Jogando com a Liberdade: A linguagem na capoeira

Lucimar Medeiros de Faria(1)
Redação/Editoração/Formatação modificadas por Angelo Augusto Decanio Filho

“..A arte é um construto existencial humano tanto quanto a filosofia. Se não for a imitação barata da arte de outrem,a arte será sempre genuinamente nacional, tenha ela a forma que tiver na nação em que vier a existir e, ao mesmo tempo, universal, como é universal o homem que a construiu…”
(Ferrarezi,2000)
 
Capoeira é jogo, arte, dança, luta, brincadeira, uma das mais ricas formas de interação social na qual os participantes têm a oportunidade de desenvolver suas potencialidades físicas e intelectuais de forma agradável e descontraída. Contudo, o preconceito contra as manifestações culturais negras, impede que uma significativa parcela da população brasileira tome conhecimento e posse dessa riqueza.
Se o imaginário brasileiro dita que o que é nosso não tem valor, o que dizer então, de algo que é fruto da perspicácia, audácia e criatividade do negro escravo, a quem nossa História fornece gratuitamente um atestado de total incapacidade intelectual, moral, e espiritual? Desejar que o povo brasileiro gratuitamente atribuísse ao negro e à capoeira, uma de suas mais singulares manifestações culturais, uma conotação positiva e construtiva seria querer que o povo brasileiro abrisse mão da aparente necessidade que tem de continuar negando seu próprio valor, sua raiz, num contínuo alimentar de subordinação “cultural” de um país que nunca deixou de ser colônia; seria a tentativa de destruir um aprendizado que nos foi incutido desde o princípio por nossos pais, avós, pela escola, e todos os demais segmentos sociais – a negação daquilo que pensamos que somos.
“Capoeira é coisa de preto”, “de gentinha”, “dessa negrada que não tem o que fazer”, “é macumba, cruz credo!” – estes são apenas alguns exemplos – dos menos agressivos (sic!) – ‘leves’, uma pequena amostra do que ouvimos por aí. Esse desprezo nasce da ignorância. Não se pode amar ou valorizar aquilo que não se conhece e não se pode conhecer de verdade, o que se despreza. Os fatos do passado estão mortos e não têm nenhum poder para modificar o presente, a não ser que deles tomemos conhecimento para dar-lhes vida e poder de ação.
Falar criticamente sobre capoeira, é rever a História do Brasil colonial e, mais especificamente, a História do negro brasileiro, com uma visão científica, buscando perceber onde os historiadores omitem, tentam mascarar ou diminuir a importância de fatos ocorridos durante esse período. A escassez de documentos sobre a escravidão nos estimula a fazer um estudo lingüístico-pragmático dos textos e contextos que temos a nossa disposição sobre o assunto, procurar o dito no não-dito, na tentativa de resgatar a história e a importância dessa complexa manifestação cultural que continua resistindo após quatrocentos anos de descaso por parte de uns, perseguição por parte de outros e marginalização por parte de quase todos. *
 
