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Monteiro Lobato: Futebol e Capoeira

Texto retirado do Site do meu grande camarada Miltinho Astronauta, que por agora anda muitíssimo ocupado com seus estudos, que no interesse da capoeira e da informação nos passou o berimbau enquanto termina seu mestrado.
Volte loga meu camarada pois o Jornal da Capoeira é um veicúlo fundamental dentro do universo capoeirístico.
Nós do lado de cá vamos segurar o jogo e continuar lutando e trabalhando para manter nossos leitores intretidos e repletos de informação.
 
Um grande abraço camarado…
 
Luciano Milani
Crônica extraída do livro Coleção dos Grandes Livros Brasileiros, volume V
 
Nota do Editor
 
Abrimos nossa série Clássicos da Literatura Capoeirística, com a famosa crônica "Nosso Jogo", de Coelho Netto.  O sucesso foi mais do que surpreendente, confirmando a importância de continuar a série. É o que fazemos hoje com outra famosa crônica, desta vez do extraordinário brasileiro, nacionalista, Monteiro Lobato " "O 22 da Marajó" (Coleção dos Grandes Livros Brasileiros " Volume V = Contos Leves. Companhia Editora Nacional, III Parte, 1935).
 
A exemplo da crônica de Coelho Netto, também esta, de Monteiro Lobato, já foi publicada em alguns jornais de capoeira, mas de modo incompleto, sem a primeira parte, onde Lobato faz uma interessante análise sobre o início da prática do futebol aqui no Brasil.  Nota-se aí, muito bem, o seu nacionalismo.  A Capoeira está fazendo trajeto inverso. O futebol veio de fora para dentro, Capoeira está saindo do Brasil para o mundo.  Pensando bem, isto não será um alerta para a nossa Capoeira?
 
Miltinho Astronauta
"O 22 da Marajó"  – Introdução
 

Esse delírio que por aí vai pelo futebol tem  seus fundamentos na própria natureza. O espetáculo da luta sempre foi o maior encanto do homem; e o prazer da vitória pessoal ou do partido, foi, é e será a ambrósia dos deuses manipuladas na terra. Admiramos hoje os grandes filósofos gregos, seus servos, porém admiravam muito mais aos atletas que venciam no estádio. Milon de Crotona, campeão na arte de torcer pescoços a touros, só para nós tem menos importância que seu mestre Pitágoras. Para os gregos, para a massa popular grega, seria inadmissível a idéia de que o filósofo pudesse um dia ofuscar a glória de lutador.
 
Em França, antes da surra homérica que lhe deu Dempsey, o homem verdadeiramente popular era George Carpenter, mestre em socos de primeira classe; e se dessem nas massas um balaço sincero  veriam que ele sobrepujava em prestigio aos próprios chefes supremos vencedores da guerra.
 
Nos Estados Unidos há sempre um campeão de Box tão entranhado na idolatria do povo que está em suas mãos subverter o regime político.
 
Entre nós há o exemplo recente de Friendenreich, um pé de boa pontaria pelo qual milhares de criaturas, sobretudo, crianças, são capazes de sacrificar a vida.
 
E os delírios coletivos provocados pelo embate de dois campeões em campo?  Impossível assistir-se a espetáculo mais revelador da alma humana do que o jogo de futebol em que disputam a primazia paulistas e italianos, em São Paulo.  Não é esporte, é guerra. Não se batem duas equipes, mas dois povos, duas nações, duas raças inimigas. Durante todo o tempo da luta, de quarenta a cinqüenta mil pessoas deliram, em transe, estáticas, na ponta dos pés, coração aos pulos e nervos tensos como cordas de viola.  Conforme corre o jogo, nas pausas de silêncio absoluto na multidão suspensa, ou deflagrações violentíssimas de entusiasmo que só a palavra delírio classifica.  E gente pacífica, bondosa, incapaz de sentimentos exaltados, sai fora de si, tornando-se capaz de cometer os mais horrorosos desatinos.
 
A luta de vinte e duas feras no campo transforma em feras os cinqüenta mil expectadores, possibilitando um esfaqueamento mútuo, num conflito horrendo, caso um acidente qualquer funda em corisco as eletricidades físicas acumuladas em cada indivíduo.
 
