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Manha e Respeito

Quem diria que uma luta do negro escravizado criada no Brasil, utilizada como arma de libertação, e também como forma de cultivar as tradições ancestrais de um povo, viria a se espalhar pelo mundo inteiro, sendo praticada hoje em dia por pessoas de todas as raças, credos, classes sociais, faixas etárias, orientações sexuais e qualquer outra categoria utilizada para dividir as pessoas. A capoeira, sim senhor, serve ao contrário, para unir as pessoas!!!

A capoeira nos ensina que é possível romper as barreiras do preconceito e da discriminação que são a causa de tanta intolerância e violência no mundo atual. Numa roda de capoeira, quando se abaixa ao pé do berimbau, todos são iguais: o rico e o pobre, o velho e a criança, o homem e a mulher. Porque abaixar-se ao pé de um berimbau, e olhar no olho do seu camarada, significa fazer parte de um ritual em que o respeito pelo outro é talvez um de seus códigos mais importantes.

Apesar da tradição da capoeira estar recheada de histórias de valentões e suas navalhas, brigas com a polícia, sangue e até morte, a roda de capoeira sempre foi um espaço de convivência entre os diferentes e, acima de tudo, de respeito pelo outro. As desavenças, conflitos e confusões sempre existiram na roda de capoeira, mas acima de tudo aprende-se a respeitar o outro, mesmo ele sendo seu inimigo.

Talvez essa seja uma das lições mais importantes da capoeira, que infelizmente ainda não foi compreendida por muitos capoeiristas da atualidade, que acham que a capoeira é apenas uma disputa para ver quem é o mais violento, o mais “sarado”, ou ainda o mais acrobata, e acaba virando uma exibição de vaidades em que cada um joga somente para si mesmo, para exibir sua ferocidade, seus músculos ou suas acrobacias.

A capoeira é muito mais do que isso. É justamente o diálogo entre os corpos de dois capoeiristas que permite revelar a verdadeira destreza de um bom jogador, a mandinga de saber o momento certo de aplicar um golpe ou esquivar-se, de “cozinhar” o adversário esperando a “brecha” para o ataque, de simular, brincar e divertir-se, por que a capoeira foi feita também pra isso. Enfim, é preciso jogar COM o outro e não CONTRA o outro, e muito menos SEM o outro. Os antigos mestres sempre ensinaram isso, sempre fizeram assim.

O meu mestre, João Pequeno de Pastinha, sempre nos ensinou a respeitar os adversários numa roda de capoeira, mesmo quando o jogo fica duro e apertado. É claro que existem momentos numa roda de capoeira em que o “tempo fica quente” e alguns atritos entre capoeiristas acontecem mesmo, são normais, coisa do jogo. Mas João Pequeno sempre diz que “…é preciso saber manejar o corpo, saber frear o pé antes de atingir o sujeito, pois quem tá de fora tá vendo que você num bateu porque num quis !”. Talvez seja essa a grande virtude de um bom capoeirista. Quem tá de fora… tá vendo!!!

Pedro Abib (Pedrão de João Pequeno) é professor da Universidade Federal da Bahia, músico e capoeirista, formado pelo mestre João Pequeno de Pastinha. Publicou os livros “Capoeira Angola, Cultura Popular e o Jogo dos Saberes na Roda”(2005) e “Mestres e Capoeiras Famosos da Bahia”(2009). Realizou os documentários “O Velho Capoeirista” (1999) e “Memórias do Recôncavo: Besouro e outros Capoeiras” (2008).


Coluna: “Crônicas da Capoeiragem” por Pedro Abib

Matéria de estréia da Coluna Crônicas da Capoeiragem, sob a tutela do nosso grande camarada e parceiro, Pedro Abib, enfocando histórias, casos, experiências, opiniões, críticas, enfim, um texto de uma lauda sobre o universo da capoeiragem.

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