Portal Capoeira Capítulo 3 - Toninho Ventania Nestor Capoeira - Capoeiristas, Pulp Fiction Tropical

Capítulo 3 – Toninho Ventania

CAPOEIRISTAS

PULP FICTION TROPICAL

 

Nestor Capoeira

capítulo 3

 

 finalzinho do capítulo 2

… Um grupo de quatro ou cinco colegiais passa do outro lado da rua e, ao verem Noivo com a garrafa, apressam o passo, cochicham entre si, dão risadinhas, e desviam o olhar.

“Qual é? Vão cuidar de suas vidas! É isso aí! Vão correndo pra não chegar atrasadinhos na bosta do colégio!”.

Noivo aremessa com raiva a garrafa que se espatifa numa árvore, levanta-se, atravessa a praça e se embrenha numa rua onde algumas lojas ainda estão abrindo as portas.

FIM do cap. 2

 

capítulo 3

 

TONINHO VENTANIA

 

O meu nome é Toninho,

o apelido é Ventania.

Gosto do cheiro de mato,

de mulher e maresia.

(Nestor Capoeira, 2014; CD A balada de Noivo-da-Vida e Veneno-da-Madrugada)

 

DISNEYLÂNDIA

Ipanema.

Rio de Janeiro.

Brasil.

Eu adentrei as Dunas do Barato.

Era um lindo dia ensolarado de verão, o sol brilhava glorioso no alto do céu. A praia estava atapetada de mocinhas bronzeadas de bundinha arrebitada, e garotões que jogavam frescobal ou “futebol altinho” na beira do mar.

Tirei meu baseado de dentro da sunga e, entre um “alô” aqui e um “tudo bem?” acolá, acendi o charutão enquanto caminhava sem pressa na direção da água.

Eu era um “local” da área.

Mais do que isso: era um daqueles caras que tinha livre acesso às diferentes turminhas e tribos que frequentavam as areias daquele pedaço de Ipanema, quase chegando no Arpoador – o Pier, com suas Dunas do Barato -: doidões da classe média alta e da burguesia, jovens artistas de teatro e televisão, uma nova geração de músicos de rock brasileiro que em breve iam estourar com grande sucesso na mídia.

O mais curioso era que estávamos em plena ditadura militar 1964-1984 e, no entanto, aquele pedaço de praia parecia Amsterdam ou San Francisco, capitais mundiais do movimento hippie.

Eu ia passando e fingia que não ouvia as pessoas murmurando:

– Esse aí é o Toninho Ventania, um bamba da capoeira. Passou uns anos rodando pela Europa e Estados Unidos, fazendo show, dando aula, comendo as gringas. É o maior cabeção.

No começo dos 1970s as passagens de avião para o estrangeiro eram caríssimas; era coisa para quem tinha muita grana. Ou então, uma meia dúzia de caras da Bossa Nova – Tom Jobin e aquela turma de feras – que tinham feito sucesso no Carnegie Hall alguns anos antes, e agora viajavam ocasionalmente para fazerem shows no exterior.

A capoeira ainda estava se firmando no Rio e em São Paulo; um capoeirista, jovem, mulato, que tinha passado “uns anos rodando pela Europa e Estados Unidos”, era algo totalmente inusitado; causava surpresa e admiração.

Aquela rapaziada, quando muito, tinha passado uma semana na Disneylândia, quando garotos, bancados pelo papai ou pela vovó cheia da grana.

 

CHÁ DE SUMIÇO

Depois daquela encenação, alguns anos atrás, da morte de Noivo e Veneno – que eu narrei no A Balada de Noivo-da-Vida e Veneno-da-Madrugada -; Noivo se mandou para o Planalto Central atrás de Ingrid; Veneno retornou a Nova Yorque; e eu tomei um chá de sumiço.

Afinal de contas,  o Dr. Turibio era o diretor do Projeto Javali e fazia parte da gangue de políticos, homens de dinheiro, e militares que mandava e desmandava no Brasil entre 1964 e 1984.

