Portal Capoeira Capítulo 1 - Jogador de Capoeira Nestor Capoeira - Capoeiristas, Pulp Fiction Tropical

Capítulo 1 – Jogador de Capoeira

 

 CAPOEIRISTAS

PULP FICTION TROPICAL

 Nestor Capoeira

2014

 

Para os mestres Marcelo Peixinho Guimarães;

e Dermeval Leopoldina Lopes de Lacerda;

para o iluminado Frede Abreu;

muita saúde, boas rodas, e muita curtição,

se é que estas coisas existem

aonde quer que vocês foram.

 

JOGADOR DE CAPOEIRA

 

Sou jogador do Jogo

que não se aprende na escola;

Eu sou parte da roda

da Brincadeira de Angola.

Ê, olho no olho;

Ê, mão que toca a mão;

Me diz lá quem é você,

forasteiro, meu irmão.

Eu sou Jogador,

jogo no alto e no chão;

Trago dentro do corpo,

da alma e do coração,

as sementes da vida e da morte,

da amor e da destruição.

 

(Nestor Capoeira, 2014; CD A balada de Noivo-da-Vida e Veneno-da-Madrugada)

 

LIVRO I

OS JOGADORES

 

capítulo 1

VENENO-DA-MADRUGADA

 

O COPACABANA PALACE

Veneno-da-Madrugada saiu do botequinm – a TV transmitia em altos brados as semifinais da Copa do Mundo -, atravessou a rua Rodolfo Dantas, e começou a escalar a fachada lateral do Hotel Copacabana Palace.

O Copacabana Palace foi construído am 1923; é lindo, elegante, sofisticado. Nas colunas da sua fachada, como era costume da época, haviam ranhuras horizontais e escalar até o terceiro andar foi mais fácil  que subir uma escada Magirus do corpo dos bombeiros.

Veneno passou por cima da balaustrada da varanda e olhou para dentro da suíte. O brutamontes estava de costas, sentado na mesa, falando ao telefone; uma garrafa e um copo de uísque singlemalt em cima do tampo de cristal onde tambem se viam, espalhadas, várias maçarocas de dinheiro – dollar.

Veneno olhou rapidamente o prédio do outro lado da rua. Todas as janelas estavam iluminadas pela luz azulada das televisões; as pessoas mesmerisados pelo jogo.

Veneno olhou para baixo. A Rodolfo Dantas, a Avenida Atlântica, e o calçadão da praia estavam inusitadamente desertos. No botequim superlotado, do outro lado da rua, todos os olhares tambem estavam grudados na televisão ao fundo do bar. Era o final do segundo tempo, o jogo estava 2×2, e o Brasil atacava a todo vapor – aparentemente ninguem notara a sua performance de homem-aranha, ningem se dava conta da presença de Veneno na varanda da suite do terceiro andar do Copacabana Palace.

A TV do quarto do gringo devia ser a única desligada em toda a cidade.

 

MATA-LEÃO

O gringo estava rindo ao telefone quando Veneno encaixou o mata-leão – uma gravata no pescoço, dada por trás e de tal maneira que impedia o fluxo de sangue para o cérebro.

O brutamontes reagiu como Veneno  esperava: levantou afobadamente da cadeira tentando desfazer com as mãos o torniquete que asfixiava seu pescoço.

Veneno acompanhou o impulso do gringo; aí, deu um passo para trás, e logo outro. Quando o brutamontes, desequilibrado e fora de base, caiu de costas; Veneno caiu junto e por baixo dele como se estivessem executando uma coreografia há muito ensaiada.

No chão – deitado de costas no caríssimo tapete persa com o gringo tambem de costas e por cima -, Veneno abraçou com suas pernas a cintura do grandalhão que se debatia e grunhia, e apertou o mata-leão um pouco mais.

Agora era questão de tempo. Pouco tempo.

