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Waldemar da Paixão Gravação Histórica de 1953

O Barracão

Mestre Waldemar construiu o seu barracão no morro que chamavam ainda do Corta-Braço no início dos anos 1940, não longe da Estrada da Liberdade.

Já existia na vizinhança o terreiro de candomblé dos Egugun de Tio Opê. Muitos trabalhadores baianos invadiram terras neste setor para constroirem as suas casas. 

O terreiro de mestre Waldemar localiza-se no célebre bairro proletário da Liberdade. Bairro de grande densidade de população, sem pretensões, esquecido da Prefeitura que se preocupa em embelezar e cuidar só daqueles trechos da Cidade do Salvador que se encontram à vista do turista. Quanto ao bairro da Liberdade, não é para “gringo” ver. Como todo bairro operário, não tem calçamento, é cheio de valas onde, em tempo de chuva, as águas apodrecem envoltas em nuvens de mosquitos; seus incontáveis casebres mal se têm de pé, e se o fazem é por pura teimosia. Abundam as vendolas onde se compra desde a jabá até a caninha. É um bairro repleto de vida e de movimento, corajoso e revoltado.

 

A Musicalidade de Waldemar

Waldemar marca a sua diferença de conceito com os músicos usando o termo gritar*, tratando-se de cantar para a capoeira. Nem ele, nem Mestre Bimba aceitaram o violão em suas capoeiras. Até hoje, é costume que os membros da charanga sejam capoeiristas.

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*gritar — Esta diferença de estilo vocal certamente faz parte de uma repartição geral dos papeis entre homens e mulheres na Bahia da época, na qual a capoeira é uma atividade masculina. Uma cantiga de capoeira affirma explicitamente: Quem bate pandeiro é homem / Quem bate palma é mulher. No samba e no candomblé somente os homens batem os tambores, enquanto as mulheres sacodiam o shekerê, batem palmas e cantam. Waldemar talvez usa o termo gritar tanto para afirmar a sua masculinidade que para se diferenciar dos cantores de radio.

 

Estética é Importante…

A pintura do berimbau, inventada por Waldemar, foi adoptada por muitos, mas não por todos. Ao menos Mestre Bimba não a aprovava (Shaffer 1977:26-27).

De acordo com as nossas medidas, uma diferença de um tom não pode ser alcançada com um berimbau maior do que 1.20m, tamanho conforme ao relatório de Shaffer 1977:21 sobre os berimbaus de Waldemar, de quem o autor recolheu também uma medida logicamente baseada no tamanho da mão, sete palmos. No caso, um palmo só pode ser a distância do pulso à ponta dos dedos, aproximadamente 17 cm.

 

Fama e Reconhecimento

Pode-se relembrar a apreciação de Waldeloir Rego dezeseis anos mais tarde: Waldemar da Paixão – como bom capoeirista antigo, a sua fama corre paralela à de Mestre Bimba. Quanto às gravações recentes, testemunham na maior parte dos casos de uma construção inteiramente diferente, que repercuta, cremos, outro conceito do jogo.

 

Gravações Históricas de 1953

 

Textos extraídos do site: http://www.capoeira-palmares.fr “Capoeira no terreiro de mestre Waldemar EUNICE CATUNDA” e adaptados ao Artigo pelo Editor.

 

 

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Waldemar da Paixão, o Mestre da Liberdade

Revista Capoeira N°07, ano II

 

No último número desta Revista tratamos do desenvolvimento recente da capoeiragem na Bahia, fazendo referências a alguns dos personagens que fizeram o elo do passado das famosas rodas de rua com a realidade que vivemos hoje. Trata-se de uma linha sinuosa, e essa ligação histórica é muito difícil de ser traçada. Felizmente esse percurso vem sendo cuidadosamente reconstruído com o trabalho dedicado de pesquisadores como Frederico Abreu, Carlos Eugênio, Jair Moura, mestre Itapoan, Marcos Bretas, Letícia Reis, Antônio Liberac e alguns outros. Não nos preocupamos, nesse momento, em esgotar e nem mesmo detalhar o assunto, o que seria realmente impossível nos limites dos artigos publicados e, também, pelas nossas próprias limitações. De qualquer forma, o artigo anterior serve como uma brevíssima introdução ao tema que agora vamos abordar. 

Para isso, vamos nos valer de algumas referências a esse capoeira na bibliografia e, principalmente, do depoimento prestado em 1989, há dez anos portanto, para um projeto desenvolvido pelo Ministério da Educação, do qual o autor deste artigo teve a oportunidade de participar, juntamente com outros capoeiristas e pesquisadores, como mestre Itapoan e o saudoso mestre Ezequiel. Naquela ocasião, mestre Waldemar, com 71 anos de idade e sofrendo de mal de Parkinson, nos recebeu em sua casa com toda a gentileza e simplicidade que caracteriza o povo baiano. Foi um dos momentos mais singelos e importantes pelos quais já passei em minha vida. 