O Negro
Pois, muito bem: os negros foram arrancados dos seus lugares, vendidos aos traficantes, amontoados em navios superlotados e trazidos para o Brasil, não sem antes passar por centros estratégicos de triagem, nos quais muitos já eram sumariamente descartados como mercadoria de segunda qualidade. A má alimentação, a falta de higiene, as doenças, enfim, os maus tratos e sofrimentos intensos levavam à morte, durante a travessia, de uma grande quantidade deles. “Segundo padre Vieira, os navios negreiros eram popularmente chamados de tumbeiros (de ‘tumba’, sepultura ou caixão) em função do grande número de mortes” (Rodrigues, 1997 p. 37).
Foram trazidos escravos de diferentes partes da África, capturados das centenas de tribos que falavam dialetos e línguas diferentes, variando também em outros aspectos culturais, “…populações inteiras, com cultura desenvolvida, capacidade criadora e participantes de uma estrutura complexa em termos de organização social e política. (…) Não existem povos primitivos, mas povos que elaboram uma estrutura social diferente do modelo do povo observador.” (D’Amorim, 1996, P.12).
Essas populações poderiam ser divididas em três grandes grupos quanto aos tipos culturais:
“O primeiro, das culturas sudanesas, é representado principalmente pelos grupos
Yoruba – chamados nagô;
pelos Dahomey – designados geralmente como gêge e
pelos Fanti-Ashanti – conhecidos como minas;
Além de muitos representantes de grupos menores da Gâmbia, Serra Leoa, Costa da Malagueta e Costa do Marfim.
O segundo grupo trouxe ao Brasil culturas africanas islamizadas, principalmente:
os Peuhl,
os Mandinga e
os Haussa, do norte da Nigéria, identificados na Bahia como negros malê e no Rio de Janeiro como negros alufá.
O terceiro grupo cultural africano era integrado por tribus Bantu, do grupo congo-angolês, provenientes da área hoje compreendida pela angola,e a ‘contra costa,’que corresponde ao atual território de Moçambique.”
(Ribeiro, 1995. p.113,114).
 
Em decorrência desta diversidade lingüístico-cultural somada ao cuidado que os senhores tinham de não comprar muitos negros vindos de uma mesma família ou tribo e somada às repressões sofridas com as proibições de suas manifestações culturais, o negro não teve outra solução senão aprender o português dos feitores, capatazes e senhores.
Este fato pode fundamentar a idéia de alguns pesquisadores que se referem a um processo de aculturação ou deculturação, pelo qual o negro simplesmente imita e absorve o sistema lingüístico do dominador, bem como outros aspectos dos padrões culturais do branco. Teria, então, a escravidão transformado o negro em “tabula rasa”? Prontinho para que nele fosse impresso todo e qualquer conteúdo cultural provindo de seus amos?
Darcy Ribeiro chega a afirmar que o negro quilombola era aculturado, que ajudou a construir a sociedade nacional, se desfez nesse esforço, mas que ao fim só nela sabia viver em razão de sua total desafricanização e ainda que o negro se re-humanizou aprendendo a falar português. No entanto, afirma que o negro refez a nova língua emprestando-lhe singularidade.
(Cf. Ribeiro, 1996, p.220.)
Ao contrário do que faz pensar Darcy Ribeiro, o negro exerce um papel fundamental no processo de formação de uma nova linguagem. Não apenas assimilou meramente outra língua em um processo de desfazimento em face da escravidão.
Nesta luta pela reconstrução ou talvez, eu prefira usar aqui o termo preservação, de sua identidade, o negro segue, acrescentando seu modo individual de falar ao falar lusitano e ainda que timidamente, incorporando à cultura do branco, de forma discreta, sua herança cultural africana(2).
O negro desempenhava um papel que lhe foi imposto. Embora sentisse ódio, desprezo, muitas vezes, nojo de seus senhores, demonstrava grande capacidade de adaptação, coexistia, interagia culturalmente com seu meio e resistiu construindo sentidos novos dentro de um cenário novo e obrigando também, os senhores, senhoras, sinhazinhas, feitores, o comerciante dono da venda ou qualquer outro que com ele convivesse, ou de seu trabalho dependesse, à criação de novos sentidos para um cenário novo, modificado por suas palavras ou pelo seu silêncio, pela sua ação, ou simplesmente pela sua presença.
Assim como não existe cultura primitiva, também não existe linguagem primitiva(3), no sentido de mais complexa ou menos complexa, de maior ou menor valor, de melhor ou pior. O que existe, é cultura e  linguagem. Toda linguagem é construída dentro de uma sociedade, através da interação e consenso entre seus membros. Para Bakhtin, a língua se apresenta como uma corrente evolutiva ininterrupta, é o produto da interação social. Resumindo essa linha de pensamento, Ferrarezi afirma que “a língua é um construto sócio-cultural”.
 
Os jesuítas bem que tentaram europeizar o Brasil através da tentativa de impor o uso de um padrão culto da língua (o que ainda acontece hoje em nossas escolas – jesuítas continuam se reproduzindo aos montes por aí…), e o que disso resultou foi a grande disparidade entre a língua escrita e falada.
 
