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Carteira de emprego no bolso de uma pessoa negra pode proteger sua vida diante de um policial?

Carteira de emprego no bolso de uma pessoa negra pode proteger sua vida diante de um policial?

Fui convidada para participar de um encontro com educadores, sobre a importância de ressignificar o dia 13 de maio, que para além da suposta Abolição da Escravatura é o Dia Nacional de Combate ao Racismo. Também pensaríamos caminhos para a escola construir práticas antirracistas.

Faríamos um percurso histórico sobre as ações que excluíram a população negra da sociedade a partir do dia 14 de maio de 1888, dentre elas, a proibição de frequentar escolas, possuir terras, a mudança do Código Penal que criminalizou a capoeira e a vadiagem, a luta do povo negro para libertação e por fim, abordaríamos estratégias pedagógicas.

Enquanto organizava o material recebi um vídeo onde um ciclista negro, o jovem youtuber Felipe Ferreira filmou a abordagem feita por policiais que estavam procurando traficantes em um parque.

Enquanto Felipe ouvia comandos para encostar a bike, colocar as mãos na cabeça e outras frases no imperativo, questionava as formas de tratamento, pois havia uma arma apontada em sua direção. Felipe justificava que estava dando um rolê e no momento em que foi algemado disse a frase que me incomodou: Eu sou um trabalhador! O incomodo aumentou quando o policial, respondeu ao rapaz: E eu sou vagabundo. Eu tô aqui brincando!

Após digerir a notícia do ocorrido com Felipe, no dia 14 de junho me deparei com uma notícia envolvendo outro jovem negro. Matheus Ribeiro, professor de surfe foi acusado por dois jovens brancos de ter roubado uma bike no Leblon e foi obrigado a encontrar maneiras de provar que a bike era dele.

Novo incomodo senti ao ler o que Matheus disse a imprensa: Eu não era alguém pedindo esmola ou vendendo jujuba. Nos dias seguintes, foi revelado que o autor do furto era um jovem branco morador da Zona Sul do Rio de Janeiro, verdadeiro tapa na cara da sociedade racista brasileira.

Lembrei dos relatos que ouvi de estudantes na Educação de Adultos sobre a necessidade de abandonarem os estudos na idade adequada e só retornarem quando adultos, em decorrência de inevitabilidades e até imposição das famílias para trabalharem. Pensei nas histórias de universitários negros sobre as dificuldades em reconhecerem que o tempo dedicado por eles aos estudos acadêmicos é também trabalho e principalmente, recordei do dia em que cheguei em uma das escolas que fui Coordenadora Pedagógica e vi um dos estudantes negros do 6 ano sendo abordado por policiais.

Fui até eles e me identifiquei como Coordenadora e disse ao policial que o garoto, era nosso aluno. O policial solicitou afastamento alegando: Professora, eu estou fazendo o meu trabalho. Eu argumentei que também estava fazendo o meu. Quando o estudante sofreu um desmaio ao ver uma arma apontada em sua direção, o policial me ajudou a leva-lo para o interior da escola. Documentos apresentados, a situação foi encerrada.

Tanto Felipe, quanto os policiais e eu utilizamos o trabalho que fazíamos como uma espécie de escudo social que nos legitimasse, humanizasse e protegesse. Fico me perguntando: E se eu e o jovem Felipe não trabalhássemos? Se fizéssemos parte dos milhões de brasileiros desempregados? Se fossemos integrantes dos milhares de desalentados que desistiram de procurar emprego e estivéssemos em um farol vendendo jujubas? Como nos identificaríamos aos policiais?

Se fizermos um percurso histórico para o passado, entenderemos as raízes profundas que deram origem ao pensamento que esteve presente nos comportamentos não só do Felipe, meu, do Matheus e dos policiais, mas está na psiquê de muitos brasileiros: Negros que não estão trabalhando são criminosos em potencial.

Na minha infância, os mais velhos ensinavam que era necessário andar com a carteira profissional no bolso, pois se houvesse um registro de trabalho, problemas seriam evitados ao sair as ruas.

Atualmente sabemos que jovens negros aprendem muito mais do que sempre portarem uma documentação, mas principalmente que vivemos em um pais historicamente racista, onde o projeto colonial para a população negra ainda está em continuidade. Como disse Sueli Carneiro: o plano do governo Bolsonaro para negros é o extermínio ou a submissão.

O abandono estratégico do povo negro ocorre desde o dia 14 de maio 1888. A desigualdade racial entre negros e brancos no mercado de trabalho está presente há séculos, assim como nas demais instituições que possibilitam mobilidade social, como as escolas e universidades.

As disparidades de raça e gênero ainda fazem parte do plano de extermínio dos indesejáveis. Em contrapartida, há muita luta por parte dos que almejam a justiça social. Dentre as conquistas obtidas entre 1888 e os dias de hoje, destaco que já é que possível comprovar através da ciência, dos dados, da literatura e também nas filmagens atualmente feitas por anônimos, que o projeto genocida está fortemente em continuidade no Brasil.

Sabemos que a luta para que pessoas negras possam dar um rolê em um parque sem precisar explicar durante uma abordagem, para onde vão e tão pouco por medo, utilizar o trabalho que desempenham como instrumento de proteção contra o encarceramento ou a morte, ainda tem um longo percurso para percorrer.

É demorado, mas possível destruir uma construção histórica secular que ainda hoje protege uma parcela da sociedade, que permanece no poder porque herdou dos seus ancestrais os benefícios recebidos pela escravização. Dentre os privilégios, podem escolher se desejam ou não trabalhar e jamais vivenciarão uma abordagem policial enquanto transitam desocupados pelas ruas, ou passeiam de bikes no Leblon, porque raramente suspeitarão que sejam criminosos, a exemplo do ocorrido com Matheus e também no parque público onde Felipe esteve.

Fonte: Carta Capital: Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital. https://www.cartacapital.com.br/

Foto: RIO DE JANEIRO – FUZILEIROS NAVAIS PARTICIPAM DE OPERAÇÃO NA FAVELA KELSON’S, ZONA NORTE DA CIDADE (FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL)

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