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Livro: Roda dos Saberes do Cais do Valongo

Esse livro documenta uma experiência singela. Acontece no cais do Valongo desde julho de 2012. O Valongo, lugar de desembarque de centenas de milhares de africanos escravizados entre 1774 e 1831, passou em seguida quase dois séculos encoberto e esquecido pelos habitantes do Rio de Janeiro e seus visitantes. Como era inconveniente lembrar desse lugar de sofrimento e de profunda injustiça, os donos do poder carioca o encobriram, primeiro com outro cais, depois com um largo chamado de “Jornal do Commercio”, o que evoca notícias de uma atividade decente e normal, não um crime contra a humanidade.

Agora, graças a iniciativa de Mestre Carlão e dos alunos do Kabula Artes e Projetos, reúnem-se ali na sombra mais próxima ao lado do antigo cais, cada terceiro sábado do mês, capoeiristas, artistas, acadêmicos e outros transeuntes para participar das várias rodas consecutivas: a roda dos saberes, a roda dos fazeres e a roda de capoeira. As falas da roda dos saberes, diligentemente selecionadas por Carlo Alexandre Teixeira e editadas pelo escritor e artista Délcio Teobaldo, permitem ao leitor entrever um pouco daquilo que está acontecendo nesse local que representa, segundo Ali Moussa Iye, diretor da Diversidade Cultural da UNESCO, “o mais importante sítio de memória da diáspora negra fora da África”. O Valongo constitui assim um lugar crucial de memória para lembrar a tragédia que foi o tráfico transatlântico de seres humanos escravizados, e sua escala inhumana de quase um milhão de vítimas desembarcadas apenas nas pedras desse cais. Por que a memória desse lugar foi silenciada durante tanto tempo? Milton Guran salienta na sua fala que os “capitais financeiros do Império tiveram ligação direta e participação direta com o tráfico negreiro. […] Toda economia do Império estava diretamente ligada e desfrutava do tráfico negreiro.”  De fato, é bom lembrar que o Rio de Janeiro foi não somente o maior porto de desembarque de escravos nas Américas, mas também o segundo maior porto de origem dos navios negreiros, depois de Liverpool, na Inglaterra. Ou seja, o Rio não era apenas o porto de destino dos navios negreiros de negociantes portugueses, mas foi mesmo o segundo mais importante porto de armação do infame comércio, perdendo apenas para Liverpool.

O Valongo é denominado de complexo porque inclui não somente o cais de desembarque, mas também o cemitério dos Pretos Novos para onde foram aqueles milhares de recém chegados que não se recuperaram dos horrores da travessia. Foram jogados em fossas comuns ali mesmo, sem cerimônia. Por que os traficantes haveriam de considerar os mortos se maltratavam os vivos? Como explica Denise Demétrio, o descaso com o corpo do escravo defunto era a norma no Rio de Janeiro colonial. A distância da fazenda para um cemitério ou para a igreja da paróquia geralmente sendo grande, “os cadáveres eram largados na estrada ou enterrados no meio do caminho para não custar um dia inteiro.” Mas ela também nos fala das primeiras pontes que se estabeleceram entre os próprios escravizados, também com a população pobre “de cor” e até mesmo com os senhores. Isso é revelado pelos registros coloniais de batismo do Recôncavo da Guanabara. O compadrio que se instaurou entre a casa grande e a senzala é o símbolo máximo do escravismo patriarcal brasileiro. Através dele, o dono reconhecia a humanidade de sua propriedade e a ideia da família extensa incluindo seus escravizados lhe permitia dar um ar de aparente respeitabilidade à instituição do cativeiro. Também acabou subvertendo a ideia de pensar a escravidão unicamente “como dois blocos, os senhores e os escravos.”

Entre a chegada, a re-partida ou a morte, o Valongo também foi um lugar de quarentena para os recém-chegados onde deveriam ficar até sua recuperação e venda. Por isso, salienta Hebe Mattos, o complexo do Valongo também é um “um espaço de aprendizado da língua, do trabalho, uma espécie de socialização para a nova vida que teriam.” A partir desse momento, o Valongo passa a ser não somente um lugar de tragédia, mas também de um milagre, que Richard Price chamou do “milagre da crioulização”. Várias das falas reproduzidas aqui nos contam outros aspectos desse processo de criação cultural. A minha própria fala tenta resgatar a memória dos Benguelas, um grupo importante entre os desembarcados, tanto em termos numéricos quanto pela sua cultura de jogos de combate que contribuiu muito para a formação da capoeira. Cláudio de Paula Honorato discorre sobre os capoeiras que trabalhavam na região portuária, destacando os grandes capoeiristas locais como o Prata Preta. Já Mestre Neco nos fala de seus próprios mestres: Adilson, Moraes, e o início da capoeira angola no Rio, até a década de 1980. 