“Mesmo a língua falada conservou-se por algum tempo dividida em duas: uma das casas grandes; outra das senzalas. Mas a aliança da ama negra com o menino branco, da mucama com a sinhá-moça, do sinhozinho com o muleque acabou com essa disparidade.(…) No ambiente relasso da escravidão brasileira, as línguas africanas sem motivos para subsistirem à parte, em oposição à dos brancos, dissolveram-se nela, enriquecendo-a de expressivos modos de dizer; de toda uma série de palavras (…) muitas vezes substituindo com vantagem vocábulos portugueses (…) verificaram-se alterações ‘bastante profundas não só no que diz respeito ao vocabulário, mas até ao sistema gramatical do idioma’” (Freyre, 1998 p. 333).
 
Apesar de ser “mercadoria”, “peça”, “coisa”, que podia ser comprada, vendida, trocada, alugada, emprestada, hipotecada ou qualquer outra coisa própria daquilo que não se pertence e que não escolhe seu destino, o negro estava lá, “…sempre presente em todas as áreas e setores de atividades. Nas lavouras do norte e do sul, nos serviços domésticos, nas aglomerações urbanas, foi a força fundamental para a economia brasileira na época colonial.” (Queiroz, 1990, p. 34)
 
Este negro, porém, humano que era, não se sentia “coisa”. Não permaneceu passivo, diante da escravidão. Ele se rebelou, resistindo ao trabalho, cometendo suicídios, abortos, além dos assassinatos de feitores, de senhores e de suas famílias e fugindo. Mesmo sendo extremamente vigiado, sofrendo ainda os mais sofisticados castigos não apenas punitivos, mas também “preventivos”, durante seus sete a dez anos de vida produtiva – esta era a média de vida de um escravo, tempo suficiente para que os maus tratos de uma existência dolorosa, explorada, violentada dessem cabo de sua resistência física. O negro fugia sozinho ou em grupo, e se aquilombava.
 
Por mais que nossa História de brancos para brancos pelos brancos – se é que se possa realmente usar este termo para designar um brasileiro – não se sinta confortável em aceitar estes fatos, os quilombos eram comunidades onde o negro plantava, colhia, dançava, se preparava para a guerra, se organizava politicamente e mantinha sua tradição africana somada aos novos aprendizados, lugar onde fazia valer sua condição humana e autenticidade cultural.
Eduardo d’Amorim nos mostra em sua obra África essa mãe quase desconhecida, que Palmares parecia ser uma continuação fiel da cultura africana. E Clóvis Moura afirma:
“O certo é que, onde quer que a escravidão tivesse se instalado, os quilombos eram uma constante(…) Não foi manifestação esporádica de pequenos grupos de escravos marginais, desprovidos de consciência social, mas um movimento que atuou no centro do sistema nacional, e permanentemente.”
(Moura, 1993, p.31).
 
Gilberto Freyre registra que os europeus no Brasil viveram cercados de negros desde o nascimento. As sinhás-moças eram dadas em casamento logo no início da puberdade, “algumas fisicamente incapazes de ser mãe em toda sua plenitude.(…) um filho atrás do outro”.
(Freyre, 1992 p.360).
Muitas morriam antes do tempo, quando então o marido tomava em casamento a irmã mais moça ou uma prima.
Os filhos quase sempre eram criados pelas amas-de-leite. Estas modificavam as cantigas de ninar, alterando nelas palavras, adaptando-as às condições regionais; ligando-as às crenças dos índios e às suas. Modificavam também as histórias portuguesas e acrescentavam as histórias africanas, as quais eram espalhadas através do Akpalô.
As sinhazinhas normalmente eram entregues às mucamas. Logo aprendiam os segredinhos do amor e a cantar as modinhas das senzalas. Os negros foram os músicos da era colonial.
Várias casas-grandes tinham bandas de música negras, e muitos meninos brancos tiveram professores negros.
Os escravos trabalhavam também como barbeiros, dentistas, e executando acrobacias em circos.
Não sei se seria certo dizer que essa interação cultural desafricanizou o negro ou deseuropeizou o Português. Mas, no que diz respeito à linguagem, se as línguas africanas, por seu lado, se “dissolveram” no português, por outro, também, o falar lusitano já não existe no Brasil.
 
