Capítulo 4 – Veneno da Madrugada
CAPOEIRISTAS
PULP FICTION TROPICAL
Nestor Capoeira
capítulo 4
Finalzinho do capítlo 3
E o Encantado nunca perde. Afinal de contas, quando seu corpo terrestre morre – jovem ou matusalem -, o Encantado volta, feliz e saudável, ao Plano Espiritual onde habita.
Nossa estória tembem é a estória de um destes raros Encantados de Alta Hierarquia que resolveu encarnar e viver uma longa vida terrena.
Fim do cap. 3
VENENO-DA-MADRUGADA
Quiseram me matar
na porta do cabaré;
Eu vivo lá, noite e dia,
só não mata quem não quer.
Ê, meu nome é Veneno,
Veneno-da-Madrugada;
de Iansã, eu tenho o raio,
de Ogun, ferro e espada.
Eu sou livre como o vento,
venho de uma linhagem nobre;
Só respeito o velho Tempo.
que com o Tempo ninguem pode.
Ê, galo cantou.
côro: Ê, galo cantou, camará!
(Nestor Capoeira, 2014; CD A balada de Noivo-da-Vida e Veneno-da-Madrugada)
MATUTANDO FILOSOFIAS
Veneno, encostado num balcão de bar na Praça do Lido, em Copacabana, bebendo uma gelada, olhava a festa louca que rolava na rua e matutava com seus botões.
Ele tinha passado em casa.
Guardou o dinheiro roubado num mocó sigiloso.
Meteu uma beca diferente – bermuda de linho azul claro; camiseta regata branca sem mangas, colada no corpo; sapato mocassin italiano importado de couro preto macio combinando com o cinto e, no pescoço, um fino cordão de ouro com um Cinco Salomão pendurado.
Deu dois numa beata vadia. Saiu do kitchinete, desceu de elevador, e ganhou a rua.
E, agora, Veneno matutava suas filosofias.
“Crime perfeito. Aliás, quase perfeito: faltava deschavar o conjunto de moleton bege numa lixeira longe de casa”.
Alguem poderia ter visto Veneno – “… um negro de moleton bege” -, quando escalava o Copacabana Palace
O CINCO SALOMÃO
No Brasil, a magia e a feitiçaria são muito populares. Algo veio com os africanos; algo dos índios brasileiros; algo dos europeus, incluindo os judeus.
O Cinco Salomão (signo de Salomão) é a estrela de cinco pontas do rei judeu, Salomão, a respeito do qual lemos na Bíblia.
Na Europa medieval, a estrela de cinco pontas -talvez originalmente da cabala judia – estava ligada a diferentes rituais e simbolismos da “magia branca”. Quando era desenhada de cabeça para baixo, significava “magia negra”.
No Brasil, o Cinco Salomão é usado como amuleto protetor para “fechar o corpo”.
João do Rio o menciona numa de suas crônicas, de maneira tão familiar que não deixa dúvidas quanto à popularidade do amuleto desde, pelo menos, o início dos 1900s.
Muitas vezes, a estrela é um amuleto feito de metal – ouro, prata, ferro – pendurado no pescoço; outras vezes, é usado juntamente com ervas, infusões, banho de fumaça, rezas mágicas; pode tambem ser usado como ponto riscado, desenhado no chão.
O Cinco Salomão simboliza um homem de braços e pernas abertas.
Leonardo daVinci, que também era alquimista, fez um conhecido desenho da estrela e seu simbolismo. A estrela/homem é circundada por um círculo para proteção contra o mal físico, mental ou espiritual.
No Brasil, o círculo vem, muitas vezes, encimado por uma cruz. É a cruz do Cristo; mas também é a cruz das encruzilhadas, local de tomada de decisões que pertence a Exú – o mensageiro entre deuses e homens que carrega o axé (energia vital) a tiracolo numa cabaça pontuda.
O Cinco Salomão é o signo protetor do capoeirista.
Dizem que fecha o corpo contra faca, navalha, bala de revólver; protege contra emboscada; fortalece o espírito contra mandinga e olho grande.
Na academia de mestre Bimba, em Salvador (1930 em diante), adotaram um logotipo que chamaram de Cinco Salomão. Mas, na verdade, era a estrela de seis pontas do rei Davi, outro símbolo muito poderoso entre os antigos alquimistas da Europa.
