Portal Capoeira Formalização e gestão de grupos de capoeira: começando a conversa Publicações e Artigos

Formalização e gestão de grupos de capoeira: começando a conversa

Por Benício Boida de Andrade Júnior¹

Remanescente dos tempos da escravidão lícita (300 anos), sobrevivente da intensa repressão (e criminalização) da república velha (1889–1930) e com a versão baiana amplamente difundida ao longo da segunda metade do séc. XX, a capoeira chega ao séc. XXI laureada com títulos e expressões como “a maior difusora do português brasileiro no mundo”, “patrimônio cultural brasileiro” (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, 2008) e “patrimônio cultural imaterial da humanidade” (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciencia e Cultura – UNESCO, 2014).

Naturalmente, ao longo dessa longa trajetória², tal arte tipicamente nacional passou por inúmeras adaptações, releituras, ressignificações e desenvolvimentos tanto estéticos quanto técnicos. Nesse contexto, houve quem a entendesse marginal e criminógena (Escola Positivista – finais do séc. XIX e início do séc. XX), quem a concebia como ginástica³, como luta (Mestre Bimba), como esporte⁴, como “símbolo de luta e resistência negra”⁵, como brincadeira, como ferramenta terapêutica⁶, como simples vadiação, etc.

São tantas as acepções e utilizações que suas apreensões intelectuais frequentemente se revelam contraditórias. São exemplos dessas celeumas: o caloroso debate a respeito da sua regulamentação enquanto atividade típica do profissional de educação física; a adoção de uma perspectiva marcadamente cultural pela chamada “Salvaguarda da Capoeira na Bahia”⁷ (em contraponto ao modelo predominantemente desportivo); bem como o ressurgimento dos tocadores e cantadores de capoeira que, embora amplamente reconhecidos como capoeiristas junto à comunidade, em inúmeros casos não cultivam ou dominam as habilidades do jogo.

Em comum a todas essas iniciativas inventivas de interpretação, apreensão e promoção/criminalização da capoeira, só mesmo a ideia de que cabe ao Poder Público instituído (não pelos capoeiristas) assegurar a preservação, o fomento e a divulgação dessa tal capoeiragem (não jogada pelos burocratas de Estado).

Com respeito as opiniões contrárias, a verdade é que soa impossível adequar um produto ou fenômeno cultural marcadamente popular, marginal e mestiço, fortemente influenciado pelo legado afrodescendente no país, a qualquer modelo institucional, decorrente das ideias europeias (e portanto, também nossas) de “Estado” (Brasil) e suas funções⁸.

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É nesse cenário que se situa a necessidade que muitos praticantes e intelectuais amantes da capoeira sentem de alcançar algum nível de formalização institucional: para que os poderes públicos possam cumprir seu mister, é preciso que as organizações de capoeira não apenas estejam plenamente integradas a sociedade brasileira (como já ocorre, com ares de orgulho nacional), mas sobretudo que existam aos olhos do estamento burocrático. E é aqui que reside a chamada “formalização” dos grupos de capoeiragem.

Como um fato natural, da vida, a capoeira é uma associação de pessoas que se reúne para um fim – atualmente lícito – comum, seja lazer, esporte, cultura, luta, ou o que mais desejarem seus intérpretes de então⁹. Essa agremiação, uma vez formalizada e registrada, adquire status de “pessoa jurídica”, passando a gozar de direito e deveres na órbita das relações civis. É a conhecida labuta por um CNPJ.

Apesar das críticas que se pode formular a um tal modelo normatizador e, de certa maneira, limitador daquilo que, para muitos, é “filosofia” de vida, é inegável que as necessidades materiais de parte dos líderes os empurram a “ter um CNPJ”, mesmo que na maioria das vezes isso tenha menor importância na dinâmica interna dos seus grupos. Trata-se, amiúde, disso mesmo: uma espécie de identidade civil (pessoa jurídica) para que possam ser vistas e reconhecidas como agremiações aptas a estabelecer relações formalmente válidas com setores públicos e privados da sociedade brasileira. É quando os líderes dos “grupos” saem em busca de advogados e cartórios, com papeladas no mais das vezes para eles indecifráveis, na expectativa de, com isso, acessar verbas. No imaginário comum, tais verbas são, quase sempre, públicas.

