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Memórias de um cidadão-capoeira

O livro de Umói: Memórias de um cidadão-capoeira

No meio de centena de milhares de carros que disputam um espaço no meio da tarde de nossa Capital Federal, a Brasília de nossas vidas comuns, de nosso começo, no início da estrada em que ele também viveu e representa no seu livro.

Os carros loucos buscam uma passagem, uma brecha por onde se jogar, por onde encaminhar sua vida, seus anseios e sua cavalgada, no trote dos minutos rápidos que passam sob a neblina desses passos que damos sem notar…

Ali exatamente eu começo a me lembrar do livro Capoeira, provocando a Discussão, que  meu amigo/irmão Mestre Umói,  de Souza, lançado recentemente na calma serrana de Sobradinho, quase no anonimato da vida oficial do planalto central do Brasil e que eu já tive o privilégio até mesmo de ler a versão pré formatada, antes de sair da gráfica e agora recebo o exemplar que me foi destinado por seus discípulos, dias após a sua impressão, já que ele se encontra na sua nova terra, nas proximidades de Dusseldorf, na Alemanha.

Nesse burburinho eu me lembro da importante verdade que podemos encontrar na capoeira e que Umói retrata no seu livro, de que nós somos embevecidos de uma calma privilegiada…  os capoeiristas são pessoas que conseguem ser tranqüilos, embora vivendo no meio de uma série de competições estereotipadas das cidades, da vida comum das pessoas,  onde se disputam coisas estranhas, escrotas, feias e sem brilho, transformando o ser humano num arquétipo de coisa nenhuma que povoa os lugares-comuns.

Essa calma nos permite sair pela vida de uma maneira própria, colecionando pérolas que a estrada oferece para quem está com tempo para tal, para quem se presta e se empresta a essa jornada sem volta da vida, essa coleção de momentos eternizados na memória poética que habita os capoeiras, são rodas, são canções, são amigos, são momentos, são viagens, são pétalas de energia que são recolhidas com a calma dos caçadores de vida, num planeta já quase sem…

Nessa estrada que vai para um lugar incerto, ele não quer chegar em lugar nenhum, ele é qualquer um, é um de nós, é um Capoeira, seu caminho não tem fronteira, nem balela, tem o espírito que anda, como meu personagem favorito da infância O Fantasma, da revista em quadrinho que lia e relia mil vezes. Pelo caminho, na calma ele vai entoando os seus versos de poeta e de capoeira, com seu berimbau, em cada página, recheadas de alegrias e de tristezas, de beleza, de vidas que preencheram a sua vida. Umói respira o que o vento lhe traz em cada passo, celebrações e momentos cruéis são apenas paisagens de um guerreiro que sai vadiando pela vida, e rir ou chorar é parte da história, não há tempo para pausar a caminhada. O berimbau recomeça a próxima roda e a vida continua consumada em mais uma ladainha.

Ele partilha sua história de modo generoso e grato por tudo. Ele é um irmão de todos. É um de nós, como disse. De nosso mundo, valoriza as suas origens, sua história, sua cidade, seus amigos, seu povo, sua terra e seu bairro. É um exemplo da mais pura expressão de amor por tudo que se tem desse mundo e que brota no coração de quem ama o que faz. 

Egoísmo meu me sentir na história dele, na história da capoeira de Sobradinho, mas enquanto ele estava dando seus primeiros passos na Arte da Capoeira, eu também o fazia, somos contemporâneos do mesmo ano de 1974. Ele em Sobrado e eu no Plano Piloto, além de minhas próprias questões de órfão de mãe e pai, chegado a pouco do Rio de Janeiro onde aprendi bastante coisa, quando sai do interior de Minas e de lá pra Capital Federal, enfrentava o estranho vazio de povo, do que a vida de Umói era plena. Muito mais tarde eu descobri, quando fui para Fortaleza-CE, que a capoeira vem do povo, é dele, e não existe história verdadeira que não passe pelas aventuras e desventuras de um cidadão comum que virou capoeira.

No Plano as coisas ainda eram mornas para mim, só haviam as aulas e os eventos, não tinha a convivência de perto, do dia-dia com os camaradas da Academia. Local sagrado de conviver com bambas, mas ao sair porta afora a vida era outra, de trabalhador aprendiz da vida, as vezes a noite, mas sempre conciliando os deveres e a Academia Tabosa, a maior da cidade. Algum tempo depois, passados muitos anos, conheci Umói, já corda vermelha, por isso fui muitas vezes nos treinos no Bumba, nas rodas de sábado ou domingo. O lugar próximo a uma mata fechada era um convite para ir beber daquele axé maravilhoso, onde todos riam e brincavam de forma harmônica… Era maravilhoso ir lá, na Roda do União, rever e curtir pessoas como o Jeová, o Mariô, figura ímpar, única, eternamente ele só, na história de qualquer pessoa que o conheça.

A vida seguia em frente. Exatamente como conta o Mestre Umói. Os movimentos na Capital Federal eram cada vez mais intensos e os novos tempos acabaram por unir mais e mais a galera da periferia – no caso do DF, as cidades-satélites – aos capoeiras do Plano, forma resumida com que se entendia o Centro da Capital da República. 

Umói foi generoso também nisso. Compartilhou sua História com os daqui do Plano e de outras cidades-satélites, como ele frisa quando destaca sua admiração por capoeiristas que conviveu nos seus anos de aprendizado e de caminhada pelas estradas da Capoeira.

Depois dessa fase tão rica e envolvente, ele entra na difícil seara das verdades e inverdades, conversas fiadas, conversas sérias, parâmetros de autonomia dos grupos, esse modismo estranho que tenta pasteurizar a capoeira…

Umói debate e se debate com a falta de personalidade que assola os grupos de capoeira.

Ele desconfia de determinados modismos e das ideias que tenta definir os rumos da capoeira de acordo com os estereótipos e as verdades universais que as vezes se encontram nas práticas da capoeira.

Mais ainda, debate a questão internacional que envolve a capoeira na Europa, onde a cerca de 20 anos ele vive e professa sua arte.

Ele lembra certas premissas e condições inerentes ao aprendizado da capoeira, o idioma por traz e por dentro dessa arte. O aprendizado cultural brasileiro implícito na sua linguagem e todo desafio envolvido para que um estrangeiro se torne mestre da capoeira.

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O seu debate vai bem longe. Vive dentro dessa questão. Conhece de perto em anos de convivência. 

Alguém pode até discordar de sua visão, mas nunca lhe negar a fala, a reflexão e deixar de levar em consideração suas questões. Ele sabe o que fala e o que pensa!

Umói demonstra sua indignação sem meias palavras. Tem sua tranquilidade em afirmar o que discorda e o que vê de deformação na capoeira. Tem a capacidade de transcrever com clareza sua percepção das questões da arte.

É um Mestre de Capoeira. Tem todo o direito de se manifestar.

Tem trabalho. Tem estrada. Tem credibilidade. Tem carisma. Tem as palavras que lhe saem mais do coração do que da mente! 

 

 

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