Os dois triângulos entrelaçados, um apontando para baixo e outro para cima, tinham diversos significados:
– “o que está acima é como o que está abaixo”;
– o mundo material (cá em baixo) seria um reflexo dos eventos do mundo espiritual (lá em cima);
– o positivo e o negativo, o bem e o mal, caminham entrelaçados e compõe uma única coisa, etc.
Mestre Decânio, braço direito de Bimba na década de 1940, me contou que a estrela de seis pontas tinha sido escolhida, ao invés do tradicional Cinco Salomão de cinco pontas, porque entre outras coisas, mostrava o entrelaçamento entre o jogo em pé (no alto) e o jogo no chão (em baixo).
COLHER-DE-CHÁ
Veneno, no bar da Praça do Lido, matutava com seus botões.
Tem que correr atrás.
Ficar esperando o mar pegar fogo pra comer peixe frito raramente funciona.
No entanto, vez por outra, a vida sorri – dá uma colher-de-chá. Os chineses aconselham: “agarre as oportunidades pelos cabelos, elas ficam carecas rapidamente”.
Basta o cara estar atento aos sinais; reconhecer o momento de agir; entrar no fluxo; agir sem pestanejar, no tempo, rápido, mas lúcido e com calma.
E depois – e isto era importante -, fechar a parada cuidadosamente com chave de ouro. E Veneno se lembrou que ainda faltava deschavar a roupa de moleton bege longe de casa.
Para um jogador de capoeira experiente a situação – “agarrar as oportunidades” – não era uma novidade: acontecia em todo jogo, acontecia em toda roda.
“Viver é uma arte”, sentenciava mestre Angolinha, “mas nem todos são artistas”.
TOME CUIDADO PARA NÃO ME ACORDAR
“O dia tinha começado bem”, pensou Veneno, “e, agora, com a grana já guardada, o Brasil vencendo o jogo, e a festa rolando na rua; o dia ia terminar melhor ainda”.
Veneno tinha acordado cedo: a mina da noite anterior tinha de sair para trabalhar.
Ele levou-a até a porta, enfiou uma grana na mão dela: “pra pegar um taxi”. Ela recusou, estranhando a situação como se dissesse “não sou nenhuma vagabunda”. Veneno beijou-a na boca ternamente e insistiu: “você vai chegar atrasada; pega um taxi”. Ela aceitou e partiu duplamente feliz, embolsando a grana.
Veneno voltou pra cama e sorriu ao se lembrar de uma chula de Nestor Capoeira:
“Amanhã,
quando você for trabalhar, tome cuidado
para não me acordar:
eu durmo tarde,
a noite é minha companheira”.
SINAIS DO DESTINO
Depois que a mina saiu, Veneno se lembrava que tinha apagado e só acordou novamente no comecinho da tarde; sentia-se leve e novo como um bebê.
Botou uma sunga, óculos escuros, pegou uma grana. Tomou um suco de laranja e comeu uma esfirra na lanchonete da esquina, e andou dois quarteirões até a praia de Copacabana.
Deu um corridão de uns 40 minutos na areia dura perto do mar até o Posto 6; enfiou os óculos escuros dentro da sunga, junto com a grana, e voltou nadando.
Encontrou uma rapaziada jogando bola na praia em frente a Praça do Lido; bateu uns 20 minutos de bola. O jogo acabou, deu um mergulho para refrescar a carcaça. Saiu da água se espreguiçando satisfeito.
Veneno estava em forma.
Aí, a fome apertou.
Passou em casa, tomou uma ducha, meteu um conjunto bege claro – destes de moleton que a rapaziada usa pra correr no calçadão -, apertou e deu dois num baseado, e foi rangar um peixe num boteco da rua Rodolfo Dantas.
Foi por causa da fome, e da vontade de comer peixe – vejam bem como a vida é curiosa -, que Veneno acabou escalando o Copacabana Palace, e embolsano a grana do gringo gangster.
A rua estava elétrica, breve, no fim da tarde, ia rolar a semifinal da Copa do Mundo e o Brasil tinha chances de vencer e ser finalista.
Veneno pediu a muqueca de peixe à capixaba – aquela que usa, em vez do azeite de dendê, o azeite de oliva temperado com a semente de urucum. O urucum – uma semente vermelha, muito usada pelos índios brasileiros – tem de ser cozinhado, sem ferver, no próprio azeite de oliva. Para temperar o peixe, use tambem pouca pimenta e um quase nada de leite de côco.
Veneno deu um gole numa ótima cachaça mineira, esfriou a garganta com um gole de cerveja super gelada, e provou a muqueca. Estava ótima.
