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13 de Maio: diferença e repetição

Poucas datas comemorativas têm o poder de mexer com o consenso fabricado brasileiro. A do Descobrimento do Brasil – 21 de Abril -, salvo o engano, é uma delas. A comemoração dos 500 anos, em 2000, deixou claro que não existe discurso único em torno do tema, sendo a visão oficial apenas mais uma vertente interpretativa em meio a uma enxurrada delas no campo explicativo da historiografia brasileira. Contribuiu, na ocasião, para essa constatação, a prática discursiva das chamadas minorias étnicas, sexuais e sociais, para quem a visão eurocêntrica do Descobrimento apenas legitima a exclusão.
 
O 13 de Maio é outra. Ela, como a do Descobrimento, tem o poder de incendiar o debate público. É uma data que acende sobremaneira a polêmica sobre exclusão racial e social no Brasil. Até mesmo os movimentos negros – quero dizer: o  institucionalizado e o informal – adotam posições ambíguas e contraditórias em relação ao assunto. Comemorar ou rememorar; festejar ou protestar, afirmar ou negar; excluir ou incluir; incorporar ou não a data ao campo simbólico e da memória do povo negro brasileiro. 116 anos depois, as dicotomias, não apenas persistem, como se ampliam e se aprofundam.
 
Isso tem motivos históricos e sociais bem precisos. Afinal, o Brasil, ainda que pese a aparente atmosfera de democracia racial , nesse tempo todo não conseguiu  resolver o problema da degradação sistemática e institucionalizada da população negra, que, a despeito de compor 45% da população do país, está colocada compulsoriamente na marginalizada.
 
Mas de lá pra cá, algumas coisas aconteceram, trazendo ganhos políticos, democráticos e pedagógicos significativos para a sociedade brasileira. É desses acontecimentos que gostaria de falar agora. Isso menos para esfriar o debate em torno do 13 de Maio que para ampliar o leque de discussão, inserindo no seu interior novos elementos.
 
É certo que o 13 de Maio deixou o povo negro recém liberto no sereno. Não há dúvida. Por outro lado, permitiu-lhe também ampliar um pouco mais a estreita faixa de ação libertária que lançara mão desde a chegada no Brasil dos primeiros africanos escravizados. O negro soube, desde os capoeiras e quilombolas da Colônia e do Império, passando pelos malandros e tias ciatas da Primeira República até as escolas de samba da década de 1930, com muita competência e habilidade,  agenciar esse espaço, não só para o seu  benefício imediato, como para o amadurecimento de uma consciência de orientação racial e de africanidade do povo brasileiro.
 
Os resultados, hoje, são evidentes. Nunca a mídia e a tevê brasileira tiveram tantos profissionais negros atrás e na frente dos bastidores quanto agora. Claro que podemos discutir a qualidade dessa presença. Se é estereotipada ou mistificada, por exemplo. Mas uma coisa é certa: o aumento quantitativo já por si só levou a um deslocamento de olhar do público, que estava culturalmente acostumado a ver apenas atores, atrizes, diretores, apresentadores e produtores brancos.
 
Mas não pára por aí. Vejamos a articulação da juventude negra das periferias, que consegue conjugar cultura estético-musical – hip hop, soul music, samba rock e samba velha guarda – com máquinas de comunicação social  e aptidão empresarial. Quem conhece as experiências das micro-empresas da galeria 24 de maio (quase todas de propriedade de negros), assim como da Cooperifa (cooperativa de poesia e literatura da favela), em Taboão da Serra, ou ainda, da literatura marginal, dos selos de discos independentes, a exemplo do Cosa Nostras dos Racionais Mc´s,  entre outras, perceberá que essa juventude negra periférica tem voz própria. E bem ativa. O seu engajamento assemelha-se à luta de um Apolo contemporâneo contra as forças dionisíacas do mercado cultural.
 
Do ponto de vista governamental e institucional, algumas novidades também emergiram. Pena que muitas delas concentraram-se nas áreas da educação e do trabalho. Falo isso porque o setor da saúde ainda não foi contemplado a contento com políticas de ação afirmativa. Mas projetos tramitam nas casas legislativas de vários estados e municípios e logo teremos notícias deles.
 
No caso da educação, faço destaque à proliferação de cursinhos pré-vestibulares direcionados ao atendimento dos vestibulandos em desvantagem social e econômica – incluindo aí o índio e o ex-presidiário. Muitos desses cursinhos funcionam em parcerias com  prefeituras, universidades e empresas. Estes mantêm programas sociais que financiam bolsas de estudo para esses alunos.
 