Martha Abreu também faz reviver os bairros portuários, espaço de trabalho de uma população em sua maioria negra ou afrodescendente, mas também espaço de lazer. Depois da abolição do tráfico e do cativeiro, a “Pequena África” continua a receber migrantes negros, só que agora eles vêm da Bahia ou do Vale do Paraíba… Ela põe em evidência essa sociabilidade negra dos bairros portuários que pesquisas recentes estão redescobrindo. Personagens fascinantes como o Mano Elói, migrante do Vale do Paraíba, que “pertence ao candomblé, é capoeirista, trabalha no porto como estivador, participa de blocos, de ranchos e passa a ser fundador-membro atuante da fundação da Portela e depois da Império Serrano.” Luiz Antônio Simas reivindica que caras como ele seriam “os verdadeiros heróis civilizadores do Rio de Janeiro”, e providencia aos ouvintes mais um insight provocador dessa permanente tensão entre tragédia e milagre, no caso “o incômodo fabuloso que é você pensar uma cidade que tem como seus heróis civilizadores que codificaram, talvez, a maior referência de construção do imaginário dessa cidade que é o samba urbano carioca, uns camaradas que estavam lá traficando maconha; os camaradas que estavam lá colocando mulher na zona; uns camaradas que estavam lá morrendo de sífilis, morrendo de briga de esquina, morrendo por causa de um jogo da chapinha, morrendo por causa de um jogo de ronda.” A genealogia da cultura diaspórica não é, por definição, simples. Muita gente acredita, por exemplo, que o semba, gênero musical angolano, seria a origem do samba brasileiro.

Mas como Mauricio Barros de Castro explica na sua fala sobre a história do N’Gola Ritmos, não foi bem assim. Esse grupo se engajou na luta anti-colonial, trouxe o quimbundo de volta pra canção angolana, dominada até então pelos chamados  “assimilados”. Mas o que veio a ser o semba foi concebido pelo predecessor “Grupo dos Sambas”, orquestra angolana “inspirado justamente no samba brasileiro”. Assim, “essas culturas que consideramos nacionais são, na verdade, construídas nos movimentos de diáspora; nos movimentos de trânsito Atlântico.” Adriana Facina examina um novo capítulo dessa história do silenciamento e da criminalização das expressões culturais da diáspora africana. O Programa de Aceleração ao Crescimento (PAC) efetivou uma série de remoções em favelas com consequências negativas. Ela nos conta como no Complexo do Alemão, obras do PAC destruíram uma galeria de grafite a céu aberto, produzida pelos artistas locais e, também, por artistas de fora. Esse rebaixamento das manifestações culturais é visível em várias outras manifestações culturais populares. Segundo constato de MC Leonardo, o processo de “pacificação” das comunidades, a ação da UPP, teve como resultado acabar com a diversidade cultural: “O baile funk não está agonizando, ele já morreu e a gente precisa revitalizar”. Com isso, acabou o concurso entre funkeiros, importante para a criatividade e interação do artista com público. No momento, a “molecada” da cultura está inventando as Rodas de Rima. Mas  mesmo “para rimar no meio da rua, sem caixa de som” ainda precisa de autorização da prefeitura… Por isso Amir Haddad afirma: “Quando saio pra rua estou transgredindo, estou politicamente me opondo a esta cidade, a esta cidade que não dá espaço para criação, uma cidade sem linguagem.” Vários palestrantes da roda dos saberes nos falam assim do poder de mobilização da arte, em particular da arte pública como o grafite e o funk, ou da roda de capoeira. Acredito que o Valongo, por ser um espaço de memória tão impactante, tem a vocação de também virar um espaço privilegiado para a arte pública. O Valongo, espaço de arte pública, e como resultado disso, também espaço de utopia. Ainda nas palavras de Amir: O espetáculo de rua “passa a ser a utopia representada, […] quando se equilibram as forças públicas e as forças privadas em um espetáculo, quando se estabelece a harmonia entre o privado e o público […] Você está eternamente naquele lugar. Presente, passado, futuro é uma coisa só, no momento que você consegue esse encontro na praça com as outras pessoas”.