Cantigas de Capoeira
“A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, conseqüentemente, somente no processo de interação social.”
(Bakthtin, 1990: p.32)
A Capoeira, como disse anteriormente, não é uma mera manifestação folclórica desprovida de sentido, é um conhecimento construído socialmente, é uma linguagem, que se constrói através de movimentos corporais, num jogo de perguntas e respostas de bailarinos que duelam ao ritmo da orquestra, em que o berimbau comanda a brincadeira enquanto as palmas animam a roda e as palavras das músicas reúnem fragmentos de uma história que a nossa História tenta encobrir.(4)
Na época colonial, esta arte já fazia parte da sociedade como uma comunidade que prestava serviços às classes dominantes, Nestor Capoeira registra que:
“Por volta da Abolição (1888) as maltas locais dividiam-se em dois grandes grupos: Os Nagoas, ligados aos monarquistas do partido conservador,(…) Os Guaiamus, ligados aos republicanos do partido liberal”.
(Capoeira, 1998 p. 41/2)
 
As maltas de capoeira eram reprimidas e perseguidas pelas autoridades e toda a classe dominante porém, eram usadas por elas para satisfazer seus interesses – fazer o trabalho sujo.
Por volta de 1822, começa o movimento de branqueamento do povo brasileiro, a tentativa de criar um Brasil caboclo, já que um Brasil branco era impossível a estas alturas, com tantos negros, crioulos, mulatos e pardos compondo a população brasileira.
Não podemos estabelecer o número exato de negro-africanos trazidos para o Brasil, já que houve muito contrabando.
As estimativas variam muito e os historiadores tendem a diminuir esses números devido à falta de estatísticas“ e também porque alguns historiadores procuram branquear a nossa população.”
(Moura, 1992: p.9 – Grifo do autor)
Os ataques constantes aos quilombos, a repressão aos capoeiras e a outras manifestações culturais negras, a abolição do trafico negreiro em 1850, a Guerra do Paraguai, quando o Brasil arregimentou negros forros e esvaziou os canaviais e cafezais em decadência para formar os principais quadros de infantaria, entre eles, o Batalhão de Zuavos, onde todos eram capoeiristas(5), especialistas na luta corpo a corpo, prontos a conquistar trincheiras inimigas, todos estes fatos contribuíram para diminuir em número a população negra, “branqueando” assim – o povo brasileiro.
 