Mas Veneno lembrava que tinha pensado: “está ótima, mas a verdade é que não chega nem aos pés da muqueca do Marcelo Peixinho”.
MUQUECA AO URUCUM
Peixinho foi um dos (então) adolescentes que fundaram o Grupo Senzala de Capoeira do Rio de Janeiro, no começo dos 1960s.
A Senzala se tornou hegemônica nos 1970s e 1980s, tanto no estilo de jogo, quanto na nova infra-estrutura de um (então) moderno grupo de capoeira. E, junto com alguns baianos que se radicaram em São Paulo, como Suassuna e Acordeon, foi uma das principais locomotivas de divulgação no Rio, e depois em todo o Brasil – são 25.000 professores no Brasil, hoje em dia -; e também, a partir de 1971, no exterior – a capoeira já esta com 5.000 professores em mais de 150 países.
Nesta virada, que começou por volta de 1960 – de Salvador para o Rio e São Paulo, e daí para o mundo -, a capoeira sofreu mais uma transformaçao.
Uma transformação tão profunda quanto a do final dos 1800s: das violentas maltas cariocas; para a capoeira jogada na roda ao som do berimbau, da cidade de Salvador.
Veneno-da-Madrugada, assim como Peixinho e mais uma dúzia que ainda esta na ativa, viveram e foram os vetores deste upgrade de 1960.
O Peixinho – melhor diríamos, o mestre Peixinho – era um craque na capoeira, no frescobol na Praia do Diabo, no selim da sua potente motocileta, e na muqueca à capixaba.
Na muqueca era imbatível: mergulhava e fisgava os peixes com arpão; e depois preparava a sua obra de arte usando facas japonesas de aspecto letal, e panelões de barro artesanais. Isso acontecia, para gáudio da rapaziada, num casarão que Peixinho tinha alugado na fronteira do Bairro de Santa Teresa com as favelas do Curvelo e da Coroa que viviam trocando tiro pois eram dominadas por duas facções diferentes do tráfico de drogas – por causa do tiroteio, o aluguel do casarão era uma mixaria.
Esta nova turma – Peixinho e Veneno e outros, da mudança de 1960 – era muito diferente dos capoeiristas da geração mais velha, como João Grande e João Pequeno – discípulos do venerando mestre Pastinha, criador e cultor da capoeira angola. A maioria dos jogadores da geração mais velha eram negros e mulatos de baixa escolaridade, baianos dos estamentos economicamente desfavorecidos.
Nesta geração mais velha tambem haviam brancos da classe média, como Angelo Decânio – que se tornou médico e professor da Universidade Federal da Bahia – e Jair Perigo Moura – cineasta, jornalista e escritor. Mas devido aos compromissos da vida profissional, esta turma parou de jogar capoeira cedo, com 30 ou 35 de idade; continuando, todavia, a acompanhar o que acontecia no universo da capoeira, escrevendo livros, artigos para jornais, filmando documentários. A maioria era aluno de mestre Bimba, o criador da capoeira regional; o homem que “inventou” a academia de capoeira – inaugurando uma nova era, após o período da escravidão, e o da marginalidade -, e criou o método de ensino que é a base de todos os métodos, de todos os estilos atuais.
Curiosamente, e felizmente para a capoeira, nunca houve ruptura nem estranhamento entre as gerações: João Grande e João Pequeno, Decânio e Jair Perigo, assim como a geração ainda mais antiga – os mestres Bimba e Pastinha -, eram os ídolos dos jovens capoeiristas, do Rio e São Paulo, dos 1960s.
No entanto, isto não impedia a luta pela hegemonia entre os estilos – a geração mais velha (João Grande, João Pequeno, etc.) era de angoleiros, e a turma mais nova (dos 1960s) era de regionais.
Tambem havia a luta pela hegemonia entre cidades – Rio, São Paulo, Salvador e, mais tarde, inúmeras outras metrópoles.
E tambem a luta pela hegemonia “individual”, pessoal, entre os próprios mestres de um mesmo estilo, indiferente às idades, à côr da pele, e às classes sociais.
Era uma tribo onde não havia índios, só caciques.
Todos eles, até mesmo aqueles que originariamente eram otários de quatro costados do proletariado ou da classe média, acabaram formados na mandinga; na arte da esquiva; no suíngue da malandragem alto-astral.