Não se olvida que a simples existência de agrupamentos civis organizados enseja algum interesse dos políticos profissionais em promover algum tipo de financiamento voltado para pessoas físicas, diretamente. Porém, é inegável que a situação jurídica associativa (esta, afinal, é um modo de apreensão do fenômeno anárquico da capoeira pela autoridade do Estado) permite uma ampliação gigantesca das possibilidades de financiamento, na medida em que existem limites legais e institucionais para o suporte material discricionário¹⁰ e direto aos seres humanos envolvidos. Essas limitações, do ponto de vista cívico, são necessárias, na medida em que assim se evita apadrinhamentos escusos ou conluios. Mas é trágico, do ponto de vista do capoeirista, pois exige um enquadramento significativamente artificial, distante da realidade mundana de onde veio a própria arte da capoeiragem. E do capoeirar. Vejamos.

O art. 53 do Código Civil Brasileiro define as associações constituem-se “pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos”. Como todos são iguais perante a lei¹¹, os associados devem ter iguais direitos, mas o estatuto poderá instituir categorias com vantagens especiais¹², que geralmente é o caso de mestres, contramestres e professores – níveis mais graduados na hierarquia dos grupos.

Se por um lado, todos são iguais perante a lei (do estamento burocrático brasileiro); também é verdade que, no éthos capoeirano (do povo brasileiro) quase nunca essa igualdade (de direitos e deveres) é prevalecente: líderes de grupos (tornados formalmente associações, ou não) gozam de poderes e legitimidades pouco republicanas, como a vitaliciedade dos poderes de administração, a prerrogativa de expulsar sumariamente membros das suas agremiações¹³ e a soberania das suas decisões, já que na capoeira, raramente se decide por votação em assembleia.

Qual, então, a solução encontrada por praticamente todos os agrupamentos de capoeiristas institucionalizados como “associações” aos quais tive acesso? As lideranças já plenamente estabelecidas no interior desses grupos apontam familiares e amigos próximos para assumirem, fictamente, todas as atribuições de direção, fiscalização e controle que não puderem ser admitidas “no papel” por ele mesmo, dentro de um sistema baseado na igualdade de direitos e obrigações entre as pessoas. Ou seja, o sujeito “pega a assinatura” da mãe, do sogro, da prima, etc. e faz existir uma associação no papel. Mas a realidade é outra, já que o que verdadeiramente existe é um agrupamento forjado à margem do que o sistema pode reconhecer ou admitir. Na capoeira, o treinel, contramestre, o professor; no papel, o pai, a tia, o avô. E assim, talvez contando com eventual “ajuda humanitária” de burocratas bem-intencionados, finge-se lá e cá que isso tudo é tecnicamente válido¹⁴. Não há como conciliar o imiscível.

Um exemplo, para facilitar. No universo da capoeira, é muito comum que os líderes de grupos ou turmas reúnam em si poderes e deveres não apenas de prestadores de serviços de ensino e de gestores (regulares ou não), mas também a prerrogativa de comercializar instrumentos musicais e indumentária. Nesses casos, os atos constitutivos das referidas organizações associativas – em geral réplicas umas das outras – costumam omitir qualquer menção aos referidos atos de comércio ou artesanato. Por quê? Porque o que motiva os particulares à institucionalização não é o reconhecimento jurídico da sua atividade, mas a mera acessibilidade a recursos. E o capoeirista não vislumbra como pode se beneficiar declarando seus ganhos menos ruidosos, como o obtido com o comércio de indumentária e instrumentos musicais.

Embora a ideia estatal de “associação” possibilite realizar tais atividades geradoras de recursos, sob certas condições¹⁵, não há interesse ou conhecimento. E se houvesse, uma outra solução aparentemente mais conveniente seria manter a pessoa jurídica “associação” e, em paralelo, estabelecer a pessoa física do líder como microempreendedor individual. Por quê? Novamente: Porque o que motiva os particulares à institucionalização é o acesso a mais benefícios com menos sacrifícios. Com essa medida, por exemplo, os tão reclamados benefícios previdenciários, dentre outros, aos capoeiristas ficariam bem menos distantes do que obviamente ocorre agora. Não só: salário maternidade; aposentadoria por idade e invalidez; auxílio reclusão; pensão por morte; acesso a serviços bancários (incluindo crédito); apoio técnico do SEBRAE em organizações de negócios e programas de capacitação; menor custo caso contrate um funcionário; possibilidade de vender para o governo; poder de emitir notas fiscais; isenção de taxas de registro de sua empresa (sim, porque a essa altura já não se trata de alguém que, como no passado, apenas presta um serviço de natureza particular, muitas vezes por mera liberalidade); etc.