Mas a capoeira resiste, o Negro “volta-se para o lado cultura, que se torna fundamental: o cultural torna-se arma
(Capoeira, 1992 p. 28)
Os textos das músicas da roda de capoeira retratam a dinâmica inerente a esta forma de expressão cultural; além de contar a história do povo afro-brasileiro, estes textos mostram os conflitos gerados dentro do contexto desta arte e ressaltam as tradições e fundamentos desta luta-jogo, onde o capoeirista procura construir sua identidade e alcança legitimidade.
Segundo Luiz Renato Vieira, a análise dos cânticos apresentados no desenrolar das rodas, permite:
“…a identificação de três funções básicas: Uma função ritual, fornecendo a animação da roda, juntamente com palmas e instrumentação. No tocante ao seu conteúdo, o cântico de capoeira cumpre o papel de elemento mantenedor das tradições, reavivando a memória da comunidade da capoeira acerca dos acontecimentos importantes em sua história (as lutas pela libertação, os quilombos, a ida – forçada, obviamente – dos capoeiristas à Guerra do Paraguai, as fugas da polícia, etc.) e dos nomes famosos nas rodas de capoeira.(…) o cântico da capoeira atua como espaço dinâmico de constante repensar dessa mesma história, dos princípios éticos nas rodas e da inserção da capoeira e do elemento negro na sociedade.”
(Vieira,1998, p.45)
A ausência de registros – (até o momento) – nos impede de afirmar quando exatamente, e onde começou o jogo da capoeira. Mas, trabalhos de Thomas Ender, intitulado Negros, (1817); de Rugendas, Jogo de capoeira, (1834); de Debret, Negro volteador à frente de um enterro,e ainda Tocador de berimbau(1834) são obras do período da escravidão negra que mostram manifestações culturais africanas em território brasileiro.
Tomando como base a concepção Bakhtiniana – da linguagem, posso afirmar que aqui, negros de diferentes nações e tribos – se obrigaram – a uma interação para a construção de sua resistência e de uma nova consciência, com um conteúdo ideológico específico, onde a palavra – que enquanto signo neutro a disposição deles – foi usada para comunicação, impregnada portanto de um conteúdo ideológico específico, “…absorvida por sua função de signo. (…)
Cada domínio possui seu próprio material ideológico e formula signos e símbolos que lhe são específicos e que não são aplicáveis a outros domínios.”
(Bakthin , 1990: p. 36/7)
A capoeira possui uma linguagem própria; apenas aquele que se integra neste contexto – é capaz de alcançar sua dimensão.
Ao ver uma roda de capoeira, três pessoas tocando berimbaus, alguém batendo um pandeiro, os componentes batendo palmas, enquanto duas pessoas jogam, dançam e lutam, mas raramente se tocam ou se machucam… pode-se pensar que se trata de uma manifestação sem uma lógica – e sem sentido internos; pode-se crer que não se trata de uma manifestação representativa de algo. Mas, certamente, não é este o caso.
Alguns exemplos simples mostram isso:
quando alguém cai, ouve-se o canto:
A canoa virou marinheiro;
Oi no fundo do mar tem dinheiro.
Se esse observador não alcança as representações deste grupo, não entenderá que este é um incentivo e consolo para o capoeirista que caiu, tentando lembrar a ele que ir ao chão, pode não significar necessariamente uma queda, mas sim uma oportunidade para a aplicação de outro golpe que tem chance de ser bem sucedido.
Ou ainda:
Macio feito uma mola;
Capoeira é de valor;
Põe mandinga nesse jogo;
Berimbau já reclamou.
 
Para se perceber o elogio e ao mesmo tempo a exortação que o mestre /ou professor está fazendo ao jogador para que este tente jogar com mais graça e malícia, é preciso que a significação de cada signo tenha o mesmo conteúdo ideológico.
A carga semântica destas frases e a poesia contida nesta comparação, metáfora e personificação, capazes de provocar arrepios, são resultado de uma interação social
Bakhtin, confirma:
“a significação não está na palavra, nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor, é o efeito da interação do locutor e do receptor…”
(op. cit. p.132)
 
Mestre Deputado avisa:
“As cantigas trazem uma característica comum: a linguagem, em geral, é figurada, sendo sua compreensão restrita ao âmbito dos capoeiristas.
Com isso,para aqueles que ignoram, são “apenas” cantigas…”
(Deputado, p.48)
Outro tipo de construção cultural interessante é o registro da história da escravidão negra nas canções como esta, – parte do maculelê – onde se vê:
Negro nagô quando morre vai pra cova de bangüê;
Amigo tão dizendo que urubu vai te comer;
Aqui-ba-bá aqui-lê-lê;nêgo nagô fede mais que sariguê
Este extrato, de domínio público, remonta a realidade sobre o enterro de negros na era colonial, quando “Muitos negros eram enterrados na praia: mas em sepulturas rasas, onde quase sem esforço os cachorros achavam o que roer e os urubus o que pinicar.”
(Freyre,1992; p. 439).
Muitos capoeiristas dividem os cantos de capoeira em três tipos:
Ladainhas (cantos de entrada, chulas),
Corridos e
Quadras,
Outros preferem denominá-las:
Ladainhas,
Chulas e
Corridos.
Mas não trataremos dessa divisão agora.
Por hora, nos importa perceber que estas canções nos contam, como já foi mencionado acima, a história de um povo.(6)
Do povo que construiu um país, enquanto a uma grande parte deste mesmo povo – foi e tem sido negado o direito a uma vida digna. “A história na verdade das coisas, se passa nos quadros locais, como eventos que o povo recorda e a seu modo explica.”
(Ribeiro,1996, P.269)
 