 

PENSAMENTOS ESTRANHOS

Mais tarde, relembrando a loucura bem sucedida daquela noite  – “a sorte é fada madrinha dos corações aventureiros” -, Veneno, na porta de um bar na Praça do Lido, bebendo uma gelada, olhava a festa louca que rolava nas ruas de Copacabana – “Brasil! Brasil!” -, e matutava filosofias com seus botões.

Ideias anacrônicas com a alegria geral reinante; anacrônicas com tudo que tinha rolado nas últimas horas; flanavam de sapato scarpin salto 12 pelo Passeio Público da sua cabeça sem que nem porque.

Em que pensava Veneno?

Em coisas estranhas: por exemplo, num encontro de capoeira onde Muniz Sodré – um mulato baiano, o Americano da academia de mestre Bimba e, hoje, um respeitado professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro – tinha dado uma palestra comentando que nos 1800s a cultura afro-brasileira era vista como uma “primitiva selvageria”.

As representações identitárias do homem negro reconheciamm o escravo como “indivíduo”, mas não como “pessoa”.

O ser humano nasce “indivíduo” e se torna “pessoa” à medida que se insere na ordem social/cultural de sua época.  No entanto, aos negros era negado esse desenvolvimento.  Era como se fossem parte da paisagem; um cão, uma árvore, ou um bem material com certo valor econômico. 

“Peças”, assim eram chamados os africanos escravizados.

Paralelamente, devido a maior parte da população ser de negros e mulatos, já existia desde o Segundo Império um pessimismo e um diagnóstico depreciativo do “homem brasileiro”_: o Visconde de Taunay, p.ex., depositava esperanças na imigracão de alemães e escandinavos da Europa do Norte para branquear a população – na pele e na mente – e tornar o Brasil “um país viável”.

 

AS MALTAS

É neste cenário que se formaram, no Rio de Janeiro, as maltas de negros capoeiras desde, pelo menos, 1789. A repressão, na época, era extremamente violenta:

 

“No decorrer do processo chegou-se a conclusão que Adão era inocente quanto ao assassinato, mas foi confirmado sua condição de capoeira, sendo, por isso, condenado a levar 500 açoites e a trabalhar dois anos nas obras públicas”.

(ANRJ, 25/4/1789, Tribunal da Relação, cod.24, livro 10)

Os 500 açoites eram um castigo tão brutal que poderia ser mortal.

Era tão violento que, pressionado pelos donos de escravos presos como capoeiras – o escravo morria, o senhor perdia seu investimento -, o regente Feijó determinou que seriam dadas, no máximo,  50 chibatadas num dia, e “um dia de intervalo até a próxima sessão”.

 

A IDENTIDADE DE UM POVO

“Talvez não seja tão estranho relembrar a palestra do Muniz”, matutou Veneno, “no final das contas, o Muniz falava da identidade de um povo; aliás, da ‘construção’ da identidade de um povo. E essa loucura rolando no meio da rua não é, justamente, um dos retratos deste lance?”.

Um bloco passou enlouquecido pela porta do botequim da Praça do Lido. Duas minas que trabalhavam como strip-teasers na Cicciolina, onde Veneno já tinha sido porteiro e leão-de-chácara, se destacaram do grupo; arodearam Veneno, pulando, cantando, beijando-o na boca; e logo sumiram no meio da multidão arrastadas pela euforia e pela festança geral.

 

VIAGEM AOS 1800s

Veneno deu um gole na cerveja e, bizarramente, a história dos capoeiras do século XIX continuou a se desenrolar na sua mente como um filme.

No Rio de Janeiro, a partir da chegada de D.João VI em 1808 – e, talvez, decorrente das grandes mudanças que rolaram na cidade que, de colônia longíncqua transformou-se na capital do Império Português -, os arrogantes e violentos negros capoeiras se organizaram em maltas.

As maltas progressivamente tomaram conta das praças, ruas, ádrios de igrejas, procissões religiosas, desfiles militares; incutindo o terror nas “pessoas de bem”; tornando-se o flagelo das autoridades policiais.

A capoeira carioca – 1800-1850 – foi uma prática cultural urbana; e já existiam símbolos de identificação como o uso de fitas com as cores vermelha e amarela, e determinados assobios para se comunicarem – escravos eram presos por “assobiarem como capoeiras”.