Ocorre que, mais uma vez, na prática, a teoria é outra: ou o capoeirista tenta e se enrola no meio do caminho por absoluta falta de capacitação, ou ele sequer admite a possibilidade de trocar a disponibilidade total dos seus rendimentos (característica da informalidade) por qualquer benefício atual ou futuro prometido pelo Estado.

De qualquer maneira, não nos apeguemos ao exemplo, porque isso poderia sugerir algo que não está de pronto admitido nessas linhas: uma reforma pontual dos mecanismos para que possa contemplar a realidade da capoeira. Não. Não acreditamos que soluções pontuais resolvam problemas estruturais. Pensamos, ao contrário, que a capoeira hodierna segue enfrentando os mesmos desafios do passado, quando, ante a sua amplitude semântica e natureza mestiça (em sentido cultural), enseja olhares resignificadores das mais diversas matizes, considerando-a ora sob um olhar mais próximo ao aparato estatal – seja em sua missão protetiva do esporte ou da cultura – ora sob um olhar mais libertário, seja religioso, racial ou qualquer outro não manifestamente atrelado ao modo de ser, estar e ver dos agentes públicos. E é essa celeuma, ora preponderante para um lado, ora para o outro, que a torna “viva”, mutável, altamente insubordinada, rebelde, livre, inclusive daqueles que, com a melhor das intenções e o maior dos cuidados, tentam dominá-la, domá-la, adequá-la ou, em movimentos talvez menos insuspeitos, torná-la instrumento para suas convicções ideológicas, enfatizando estrategicamente esse ou aquele aspecto do mosaico que a compôs e compõe; talvez assegurador da sua riqueza.

Seja como for, sem a certeza do certo ou do errado, convém, nos tempos atuais, investigar de que modos se pode vislumbrar o desenvolvimento atual do modelo de capoeira baseado em grupos formalizados, bem como de que maneira seria dada a sua gestão. É o que se pretende com os artigos seguintes.

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  1. Benício Boida de Andrade Júnior é capoeirista e advogado.
  2. O judô data de 1882; o MMA, embora remonte aos anos 30, fora efetivamente institucionalizado em 1993; a dança contemporânea surgiu na década de 1950; o primeiro registro de samba, 1916; etc.
  3. Por todos, MARINHO, Inezil P. A ginástica brasileira (resumo do projeto geral). Brasília, 1982. // Getúlio Vargas teria afirmado, em 1953: “a capoeira é o único esporte genuinamente nacional”.
  4. Mestre Pastinha fundou o CECA (Centro Esportivo de Capoeira Angola)
  5. https://www.uol.com.br/esporte/colunas/aranha/2020/08/07/capoeira-e-simbolo-de-luta-e-resistencia-negra.htm Acesso: 11/04/2021
  6. http://www.somaterapia.com.br/. Acesso: 11/04/2021.
  7. O “Plano de Salvaguarda da Capoeira na Bahia”, datado de 2018, não por acaso produzido pelo IPHAN, cita a palavra “cultura” 28 vezes, enquanto a palavra “esporte” é utilizada apenas por 3 ocasiões, sempre associadas a contexto cultural bastante específico. Por exemplo, aponta como diretriz de salvaguarda “apoiar a capoeira nos campos do esporte e lazer, reforçando seu caráter multifacetado (luta, jogo, dança, música) e preservando o seu contexto, usos e significados que a caracterizam como patrimônio cultural”.
  8. CF, art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. §1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. (…) // CF, art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados: (…) §3º: O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.
  9. CF, art. 5º, XVII – É plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar.
  10. Ato público baseado no subjetivo juízo de conveniência e oportunidade do agente público.
  11. CF, art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (…)
  12. CC, art. 55. Os associados devem ter iguais direitos, mas o estatuto poderá instituir categorias com vantagens especiais.
  13. CC, Art. 57. A exclusão do associado só é admissível havendo justa causa, assim reconhecida em procedimento que assegure direito de defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto.
  14. Apesar da dicção legal: CC, Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado (…); §1º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando: I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; (…)
  15. Associações não podem ter finalidade lucrativa porque reunião de pessoas para esse fim sofre outro tratamento legal, como é o caso das sociedades empresárias. Entretanto, associações podem exercer atividades que gerem recursos, desde que este superavit seja integralmente revertido às finalidades estatutárias. E para se provar isso é preciso um manejo contábil especializado, logo, custoso.

Fonte: https://osclegal.medium.com/

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