Conclusão
Muitas destas canções, ao cair no domínio público, sofrem modificações e sua complexidade e riqueza artística são ampliadas cada vez que capoeiristas se reúnem para jogar. Mas elas não perdem suas características tradicionais. Principalmente o fato de serem um elemento de interação, de mobilidade, em que num processo cíclico, se renovam e fazem as adaptações necessárias para manter viva essa arte que desempenhou um papel de grande importância no processo de conquista da liberdade do escravo brasileiro, não somente no que tange à liberdade física, posterior, mas especialmente no que tange à liberdade psicológica, muito anterior àquela.
Ainda hoje a capoeira continua promovendo um espaço de libertação do ser que a pratica enquanto forma de conscientização do próprio corpo, de desenvolvimento de suas capacidades físicas e intelectuais.
Necessário se faz que mais pesquisas sejam conduzidas, no sentido de documentar com bases científicas – o que se passou e se passa no mundo da capoeiragem, para que a sabedoria de velhos Mestres, seja colocada ao alcance de um número maior de pessoas. E para que o encanto dessa arte tão rica, que é nossa – e não uma mera cópia dos moldes europeus – possa chegar até o brasileiro que ainda não a conhece e, com a sua magia, despi-lo de seu preconceito.
 
BIBLIOGRAFIA
   1. AREIAS, Anande das. O que é capoeira. São Paulo, Tribo, 1993
   2. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec, 1999.
   3. CAPOEIRA, Nestor. Capoeira Galo já cantou. Rio de Janeiro, Record, 1990.
   4. ________. Capoeira Pequeno Manual do Jogador. Rio de Janeiro, Record, 1998.
   5. ________. Capoeira: Os fundamentos da malícia. Rio de Janeiro: Record, 1981.
   6. D’AMORIM, Eduardo. África essa mãe quase desconhecida. São Paulo, FTD, 1996.
   7. FERRAREZI Jr.,Celso. Considerações sobre a arte no Brasil. Guajará-Mirim: Cepla Working Papers, 2001.
   8. FREIRE, Gilberto. Casa, Grande Senzala. Rio de Janeiro, Record, 1992.
   9. MACEDO, Joaquim Manoel de. As vítimas algozes. São Paulo, Scpione, 1991.
  10. MOURA, Cloves. Quilombos. São Paulo, Ática.
  11. QUEIROZ, S. R. R. de. Escravidão Negra no Brasil. São Paulo, Ática, 1993.
  12. REIS,Letícia vidor de Souza. O Mundo de pernas para o ar: A capoeira no Brasil. São Paulo, Publisher Brasil, 1996.
  13. RODRIGUES, Jaime. O Trafico de escravos para o Brasil. São Paulo, Ática, 1997.
  14. RIBEIRO, Darci. O povo brasileiro. São Paulo, Schwarcz LTDA, 1996.
  15. SOUSA, Walace/Mestre Deputado Capoeira arte folclore. Oficinas do Estado de Goiás Empresa Gráfica e Jornalística Ltda.
  16. VIEIRA, Luiz Renato. O jogo da Capoeira – Cultura Popular no Brasil. Rio de Janeiro, Sprint, 1998.
 
ISSN 1517-5421    lathé biosa
ANO I, Nº 149 – MAIO – PORTO VELHO, 2003
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)
CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE
EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
 


(1) Aluna do Mestrado em Lingüística – UFRO  [email protected]
(2) Grifo AADF
(3) Grifo AADF
(4) Aluna do Mestrado em Lingüística – UFRO  [email protected]
(5) ? Nota AADF.
(6) Grifo AADF

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