 

OS ESCRAVOS LADINOS

No início, a maioria dos capoeiras era de escravos africanos ladinos já conhecedores da cidade, em oposição ao boçal recem-chegado da Africa. 

Aos poucos, vemos surgir escravos negros crioulos (nascidos no Brasil) e pardos (quase sempre, pai branco e mãe negra), dentro das maltas.

Mais tarde, já no final dos 1800s, as maltas absorveram brancos de diversas camadas:

– os engajados, portugueses pobres que vinham trabalhar em condições quase tão duras quanto as do escravo africano;

– os fadistas do Porto e Lisboa, malandros e rufiões cujos instrumento de trabalho eram o violão e a grande navalha de ponta denominada Santo Cristo;

– marinheiros estrangeiros – ingleses, franceses, alemães, norte-americanos – que, ao chegar no Rio, deparando-se com aquele verdadeiro paraíso tropical povoado por luxuriantes mulatas, cafuzas, e negras, desertavam de seus navios regidos pela duríssima disciplina da chibata;

– os cordões e os margaridas, jovens e violentos estroínas filhos das famílias ricas e aristocráticas que se sentiam em casa no submundo da marginalidade carioca. 

 

A COPA DO MUNDO É NOSSA

Veneno lembrou-se de um lance da sua primeira viagem ao estrangeiro.

Em Paris: duro, tocando berimbau para descolar o rango do dia; dormindo no metrô rodeado de mendigos, bebuns, baratas, ratazanas e clochards.

Um dia num bistrô, um mafioso tipo gigolô tirou uma onda braba com a cara dele. Veneno esperou o mané ir ao banheiro, seguiu-o, detonou o pilantra, e saiu carregado de francos – isto foi bem antes do euro da atual União Europeia -, pulseira e cordão de ouro, anelão de brilhante e rubi.

Com a grana, estruturou sua estadia na capital parisiense.

“De certa maneira”, pensava Veneno, bebendo a cerveja no bar na Praça do Lido, “era uma situação que, agora, se repetia no Rio de Janeiro”.

 

LEMBRANÇAS DE UMA NOITE AGITADA

Veneno se lembrou que quando o gringo apagou e se corpo ficou mole e frouxo; ele tinha apertado o mata-leão mais um pouquinho, só por via das dúvidas.

Aí levantou-se, enfiou dois maços de grana em cada bolso da calça de moleton e fechou os zipers; mais dois em cada bolso do casaco, idem zip-zip; sobrou um maço, Veneno enfiou dentro da cueca.

Resolveu não dar uma geral na suíte.

Estava mais que bom.

O negócio era cair fora rapidamente – quem tem olho grande não entra na China. Em menos de um minuto o grandalhão iria acordar e, mais trinta segundos, ia clarear as ideias.

Veneno atravessou a suíte, a varanda, passou por cima da balaustrada, desceu rapidamente pela fachada externa.

Quando pisou na calçada, os milhares de televisores gritaram eu uníssono: “… penetrou na grande área, driblou um, driblou outro, passou a bola de calcanhar …. é gol! É GOL!! GOOOOOL DO BRASIIIIL!!!”

Um rúgido de milhares de bocas rompeu o tenso silêncio da noite de lua nova na cidade do Rio de Janeiro.

Os torcedores que se amontoavam no botequim foram para a rua gritando e pulando. Veneno descobriu a cabeça do capuz de moleton e misturou-se a eles.

Olhou disfarçadamente para cima e pode ver o brutamontes chegar cambaleante na sacada do terceiro andar do Copacabana Palace.

O locutor agora berrava nos alto-falantes das TVs: “… o árbitro consulta o relógio, e apita o fim do jogo!”.

As pessoas subitamente saíram aos borbtões dos prédios berrando e cantando. Veneno deixou-se levar pela multidão até a esquina da Avenida Nossa Senhora de Copacabana e então saiu num trote leve e ligeiro na direção da Praça do Lido enquanto urrava:

“É campeão! É campeão!”