Temos visto que a comunidade da capoeira tem despertado a atenção para a vida do mestre Waldemar e sua enorme contribuição ao desenvolvimento da nossa arte-luta. Um bom indicador disso são as cantigas entoadas nas rodas, muitas das quais já fazem referência à importância desse homem, que durante muito tempo esteve quase esquecido por nós capoeiristas. Aos poucos vamos rompendo os limites da dualidade mestre Bimba/mestre Pastinha em busca de outros personagens reais, com histórias e estórias riquíssimas sobre seu cotidiano e sua vida na capoeiragem. No livro Bahia: imagens da terra e do povo, publicado em 1964, Odorico Tavares descreve uma roda de domingo à tarde no barracão de Waldemar no Corta-Braço, na Estrada da Liberdade, destacando as qualidades do mestre como cantor: 

“Com os tocadores ao seu lado o mestre levanta a voz, iniciando o canto. Os jogadores, em número de dois, estão de cócoras, à sua frente. É lenta a toada que o mestre canta, como solista e já os capoeiras acompanham-no em movimentos mais lentos ainda, como cobras que começam a mover-se: olhe o visitante atentamente, como aqueles homens nem ossos tivesses, seus membros parecem que recebem um impulso quase insensível, de dentro para fora. (…) Os homens não se tocam para defesas e ataques que se sucedem em imprevistos segundos. É um milagre em que a violência de um ataque resulte em outro ataque, em que ninguém se toca, ninguém se fere, ninguém se agride. É combate, é baile que dura duas horas.” 

Mestre Waldemar, tendo iniciado a prática da capoeira em 1936, já com 20 anos de idade, foi discípulo de Canário Pardo, Peripiri, Talabi, Siri-de-Mangue e Ricardo de Ilha de Maré: “Eu pedi a esses homens para me ensinar, para eu poder ficar profissional. Pra eu dizer que sabia, e sei mesmo. Aprendi capoeira”, afirmou o mestre. Começou a ensinar capoeira em 1940, ano em que se iniciam as apresentações na Estrada da Liberdade: “Antes era ao ar livre. Depois eu fiz um barracão de palha e os capoeiristas da Bahia vinham todos para cá, para jogar”. Aos poucos, a roda do mestre Waldemar foi se tornando um dos mais importantes pontos de encontro dos capoeiras baianos. Outros locais de reunião da capoeiragem eram, como afirmamos no artigo anterior, o Alto de Amaralina, onde mestre Bimba organizava rodas aos domingos: o tradicionalíssimo Largo do Pelourinho, onde a capoeiragem acontecia sob a direção de mestre Pastinha, e o Chame-Chame, onde ocorria a também famosa roda do mestre Cobrinha Verde. Waldemar nos conta um pouco dos personagens das antigas rodas, falando dos “valentões”: 

“Tinha uns que usavam a navalha na cabeça e jogavam com o chapéu. Comprava um chapéu na loja, e não fazia ziguezague na copa, nada. Da forma que vinha eles usavam. Chapéu era canoado, copa redonda, que era a navalha presa com uma tira de borracha. Eu jogava de chapéu, mas não usava nada. Eu não quis usar essas coisas não. Sempre eu quis ficar de fora de zoada, de barulho. (…) Então esse valor eu tenho até hoje. Todo mundo me aprecia, todo mundo gosta. Chega aqui de ponta a ponta, não tem quem fale de mim, em assunto nenhum. Sei tratar todo mundo bem, não maltrato pessoa nenhuma”. 

É interessante observarmos que nas antigas rodas da capoeiragem, a literatura confirma isso, ocorriam eventualmente conflitos provocados pelos chamados “valentões”. Mas essas figuras vivenciavam o ambiente da capoeira dentro de determinados limites, sobretudo respeitando os mais antigos e reconhecidos como mestres. O respeito ao mestre é, de fato, uma característica marcante da boa tradição da capoeira, e vemos os velhos mestres contarem com orgulho a posição que conquistaram nas rodas de seu tempo: 

“Barulho eu não tive com ninguém, porque eu sempre fui respeitado, nunca ninguém me desafiou. Se me desafiava para jogar, mestre que aparecia aqui, a minha cabeça é que resolvia. (…) Me respeitavam muito, os meus alunos. E não tinha barulho, porque eu olhava para eles assim, eles vinham pro pé de mim e ninguém brigava”. 

O mestre se emocionava ao contar sua história, e a emoção era mais forte quando nos falava da hora em que jogava:

“Quando em tava jogando, eu dizia: toque um angola dobrado. É embolado, ninguém dá um salto. É um por dentro do outro, passando, armando tesoura, se arriando todo. Parece que eu to vendo jogar. Eu joguei muito. (…) Eu gostava de jogar lento, pra saber o que eu faço. Pelo meu canto você tira. Eu canto pra qualquer menino jogar, e ele joga sem defeito. Para os meus alunos eu digo que vou cantar e eles já sabem o que eu quero: são bento pequeno. É o primeiro toque meu. Para o outro tocador eu digo: ‘de cima para baixo’, e ele sabe que é são bento grande. Para a viola eu digo: repique, e ele bota a viola pra chorar”. 