Isso é particularmente relevante agora que a área portuária está passando por uma mudança radical. Investimentos bilionários estão resultando numa reforma impressionante da infraestrutura além da construção de espaços para escritórios, comércio e moradia. Torres novas estão pipocando em vários lugares. O perigo é que mais uma vez passa a operar a política do silenciamento. Como lembra Wallace de Deus, a nova sede do Banco Central será edificada no local mesmo onde ficava o Lazareto dos Escravos. Vai ter algum tipo de memória em evidência no edifício novo do Banco Central?  É  verdade que foram resgatados alguns artefatos provenientes das escavações pelos arqueólogos. Um percentual do faturamento do Porto Maravilha é dedicado para a cultura, o que está abrindo uma série de oportunidades. Mas é importante também que os espaços de sociabilidade da área sejam reconstruídos ao mesmo tempo, para que a região portuária continue sua tradição, cultuando o seu milagre, a Pequena África. Como diz o Guran: “Então, o Valongo pode, no prazo de uma geração se transformar num grande centro multiplicador de cultura de matriz afro-brasileira, mas nós, a sociedade cível, temos que lutar pelo que consideramos correto.” Com as rodas de rima e de capoeira de rua em vários pontos da cidade, as sessões religiosas no Cemitério dos Pretos Novos e outras muitas iniciativas nessa área portuária que não tem espaço aqui para enumerar, isso já está acontecendo. Seria bom também mudar o nome do “Largo do Jornal do Commercio” para “Largo do Infame Comércio”, para dar mais visibilidade ao Valongo e reverter o processo de silenciamento. Por isso também a fabulosa iniciativa dos iniciadores e participantes da roda do Valongo merece todo nosso apoio.

Essas são as melhores maneiras de prestigiar os ancestrais africanos que foram desembarcados aqui: ocupar o Valongo com as rodas, os rufos dos tambores, os toques dos berimbaus – o milagre que deixaram para nós. 

Matthias Röhrig Assunção – Essex, 23 de novembro de 2014

 

Introdução

As obras de urbanização do Porto Maravilha, realizadas na Região Portuária do Rio de Janeiro, redescobriram o Cais do Valongo em 2010, após 167 anos encoberto por sucessivas ondas civilizatórias que transformaram radicalmente sua configuração original. No ano seguinte, graças ao Decreto Municipal 34.803 de 29 de novembro de 2011, o monumento passa a integrar o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração Africana, composto por seis marcos históricos que legitimam a presença africana na região.

A partir dessas mudanças, o local se configurou como espaço urbano adequado à prática da Roda de Capoeira, evidenciado pela singularidade de ser o ponto onde funcionou o maior entreposto escravagista durante o período do tráfico Atlântico de africanos. Este fato acabou despertando a consciência, motivando o interesse e gerando a necessidade de se falar a respeito do que havia acontecido, em especial, na região conhecida a partir do inicio do século xx, como A Pequena África, um dos berços da cultura afro-brasileira no Rio de Janeiro. A Roda de Capoeira do Cais Valongo iniciou suas atividades no dia 14 de julho de 2012, treze dias após a inauguração dos monumentos do Cais do Valongo e da Imperatriz e Jardins Suspensos do Valongo. As palestras que precedem cada roda de capoeira logo ganharam nome, passando a se chamar Roda dos Saberes. Em seguida foi criada uma agenda fixa, trazendo um programa de que participaram palestrantes renomados. Esse formato atraiu a atenção do público engajado na cultura popular, da mídia, pesquisadores e acadêmicos que entraram em contato, solicitando dados relativos aos objetivos e desdobramentos da roda para pesquisas ligadas a políticas públicas e cultura popular, dentro da ótica da “arte pública” e da democratização e ocupação dos espaços urbanos.

Este livro é fruto desta roda pública, realizada a céu aberto no antigo Cais e desde seu início se propõe a pensar a cidade do Rio de Janeiro, a partir de fatos passados e atuais da sua história e de sua cultura, através do convite a pesquisadores, professores especialistas e artistas para falarem, in loco, sobre temáticas relacionadas a estas áreas do conhecimento. De 2012 para cá, contamos mais de 30 rodas naquele local e uma frequência estimada em mais de três mil visitantes, entre amantes da cultura, capoeiristas, pesquisadores, moradores da região e turistas, que visitam o Valongo nos dias de roda para assistir não apenas a capoeira angola mas, também, às atividades integradas a ela. Por isso, é importante frisar que seu maior diferencial e ineditismo consiste na dimensão da produção de conteúdos, dinamizados no contexto desta cultura imaterial, ou seja, a partir do envolvimento de especialistas nas Rodas dos Saberes como prática sistemática integrada à Roda de Capoeira. Somada a isso, outra grande inovação surgida dentro desse processo foram os registros fotográficos, realizados pela fotógrafa Maria Buzanovsky e a captação de imagem em vídeo por Guilherme Begué. Com destaque para as fotografias que impressionam pela qualidade artística e invadiram o ciberespaço através das redes sociais, além de serem expostas em museus e galerias de arte, no Rio, Niterói e Lyon, na França. Além disso, também conquistaram prêmios de fotografia importantes. As filmagens se tornaram clipes bem realizados, exibidos em sites de compartilhamento de vídeos. Ao mesmo tempo em que tudo isso acontecia, alguns grupos de capoeira angola criaram o movimento cultural Conexão Carioca de Rodas na Rua: um calendário mensal de Rodas Públicas de capoeira, com datas fixas e locais pré-estabelecidos, ocupando espaços públicos da cidade.