O jogo de futebol teve a honra de despertar o nosso povo de um marasmo de nervos em que vivia.  Antes d"ele, só nas classes médias a luta política tinha o prestígio necessário para uma exaltaçãozinha periódica.     É isso porque de todas os esportes tentados no Brasil só o futebol conseguiu aclimatar-se como o café. Hoje, alastrado de norte a sul, transformou-se quase em praga, conseguindo, só ele, interessar vivamente,  delirantemente, o nosso povo.
 
No Estado de São Paulo não há recanto, vilarejo, fazenda, bairro onde se não veja num chão plano e batido os dois retângulos opostos indicadores de um ground.  Pelas regiões novas, de virgindade só agora atacada pelos invasores, é comum topar-se de súbito. Em plena mata, uma clareira aberta e limpa onde, nas horas de folga, os derrubadores de pau vêm bater bola.
 
Já assistimos a um  match  em certa fazenda. Tudo muito bem arrumado; os players uniformizados, de meias grossas e botinas ferradas, tal qual nos clubes das cidades.  E falando em corners, goals, hands, half-times, a inglesia inteira dos termos técnicos.
 
Ao nosso lado o fazendeiro explicava:
 
– Aquele goal-keeper é carreiro; amanhã de madrugada está de pé no chão puxando lenha.  O center-half é madeireiro; está-me lavrando uma perobas na roça velha.  Os full-backs são tropeiros e os forwards, simples puxadores de enxada.
 
Era assombroso!  Estávamos diante da maior revolução de costumes jamais operada em terras de Santa Cruz. E tudo por arte e obra de uma simples esfera de estufada de ar…
 
Antes de futebol, só a capoeiragem [grifo do editor]conseguiu um cultuzinho entre nós e isso mesmo só nas classes baixas. Teve seus períodos áureos, produziu seus Friedenreichs, e afinal acabou perseguida pela polícia, com grandes magoados tradicionalistas que viam nela uma das nossas poucas coisas de legítima criação indígena.
 
Infelizmente não se guardou memória estreita desse esporte cujos anais se encheram de maravilhosas proezas.  Não teve poetas, não tem cantores, não teve sábios que as salvaguardassem do olvido; e de todo o nosso rico passado de rasteiras, rabos de arraias e soltas restam apenas anedotas esparsas, em via de se diluírem na memória de velhos contemporâneos. [grifo do editor]
 
Que se fixe, pois, em letra de forma, ao menos o caso do 22 da "Marajó", com tanto chiste narrado pelo maior humorista brasileiro, esse prodigioso Mark Twain inédito que é o Sr. Felinto Lopes.
Nota do Editor
 
Na semana passada publicamos a primeira parte do conto escrito por Monteiro Lobato (Coleção dos Grandes Livros Brasileiros " Volume V = Contos Leves. Companhia Editora Nacional, III Parte, 1935).  Na ocasião, levamos ao leitor a exposição apresentada pelo autor, onde mostrava o fascínio e intimidade que o brasileiro tinha com o futebol. Ao final daquele texto, Lobato faz uma crítica sobre a Capoeiragem que esta, naquela época (1935) em vias de ser esquecida.
 
De forma encantadora, Monteiro Lobato dá uma aula sobre Capoeira em seu conto que ora apresentamos ao Leitor.
 
Miltinho Astronauta
 
O Capoeira "O 22 da Marajó"  – O CONTO
 
O 22 da "marajó" era um imperial marinheiro, mestre em desordens e amigo de revirar de pernas para cima kiosques de portugueses. Rapazinho bonito, imperava na saída onde suas proezas de capoeira excepcional andavam de boca embora discutidas como façanhas de Rolando. E tais fez que o governo incomodado, deportou-o  para o norte, a servir no Alto Amazonas em canhoneira da flotilha estacionada no Pará.  A mudança de lima regenerou-se e o rapaz resolvendo tirar partido de seus dotes plásticos, ferrou namoro   com a mulher de um shipchandler, da qual se tornou amante.
 
O shipchamdler  morreu e o 22  casou-se com a viúva, herdeira de um paco de quatrocentos contos de reis.  Pediu baixa,  obteve-a e foi com a esposa em viagem de núpcias à Europa, onde permaneceu dois anos. Ao cabo regressou à pátria,  elegendo o Rio de Janeiro para residência definitiva.
 
Mas quanto mudara!  Transformado num perfeito gentleman, embasbacava a rua do Ouvidor com o apuro dos trajes, as polainas, as luvas, a cartola café-com-leite.
 