 

BELÔ

Dei um rolê até Belo Horizonte onde o Cavaliere, o Jacaré, e uma meia dúzia de garotões armavam um incipiente movimento de capoeira com uma roda, aos sábados, na feira hippie da Praça da Liberdade.

Belo Horizonte era dominada por uma elite altamente careta naquela época da ditadura. Basta dizer que o logo da cidade era: “Família, Tradição, e Propriedade”.

Mas já haviam vários núcleos, em diferentes camadas sociais, de uma juventude que já estava noutra; a cidade fervilhava com uma multitude de butecos e barzinhos.  A cachaça mineira, diferente do que acontecia nos bares da classe mérdia e burguesia em outros estados onde imperava o whisky e a vodka, reinava absoluta.

E o mais importante: Belô é uma das cidades brasileiras que tem mais mulher. Não é cascata, não. Basta ler os números do Censo Nacional do IBGE – será que é IBGE? Ou é IBOPE?

Não interessa.

Tem mulher pra caralho.

 

A MULHER MINEIRA

A mulher mineira, de Belo Horizonte, tem um lance muito meigo, muito carinhoso; e são lindas. Na cama, são incendiárias, piromaníacas da melhor espécie.

Deve ser por causa daquelas montanhas todas: tem um anel de montanhas recheadas de minério de ferro rodeando a cidade. Dizem que todo aquele ferro, atravessado pelo campo magnético da Terra, acaba criando um lance como um imã gigantesco; é por isso que Belô tem um dos mais altos índices de tempestade de raios do mundo.

Incendiárias, vai por mim.

Com aquela rodinha de capoeira todo sábado na Feira Hippie, chovia mulher.

A feira ainda era uma novidade na década de 1970 e ficava lotada de mocinhas de cabelos longos, sorrisos simpáticos, e calças jeans atochadas no rabo e nas coxas.

Sem falar das balzaquianas gostosérrimas, de 30 e 40 anos de idade que desfilavam, em grupos de 3 ou 4, de vestidos justos de seda estampada revelando as generosas curvas do corpo.

Mulheres “modernas”, “independentes” – apesar de algumas morarem com o pai e a mãe -, com trabalho certo e bom ordenado.

Mulheres que não tinham arranjado marido. Ou tinham se casado e logo separado do mané, muitas vezes pelo fato do cara encher a cara, chegar em casa doidão de birita, e descer a porrada na esposa. Devido à repressão geral, à moral castradora da classe média e da burguesia mineira, tinha muito este tipo de cara; problemático, de cuca fundida, mas fazendo aquele teatrinho que estava tudo bem e mantendo a fachada.

 

FAZENDO A CABEÇA EM BELÔ

Fiquei uma temporada em Belô.

Foi onda.

Eu ia treinar diariamente com os 10 ou 15 jovens apaixonados por capoeira. Treinos puxados, de 3 horas ou mais; e nos sábados e domingos, as rodinhas na Praça da Liberdade. Eu fiquei afiado, em grande forma.

Era muito bom ver que, coisas do Jogo que para mim eram primárias, pare eles eram revelações divinas.

E, aí, aquilo me forçava a olhar com mais cuidado, com o ponto-de-vista de um outsider, para aquilo que eu considerava uma coisa “normal”, um clichê. Mais de uma vez, isto me levou a profundos e curiosos insights:  eu cheguei a entender o núcleo, a razão de ser – e até mesmo o desenvolvimento através do tempo e das gerações -, de um movimento, de um golpe, de uma queda, ou de uma determinada posição de corpo.

Muito legal.

E, é claro, como eu já tinha dito: as mulheres.

Sempre tinha um plantel de jovencitas lindinhas. Mas aquilo dava um trabalho danado. Muito brilho mas pouca substância. Aí, eu dispensava.