SINAIS EXTRASENSORIAIS
Veneno terminou a moqueca – “estava boa, mas a do Peixinho é melhor” -; mandou descer mais uma mineira e uma gelada.
O botequim começou a encher; as ruas ficaram desertas e o jogo de futebol começou.
Uma hora e meia depois, o jogo 2×2, Veneno reparou num carro que tinha parado em frente ao Hotel Copacabana Palace do outro lado da rua deserta e, para sua surpresa, Carlinhos Piu-piu desceu carregando uma maleta de executivo de metal prateado.
“Porra, Carlinhos Piu-piu era Botafoguense doente. Era fanático por futebol. Como é que não estava assistindo o jogo?”
Veneno sentiu, muito lá no fundo, imperceptível talvez para quam não era ligado no lance, um arrepio esquisito.
Sinais.
De repente – assim, vindo de nada – lembrou que, depois que a mina tinha saído de manhã para trabalhar, ele tinha sonhado com uma maleta igualzinha, cheia de dollar – sinais!
Um gringo grandão saiu do Hotel carregando uma maleta, dessas de companhia de aviação. Veneno, mesmo sem querer, ficou ligadão.
O gringo e Piu-piu trocaram de maletas, deram uma olhada cuidadosa no interior – ali mesmo, calmamente, na maior cara-de-pau, em plena Avenida Atlântica.
Apertaram as mãos.
Piu-piu voltou ao carro e partiu; o gringo grandão voltou para o hotel.
OS FILHOS DO SENADOR
Ora, Veneno conhecia Carlinhos Piu-piu desde garoto.
Carlinhos e o irmão, o Delano Bule, eram filhos de um esperto que tinha sido vereador, deputado, vice-prefeito, senador. Moravam num puta apartamento na Avenida Barata Ribeiro.
O Bule tinha se formado advogado e hoje era um respeitado e sofisticado Delegado de Polícia, disputado pelos canais de televisão onde pontificava com elegância e sabedoria sobre os problemas da violência nos grandes centros urbanos; o Piu-piu era talvez o maior tranzeiro da classe média alta de Copacabana e adjacências.
Quando adolescentes, Piu-piu e o irmão iam frequentemente para os USA, inicialmente para Miami, para a Disneylândia – foi lá que, aos 13 e 14 de idade, fumaram o primeiro baseado.
Mais tarde, quando já era surfista nas ondas da praia do Arpoador, Piu-piu descobriu a California, os hippies, e o LSD – que começou a trazer para o Brasil, e vender para os amigos.
Quando a onda hippie declinou, Carlinhos Piu-piu ficou desempregado, mas logo descobriu um novo filão – ecstasy.
Tudo isso era bancado por eu e por você, caro leitor, gentil leitora; pois era com o dinheiro público que o papai dos dois pilantrinhas patrocinava as viagens para Piu-piu e Delano terem contato com uma “cultura mais evoluida”, inclusive aprendendo a falar inglês.
Piu-piu era um cara inteligente: nunca se meteu no negócio de maconha, e menos ainda no de cocaína; tinha muito cachorro grande disputando a parada e a barra podia derepentemente ficar muito pesada.
Com as costas quentes – pai deputado e, mais tarde, irmão delegado -, Piu-piu nunca tinha entrado numa fria e, em poucos anos, formou uma rede de vendedores – patricinhas e mauricinhos de grana – que frequentavam as praias e as buates da moda.
É verdade que quando um ramo das Forças Armadas Brasileira – radical de direita, e bastante limitado em matéria de visão e inteligência – deu aquele golpe em 1964; Sua Excelência, o então Nobre Deputado e pai dos dois pivetes, ficou sem saber qual era, perdeu o chão, ficou a ver navios.
Mas quando percebeu que Roberto Marinho – o chefão do jornal e da televisão Globo – tinha se alinhado com os militares linha-dura e, junto com ele, uma corja de canalhas do tipo do banqueiro mineiro Magalhães Pinto, dos latifundiários nordestinos José Sarney e Collor de Melo – pai do futuro presidente Fernando Collor, de triste memória -, do político baiano Antonio Carlos Magalhães, do estelionatário naturalisado paulista Paulo Maluf, e alguns outros; o pai de Piu-piu e Bule não teve mais dúvidas, e tambem se alinhou com a ditadura.
Nos 20 anos seguintes, até a morte do Senador em circunstâncias um tanto misteriosas – murmurava-se: “queima de arquivo” -, Piu-piu e Bule viveram vida de Príncipe.