O Conexão Carioca, como ficou conhecido o movimento, sistematizou e ampliou algo que já acontecia na cidade há muito tempo, facilitando ao público o acesso ao conhecimento e à participação nas rodas, divulgando e ampliando as oportunidades para que os capoeiristas, também, a pratiquem publicamente. É inegável dizer que graças ao envolvimento de diversos grupos e de rodas de capoeira, integrados num movimento organizado, a Roda do Cais do Valongo ganhou visibilidade sem precedentes, assim como as outras rodas do Conexão Carioca, destacando-as no circuito cultural e nos espaços públicos da cidade. É bom notar, que após alguns meses de funcionamento dessa metodologia de trabalho, que associou o calendário do Conexão Carioca à produção e à circulação das fotos e vídeos na internet, foi gerado um impacto sobre diversas rodas pelo Brasil e pelo mundo, pois deram mais visibilidade e importância às rodas públicas de capoeira. Portanto, foi por meio dessa sequência de ideias que se criaram condições especiais para que a Roda do Cais do Valongo alcançasse notoriedade e impacto positivo, especialmente, sobre a Região do Porto. Hoje, esta ação é considerada uma das tradições culturais locais e a prova disso é que foi integrada como um dos pontos de partida do “Roteiro de Visitas Guiadas à Região Portuária”, enquanto patrimônio cultural imaterial de herança africana, uma ação patrocinada pela Concessionária Porto Novo.

É importante perceber que, nesta mesma época, houve uma aproximação maior entre os agentes culturais locais com o poder público. Este processo coletivo reuniu diversos agentes culturais, gestores e artistas independentes que realizam atividades na zona portuária, organizados em torno de um objetivo comum: a reivindicação de programas, ações e políticas públicas para a cultura da região. Foi a partir desta ação integrada que se consolidou o Condomínio Cultural da Região Portuária, que até hoje possui papel crucial no diálogo, entre os protagonistas que fazem a cultura e a arte do porto com o poder público. Em meados de 2013, a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP) e a Prefeitura do Rio, alinhadas às diretrizes traçadas pelo Programa Porto Maravilha Cultural, lançou o primeiro prêmio dirigido exclusivamente aos projetos para a Região Portuária do Rio de Janeiro, o “Prêmio Porto Maravilha Cultural”. A partir daí surge a oportunidade para que diversos agentes e gestores culturais que trabalham na região portuária possam transformar suas ações em projetos ou seus sonhos em realidade.

Nesse momento, a Roda do Cais do Valongo foi inscrita como projeto, com o nome O Porto Importa – Memórias do Cais do Valongo, destinado à manutenção das três ações que já aconteciam: a Roda de Capoeira do Valongo, a Roda dos Saberes e a Roda dos Fazeres (oficinas). A novidade é que incluímos três novas ações objetivando ampliar o alcance do projeto. Assim, propomos uma exposição com as fotos de Maria Buzanovsky; um vídeo documentário Memórias do Cais do Valongo e o livro Roda dos Saberes do Cais do Valongo, que agora vocês terão a oportunidade de ler.

O projeto O Porto Importa – Memórias do Cais do Valongo foi premiado entre 34 dos 206 inscritos para a seleção e, desde então, já mobilizou para o Valongo uma quantidade considerável de público durante os seis meses do projeto. Esse público é composto, basicamente, por professores e alunos da rede pública de ensino, crianças moradoras em ocupações, assim como alunos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do Programa Estudante Convênio de Graduação de países africanos e caribenhos: Jamaica, Costa do Marfim, Benin, Congo, Haiti e Barbados, o que nos motiva e estimula ampliar as atividades que realizamos na região do porto. Esperamos que vocês, leitor e leitora deste livro, satisfaçam a forte demanda por conteúdos relativos à história do Rio de Janeiro, neste momento de aparente sensibilização da memória carioca e sejam contagiados pelo diálogo proposto entre os 13 autores, cuidadosamente selecionados, nessa cartografia afetiva de memórias que surgem a partir do Cais do Valongo.

Carlolo Alexandre Teixeira – Rio de Janeiro, 20 de novembro de 2014

 

 

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