Ficava todo mundo de bobeira, sem entender qual era a minha. Porque muitas daquelas minas eram das famílias mais ricas, e o golpe do baú é um clássico na high society mineira: o garotão bonitinho de boa família, mas de pouca grana, que namora uma mina feinha e ricaça – lembrem-se que a cidade tem pouco homem e muita mulher, e arranjar um maridinho bonitão de boa família era uma conquista. 

O cara se casava e ia trabalhar na firma do pai da mina.

Ou, então, fazia uns netinhos e vivia numa boa, com a grana que a esposa constantemente recebia do papai e da mamãe; frequentando o Iate Club – é isso aí, Belô não tem mar mas tem Iate Club -; e só tendo de aturar os comentários do sogrão com os amigos nos lautos almoços de domingo – “… quando é que esse merdinha vai tomar vergonha e começar a trabalhar?”

 

 A MALANDRAGEM ALTO-ASTRAL

Mas eu não estava numa de alpinista, e menos ainda de ascensorista social.

Eu sempre estive noutra.

Sempre estive num lance que, mais tarde, descobri  ser  um vago, longíncquuo, intuitivo, e primitivo esboço da filosofia da malandragem.

Iluminado por Leopoldina – meu primeiro mestre -, e tambem outros malandros clássicos alto astral que fui conhecendo, aos poucos uma maneira diferente de pensar e viver foi se revelando, igual a uma flor que desabrochasse em frente aos meus fascinados olhos.

 

O SEGREDO DE TUDO

Então, sem fazer isto conscientemente, me dediquei especificamente às mulheres mais maduras de 38, 45 anos de idade. Nada de casamento, nada de golpe do baú; só sexo e muita curtição.

E, logo, estava com um time de 4 balzacas de primeiríssima qualidade.

Eu curti muito aquelas minas, que eram consideradas pejorativamente como “solteironas” por aquela sociedade de imbecis auto-reprimidos e repressores.

E, hoje, olhando aquele período retrospectivamente, posso ver que naqueles seis meses eu amadureci na sensualidade e no sexo. Em consequência, amadureci como ser humano. E finalmente me formei como um elegante e jovem malandro na linhagem que passa por Sinhô, Noel Rosa e Geraldo Pereira, Wilson Batista, Zé Keti, João Nogueira, Mestre Leopoldina, e nos chega nas figuras de Paulinho da Viola e Zeca Pagodinho.

Entendi que, se por acaso existir um “segredo” que rege as ações dos indivíduoa da raça humana, este segredo é o sexo e a sensualidade.

O resto – poder, status, dinheiro, sucesso, realizações profissionais, família, bens materiais, amizade, fé religiosa, ideologia, arte -, é tudo sucedâneo; é tudo secundário. São coisas que, evidentemente tem seu valor; mas, na real, são super valorisadas. Na verdade, vem apenas substituir o sexo e a sensualidade quando estes não são praticados e vividos em profundidade e com apaixonada constância.

Curiosamente, mas de uma maneira fácil de entender, estas coisas secundárias acabam se tornando lances de primeira importância no Universo dos Otários.

 

 O MÃO DE FACA

 

A VAIDADE HUMANA

Muitos daqueles humanos que tem um Encantado “encostado”, são tão vaidosos e vulgarers que imaginam que a extraordinária vida que vivem é unicamente consequência de seu valor pessoal.

No entanto, outros seres humanos que tambem foram “visitados” por um Encantado, realmente nasceram com uma compreensão e visão das coisas e do mundo, com um Axé, com uma força, ou um talento  extraordinários.

São pessoas que excedem a nossa vã filosofia: Sidarta o Buda, Alexandre o Magno, Jesus Cristo, Genghis Khan, DaVinci, MichelAngelo, Ghandi, Noel Rosa, Einstein, Pixinguinha, Jorginho Guinle, Mestre Bimba, Mestre Pastinha, Charlie “Bird” Parker, Mané Garrincha, Zeca Pagodinho, são alguns destes que, alem de terem muito talento, alem de terem um dom pessoal, viveram – imgino eu – suas vidas e fantasias reforçadas pelo poder de um Encantado.