Quem é?  Quem é? Ninguém sabia.
 
– Algum fidalgo certamente cochichava.  Não vêem que modos distintos?
 
E o 22, impávido, patroneando, de monóculo no olhar, a olhar de cima para os homens e as coisas…
 
Tinha hábitos certos e todos os dias passava pelo Largo de São Francisco, como paca pelo carreiro.
 
Aconteceu, porém, que ali era ponto de uma roda de rapazes chiques, fortemente despeitados ante a esmagadora elegância do desconhecido, sinal perigoso, sem dúvida, em matéria de esporte feminino.       Os quais rapazes, depois de muito cochicho, deliberaram quebrar a proa ao novo concorrente, apenas aguardando para isso a boa oportunidade.
 
Certa vez em que o Petrônio passava mais imponente do que nunca, coincidiu aproximar-se da roda chique um capoeira mordedor, que se gabava de ser mestre em "soltas".
 
Quem sabe hoje o que é "solta", nesta época de kikees e shootes?  Solta era uma cabeçada sem hands, isto é, sem encostar a mão no adversário.
 
Mas o capoeira chegou e mordeu-os em cinco mil réis.
 
– Perfeitamente, responderam os rapazes, mas primeiro hás de sapecar uma solta naquele freguês que ali vai de monóculo.
 
– É já! Exclamou o capoeirista, gingando o corpo. E tirando o chapéu foi portar-se  na calçada  por onde vinha o 22, de martelo e monóculo sacudindo passos de lord, muito esticado dentro do seu croisé cortado em Londres.
 
– Um, dois,  três…Quando Petrônio o defrontou o capoeira avança e despeja-lhe uma formidável e primorosa cabeçada .
 
O desconhecido, porém, quebrou o corpo, e a cabeça do atacante foi de encontro à parede, ao mesmo tempo em que um pé bem manejado plantava-o no chão com elegantíssima rasteira.  O mordedor, tonto e confuso, ergueu-se para desabar de novo, cerceado por outra gentil rasteira.  Passara imprevistamente de agressor a agredido e, desnorteado, deu sebo às canalhas, indo apalpar o galo a cem passos à distância.
 
Enquanto isso o Petrônio, consertando a gravata com grande calma, dirigiu a palavra a assombradíssima roda elegante.
 
– Só  uma  besta  destas dá "soltas" sem negaças.  Já dizia o Cincinato Quebra-louças: soltas sem negaças só em lampião de esquina.
 
Comentário do Editor:
Reparem leitores, a lição de capoeira do "Mestre 22 da Marajó…
– Se "grampeasse", inda vá lá.  O Trinca-Espinhas, o Estrepolia, o Zé da Gamboa e outros praxistas admitem soltas neste caso, mas isto mesmo só quando o semovente não é "firme de letra".  E pirando a bengala  de unicórnio entre os dedos anelados, finalmente superior, concluiu num tom de saudade:
– Já gostei deste divertimento. Hoje minha posição social e o meio em que vivo não me permitem mais. Mas vejo com tristeza que a arte está decaindo…
E lá se foi, impertubável e superior, murmurando consigo:
 
– Soltas sem negaças…que  besta!
 
Os elegantes rapazes, passado o momento de estupor, planejaram solene desforra.  Contratariam o famoso Dente de Ouro da Saúde, para romper o baluarte e quebrar de vez a proa ao estranho personagem.     Tudo bem assentado, no dia do ajuste portaram-se no carreiro, com o rompe-e-rasga à frente.
É aquele! Indicaram-no, mal repontou a longe a cartola café-com-leite do Petrônio.   Dente de Ouro avançou "feito" para o desconhecido. Ao fronte-a-lo, porém, entreparou e abriu-se num grande sorriso palerma.
 
– Ó 22! … Você por aqui!?…
 
– Cala o bico moleque, e tome lá para o cigarro. Mas afaste-se, que hoje sou gente e  não  ando com más companhias, respondeu o Petrônio, correndo-lhe uma pelega de dez e seguindo caminho.
 
Dente de Ouro voltou para o grupo de elegantes, alisando a nota.
– Então? Perguntaram estes, desnorteados com o imprevisto desfecho.
 
– "Cês" tão bestas?  Pois aquele é o "22 da Marajó", corpo fechado p"ra sardinha e pé que  nunca "malou saque". Estrompear o 22 da "Marajó"?  Cês tão bestas!…

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