 

 

O MÃO-DE-FACA

 

Please let me introduce myself,

I’m a man of wealth and fame.

(Mick Jagger, Simpathy for the Devil)

 

O ENCANTADO

Os Encantados são entidades; semelhantes às da umbanda e do candomblé; ou talvez sejam anjos, arcanjos, ou demônios.

Existem tambem as Encantadas – maravilhosas! – que enfeitaram a história, antiga e recente, da humanidade; Cleópatra, Lucrécia Bórgia, Isadora Duncan, Mata Hari, Madre Tereza de Calcutá, Carmem Miranda, Marlene Dietrich, Clara Nunes; mas não é delas que vamos falar no momento.

Há muita discussão sobre o que, ou quem realmente são e como vieram a ser. Uma versão bem popular é que, num passado distante, os Encantados foram seres humanos de carne e osso e sangue e sonhos, iguaizinhos a você e a mim; e, como tal, nasceram, viveram e morreram.

Mas aí, logo depois da passagem, aconteceu algo estranho.

Não seguiram, ninguém sabe bem porque, o destino da morte normal dos demais mortais; e terminaram como habitantes do mesmo Plano Espiritual dos Orixás, dos Caboclos, dos Pretos Velhos, dos Erês/Crianças, e do Povo da Rua – com seus Exus, Pombagiras, Ciganas da Estrada ou do Oriente, Malandros e Valentes.

 

SAUDADES DO MATERIAL WORLD

I live in a material world;

I’m a material girl.

(Madona, Material girl)

Corre à boca pequena, embora muitos entendidos dizem ser lenda urbana, que ocasionalmente um destes Encantados, com saudades da vida material no planeta Terra; ou então por curiosidade sobre o que está acontecendo aqui no pedaço; “encostam” num ser humano. Num ser humano que não é exatamente “comum” pois possui um tipo de poder mediúnico muito específico e original.

Este humano pode até, paradoxalmente, ser uma personalidade medíocre e arrogante; um destes que brevemente ascenderam ao poder como recentemente aconteceu com Hitler, Mussolini, Salazar, Franco, Lenin, Stalin, Mao, Papa Doc, Idi Amin, etc e tal.

Para o Encantado tanto faz como tanto fez: ele não esta sujeito, nem funciona na base das nossas cambiantes leis morais que mudam com o tempo e com o lugar.

Nem tampouco está sujeito à Lei Ética, que para os antigos filosofos gregos era a procura de uma boa “maneira de ser” ou a “sabedoria da ação”; regras e valores – como nos explicou Muniz Sodré – que davam forma à territorialização do sujeito, organizando em vários níveis a morada do grupo num determinado lugar e procurando determinar-lhe os objetos bons ou supremos – o Bem.

A Lei Ética – diferente da lei moral – é a regra do ascendente, a regra do ancestral, do “pai fundador”; uma “teoria do ser” que indaga sobre as finalidades da existência humana e sobre os meios de atingi-la.

Para o Encantado, tanto fez como tanto faz.

O Encantado sabe que a dicotomia, tão cara aos mortais, do Bem versus o Mal, é uma visão imatura da Vida e da Ordem (ou será Desordem?) Cósmica.

“Lá vem o Bem de braços com o Mal.

aos beijos e abraços

num Enlance Astral”

Sentenciou, assim ou em palavras semelhantes, aquele bardo tropical maluco-beleza, Raul Sexas, que partiu, como tantos outros, cedo demais.

 

FIM do capítulo 1

continua no próximo capítulo

 

 

Uma oportunidade única de conhecer o novo trabalho de Nestor Capoeira que agora firma com o Portal Capoeira uma parceria que irá beneficiar toda a comunidade que ama e vive a capoeira…

Bem Vindo meu amigo
Nestor passos (o Capoeira)

Seu trabalho é fundamental para toda a nossa comunidade…

uma iniciativa fantástica… Obrigado pela oportunidade…

Luciano Milani – Editor do Portal Capoeira

 

 

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