No caso de Zeca Pagodinho – músico brasileiro -, ele próprio afirma: “fiz tudo errado mas no final deu tudo certo”.

 

ENCARNANDO NO PEDAÇO

Em ocasiões excepcionalmente excepcionais, um destes Encantados decide, não apenas, se “encostar” num humano para curtir os lances da vida no planeta; mas, sim, tambem se materializar totalmente na forma de um homem, ou mulher – as Encantadas -, aqui na Terra.

 

Um Encantado, de hierarquia mediana, encarnado na Terra, geralmente tem vida breve, 20 ou 30 anos, e seu corpo morre jovem – reparem no montão de artistas de grande sucesso que embarcam com seus 30 e poucos de idade.

No entanto, algums vezes, ninguem sabe porque, pode chegar até mesmo aos 100 com a saudavel aparência de um atleta de 40 anos de idade.

Mas se por acaso, algo mais raro ainda, o Encantado ocupa uma alta posição na hierarquia cósmica, então sua trajetória como homem terrestre será extraordinariamente muito mais longa.

 

ALTAS HIERARQUIAS

O Encantado da Alta Hierarquia escolhe, a dedo, o próprio pai e mãe –  pessoas humanas extraordinárias em um ou vários aspectos (fôrça, inteligência, beleza, talento, sorte).

Escolhe tambem o momento e o local de nascimento; êle deseja curtir um determinado período num local  específico da História da Humanidade.

Na verdade, este Encantado, antes de “nascer” na Terra, pode influenciar, até certo ponto, a vida de seus futuros pais para melhor atender seus propósitos.

Mas nem sempre isto é bom para os inocentes progenitores que, por exemplo, morrem pouco depois do nascimento daquele carismático bebê: os pais tinham sido convenientes para fornecer o DNA, a forma do corpo, a fôrça vital, a inteligência, o talento, a sorte, a beleza, a visão abrangente do mundo; mas iriam tolher e querer orientar a vida do Encantado enquanto êle fosse criança. E esta outra função – criar o Encantado criança – poderia ser feita por alguém mais conveniente.

 

COISA DE CRIANÇA

Com seis meses e, mais definitivamente, com um ano, a criança-Encantado-de-alto-nível já tem uma vaga consciência de que é um Encantado que resolveu baixar e viver uma vida na Terra. Aos três anos de idade, êle já poderia saber quem é.

Mas nem sempre isto acontece:

– a parte humana se recusa a acreditar numa hipótese tão inacreditável;

– ou então, a parte humana inconscientemente recusa a viver uma vida que certamente será “complicada”, uma “vida que não é a sua” (mas, esta recusa não adianta nada);

– alem disto, aquele Encantado/criança tem de manobrar a situação no sapatinho, fingindo que é um humano “normal”,  pois seu corpo e sua posição na sociedade ainda são muito fracos e vulneráveis; e esta estratégia inicial de sobrevivência pode se enraizar na maneira de ser do humano que cresce ignorando a existência do Encantado.

Apesar do Encantado dar uma força e uma dimensão excepcionais ao seu corpo humano – no nível físico de um atleta Campeão Olímpico, no nível artístico e intelectual de um grande artista ou cientista, no nível de beleza de um grande astro de cinema, no nivel de sorte de um vencedor da loteria -; ele não é immortal e está sujeito a todo tipo de ferimento e doença que aflige os humanos.

O Encantado curte esta “fragilidade” como se fosse parte de um jogo: apesar de poder viver  bem mais de cem anos, e de manter o corpo num processo de envelhecimento muito lento, isto só acontecerá se ele for hábil e tiver sorte.

E o Encantado nunca perde.  Afinal de contas, quando seu corpo terrestre morre – jovem ou matusalem -, o Encantado volta, feliz e saudável, ao Plano Espiritual onde habita.

Nossa estória tembem é a estória de um destes raros Encantados de Alto Nível que resolveu encarnar e viver uma longa vida terrena.

Fim do capítulo 3

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