Muitas vezes, acaba com a mesma oração, entoada pela quadra inteira (não cheguei a ver isso, mas a equipe do filme falou que é de arrepiar). A reverência e o respeito seguem dando o tom. Muitos senhores e senhoras usam faixas douradas cruzadas no peito, como as de campeões do futebol, com alguma homenagem: Musa 2008, Mãe do ano, Avô do ano… O presidente da velha guarda anfitriã – no caso da Estácio, uma senhora – se posiciona na frente do palco e vai recebendo as galerias, formadas pelos componentes de cada grupo. Eles desfilam da entrada da quadra até o outro extremo. Na dianteira, a porta-bandeira “sênior” da escola. O desfile pode ser com o samba-enredo deste carnaval, o hino ou alguma canção marcante da escola.

Ao fim do percurso, a porta-bandeira cumprimenta o anfitrião e entrega a bandeira para ele colocar num porta-estandarte. É uma bela demonstração simbólica do espírito de união do grupo. Tudo é acompanhado de perto por Jorge Ferreira, coordenador de eventos da associação, que cruza a quadra trocentas vezes, dá o ritmo dos desfiles e não se furta a dar broncas aos berros quando necessário. Sem ele, dá a impressão que a coisa não funcionaria tão bem. Enquanto um grupo tem seus 20 segundos de glória, as outras galerias esperam pacientemente – àquela altura, com guarda-chuvas abertos para se protegerem do aguaceiro – na parte externa da quadra.

Há momentos emocionantes. Membros de determinadas escolas entram em silêncio, apenas andando, com o chapéu à altura do peito: sinal de que algum de seus integrantes morreu há pouco tempo. Com ou sem música, todos os participantes param no circuito para cumprimentar a alto clero da Associação, que se senta bem ao meio do caminho.

Antes de chegar ao “trono” para ser reverenciado, o presidente da Associação, Ed Miranda Rosa, de 92 anos, faz algo que há tempos não se via, por conta da idade: desfila junto com os outros membros da Mangueira. Numa elegância de dar gosto.


“Se a gente fica em casa o reumatismo ataca”

Esta frase divertida, dita às gargalhadas por Manoel Bustilho, 74 anos, resume em tom de galhofa a motivação dos senhores e senhoras presentes. Como a senhora da Estácio, ele começou na sua Vila Isabel ainda na infância e já desempenhou diversos papéis por lá. Como vários outros, veio a mim já com a apresentação completa na ponta de língua: “Tenho 74 anos, fui presidente da velha guarda da Vila por dez anos e sou diretor de patrimônio da associação. Hoje tenho um dever: ir em todas as festas”. Taí um homem que cumpre sua missão à risca.

Enquanto ele fala, várias galerias passam e têm tratamento igual, de escolas consagradas até os Filhos de Gandhi, passando por convidados especiais: os Baluartes do Estado de São Paulo. Depois da última, todas as bandeiras estão juntas na frente do palco. É a hora de as portas-bandeiras entrarem em ação novamente, pegando seus respectivos mantos e se reunindo mais uma vez no outro extremo da quadra, desta vez para entrar junto com todas as outras, como numa ala. À frente, a porta-bandeira da associação rodopia sendo cortejada por um mestre-sala que logo reconheço: é Manoel Bustilho, dando um show na pista. A trilha sonora é o hino de todas as velhas guardas, composto por Dicró:

“Sou velha guarda,
provei ao mundo inteiro que sou bamba
sou velha guarda, a espinha dorsal do samba
(…)
a velha guarda é o samba em pessoa
até minha casa já serviu de barracão
e essa juventude que começa a desfilar
será a velha guarda de amanhã”

A esta altura, a equipe do filme canta e dança tão empolgada quanto os mais velhos. A “juventude que começa a desfilar” também marca presença no programa-família – muitos filhos e netos, crianças sobretudo, sambam sem parar. Como seus avós no passado, eles já fazem parte da estrutura das escolas. Alguns vestem uniformes mirins.

Tão impressionante quanto a festa em si é o fato de que ela acontece todo domingo. Não seria nada demais, se no sábado à noite não houvesse o tradicional samba na sede da associação, na Piedade. É lá que os senhores mostram suas composições inéditas e cantam aquelas que vivem só em suas memórias. Membro da equipe do filme, Tiago de Aragão, que mora no Rio há cerca de um ano (e não é meu parente), diz: “Fui a muita roda de samba aqui no Rio, mas a da associação foi de longe a melhor”.

Quem sou eu para duvidar… Já exausta diante de tanta animação, vou concluindo que disposição não tem nada a ver com idade… Carla Lopes, coordenadora do projeto Guardiões da Memória, olha para mim solidária e diz: “É assim mesmo, em geral a gente vai embora e eles continuam nos bares em volta da quadra”. Não deu outra. Quando saí, mesmo na chuva, avistei uma turma animada, ninguém com menos de 60 anos, tomando cerveja num boteco com mesas na calçada e cantando na maior alegria.

Com aquela cena final na cabeça – que para mim ficou marcada como um dos retratos mais simples de fecilidade – parti refletindo sobre a complexidade do carnaval carioca. Sem alarde nem holofotes, aqueles senhores reforçam a cada semana o melhor espírito carnavalesco. Enquanto para muita gente as escolas de samba se resumem hoje a ostentação, contravenção e disputas milionárias, aquela festa, apenas uma das que acontecem ao longo do ano, comprova que há muita coisa bonita e genuína por trás da tradição que se mantém.

Fonte: http://www.overmundo.com.br/overblog/a-espinha-dorsal-do-samba

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