Assim, vamos aos poucos tentando nos transportar para aquele universo das rodas tradicionais, em que a figura do mestre era quase sagrada, respeitada por todos pelo seu saber e suas qualidades demonstradas na roda, no toque dos instrumentos musicais e nas cantigas. Mestre Waldemar, além de grande jogador, era também conhecido como um dos maiores cantadores da capoeira da Bahia: “Tenho orgulho inda na minha garganta, de gritar minhas ladainhas. Canto amarrado da capoeira angola. Isso eu não achei quem cantasse mais do que eu. Ainda não achei. Se mulher pariu homem, pra cantar não se cria…”. Perguntando sobre como se formava a “orquestra” da capoeira, o mestre nos disse: 

“Primeiramente um bom berimbau tocando. Três berimbaus: um berra-boi, um viola e um gunga. Depois, agora nessa moda nova, apareceu o atabaque, mas eram três pandeiros, três berimbaus e um reco-reco. E o instrumento que acompanha o berimbau, para ajudar o berimbau, o caxixi, e tinha o agogô. Depois que colocaram o atabaque em roda de capoeira, mas não tinha isso”. 

Sobre esse trecho, cabe uma observação: sabemos que não se pode estabelecer um padrão rigoroso de como se organizavam as rodas da antiga capoeira, em termos de instrumentação musical, o que se comprova pelos depoimentos de outros velhos mestres, como Caiçara, Bobó, Canjiquinha, Ferreirinha e outros. Entendemos essas diferenças, como afirmamos em outra oportunidade nesta revista, como próprias da cultura popular da qual a capoeira faz parte. Não podemos nos esquecer de que o improviso também é uma característica essencial da capoeira. A riqueza das antigas tradições da capoeira se encontra, segundo entendemos, em seus valores e fundamentos éticos e culturais, que são muito mais importantes do que detalhes como o número exato de cada instrumento que os mestres escolhiam para utilizar em sua roda. Outro comentário que pode ser feito também sobre a fala acima destacada diz respeito à utilização do atabaque: sabe-se que sua associação à prática da capoeira é anterior ao berimbau como se pode constatar, por exemplo, na gravura de Rugendas publicada em 1835. Naquela capoeira aparece um tambor, mas não há berimbau. No entanto, é provável que a prática da capoeiragem nas ruas com folguedo popular tenha, até mesmo por razões práticas, ocorridos por muitos anos sem a utilização de atabaques. Essa pode ser uma explicação para o fato de mestre Waldemar se referir ao uso do atabaque como “moda nova”. 

Retornando, então, ao depoimento do mestre da Liberdade, temos um importante relato sobre como ocorriam suas aulas. Há uma tendência a se pensar que nos círculos da capoeira tradicional o aprendizado estava restrito à convivência informal com o mestre. É verdade que a sistematização de aulas de capoeira, com métodos de ensino com maior rigor, tem na capoeira regional sua origem, mas tem-se identificado entre os mestres mais antigos da angola diversas e interessantes formas de transmissão de seu conhecimento adotadas já nos anos 30 e 40. A respeito do tema, mestre Waldemar nos informou como, em situações de ensino, sinalizava com gestos para os alunos determinando os movimentos que deveriam executar: 

“Eu ensinava na roda, mas tinha os dias de treino. Eles estavam jogando e eu fazia sinal pra fazer tesoura, fazia sinal pra chibatear. Fazia sinal pro outro abaixar”.

Assim, mestre Waldemar dava continuidade à tradição de ensino da capoeira angola, conforme aprendeu com diversos mestres, como já afirmamos. Referindo-se ao aprendizado com Siri de Mangue, antigo capoeira de Santo Amaro, disse-nos Waldemar: 

“Ele dava aquela volta e dizia: ‘Pegue na boca de minha calça’. Eu levava pra pegar na boca da calça dele e ele virava aquela carambola desgraçada e já cobria rabo-de-arraia. Quando eu ia levantando ele dizia: ‘Não levante não, lá vai outro’. Os alunos dele jogavam com a gente como que a gente já era bom. Chegava a riscar o chinelão, o sapato, deixar aquele risco. Naquele tempo tinha capoeira”. 

Observações dessa natureza são muito importantes nesse momento de grande expansão da capoeira nos meios esportivos, escolares e universitários, quando muitos dos novos pesquisadores e professores, muitas vezes pelas dificuldades de acesso às informações históricas, concentram-se em elaborar métodos de ensino em alguns casos sem aproveitar todo um conhecimento acumulado em tradições seculares.(…)

 

Revista Capoeira N°07, ano II (páginas 46 a 50)

 

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