Aqui não podemos deixar de falar da cotas nas universidades públicas, política que vem causando constrangimento em alguns setores da sociedade, mas que vem dando resultados positivos nos lugares que foram aplicadas. Constrangimento até compreensível historicamente, mas não tolerável moral e legalmente, pois das duas uma: ou a elite branca e educada não quer os seus filhos compartilhem os mesmos bancos escolares com os negros e periféricos ou, então, não quer ceder  para  este segmento social o  precioso filão do ensino brasileiro, que foi até então reservado quase exclusivamente para os seus herdeiros.
 
No primeiro caso, a situação se resolveria com a força da lei e do seu cumprimento, uma vez que a nossa Constituição não permite segregação de tipo algum. No segundo, penso que passou da hora do Brasil popularizar a universidade pública, ampliando o seu número e as suas vagas. Sem perder de vista a qualidade, claro.
 
Ainda na educação, vale a pena mencionar a Lei 10.639/03 que altera a LDB e institui a inclusão no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Trata-se do ponta-pé inicial da construção de uma escola efetivamente multicultural e multirracial, uma vez que democratiza o currículo escolar, desde a sua prática cotidiana até os conteúdos e abordagens.
Também na esteira das propostas de afirmação da diversidade educacional, marca presença a faculdade Zumbi dos Palmares. Mantida pela Afrobrás, tem o mérito de ser a primeira faculdade de administração de empresas de São Paulo direcionada para comunidade negra. Pensar uma elite negra brasileira intelectualizada, a partir de experiências educacionais e pedagógicas diferenciadas, é hoje a ponta-de-lança do movimento negro contemporâneo do Brasil.
 
No setor do mercado de trabalho, o Governo Federal também avançou no resgate da dignidade da pessoa do negro, com a publicação do Decreto-Lei n° 4.228, 13 de maio de 2002, que institui, no âmbito da Administração Pública Federal, o Programa Nacional de Ações Afirmativas, que visa a reserva de cotas de empregos para afrodescendentes nas repartições públicas e nas empresas privadas que prestam serviços para o Governo Federal . De saída, tal iniciativa governamental criaria cerca de dezenas de milhares de vagas de emprego para trabalhadores afrodescendentes no setor público e privado.
 
Talvez, o decreto tenha motivado um pool de entidades da causa negra – Educafro (SP), Instituto Palmares de Direitos Humanos (RJ) e Olodum (BA) – a lançar a campanha “Ação Afirmativa, Atitude Positiva”, em novembro de 2003.  A campanha tem o objetivo de estimular empresas e instituições educacionais a adotarem políticas afirmativas para trabalhadores afrodescendentes no mercado de trabalho. Para tanto, a organização premia com o selo da camélia branca – historicamente símbolo dos abolicionistas – aqueles estabelecimentos que adotarem tal postura. O selo funciona como uma espécie de ISO ou certificado de qualidade de bens e serviços do trabalhador negro.
 
Claro que milhares de iniciativas e experiências de promoção do bem-estar da população negra e periférica brasileira poderiam ser abordadas. Mas acredito que as citadas e comentadas aqui são suficientes para alcançar o propósito do texto, qual seja:  mostrar que a força simbólica das datas está no sentido político que lhe emprestamos em decorrência da nossa prática política e cotidiana de luta.
 
Do ponto de vista do calendário, o 13 de Maio se repetirá infinitamente, sempre da mesma maneira. Agora, cabe aos sujeitos históricos fornece-lhe um conteúdo diferente a cada repetição, até o ponto em que a repetição, pelo jogo da afirmação da postura interessada diante da vida, produza novas e múltiplas diferenças.
 
Somente assim os 13 de Maio vindouros serão diferentes dos seus antecessores; e cada vez mais distantes do de 1888. Na História, tudo está em permanente mudança, tudo é transitório; e nem mesmo as datas conseguem cristalizar o seu sentido primeiro. Afinal, nada consegue escapar do poder transformador da palavra e da ação humana no tempo.
 
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13 de maio de 1888: a Câmara aprova o decreto que extingue a escravidão no Brasil, último país ocidental a manter o trabalho servil.
 
Por JOSÉ APÓSTOLO NETTO
Historiador e doutorando em História (UNESP – Campus de Assis, SP)
 
 
Bibliografia
 
CAMPOS, Djalma Leite de. O selo da negritude. Raça Brasil, abril de 2004, n° 73, São Paulo.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
LEMOS, Rosália de Oliveira. Guia de direitos do brasileiro afro-descendente: O negro na educação e no livro didático: Como trabalhar alternativas. 2. ed. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, 2001.
ROMÃO, Jerusse. Guia de direitos do brasileiro afro-descendente: por uma educação que promova a auto estima da criança negra. 2. ed. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, 2001.
 
 

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