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Casa de Ferreiro Espeto de Pau!

O ditado popular título desse artigo, sem dúvida, sintetiza o que sucessivamente vem ocorrendo com os baluartes da nossa arte-luta brasileira, aqui em Camaçari. Infelizmente, em nossa “casa”, mais vale o que vem de fora, mais apreciado é o que passa por aqui sem deixar nem mesmo a poeira de sua alpercata. Valoriza-se mais, muito mais, o forasteiro do que o ferreiro que dia a dia, dentro de seu terreiro, molda a ferro e fogo a identidade de um povo. Quem leu o meu último artigo, sabe do que estou falando…

Em Camaçari, não temos números precisos, mas estimativas apontam que a população de capoeiristas gira em torno de cinco mil pessoas, organizados em mais de vinte grupos e associações dentro da Sede e nos distritos. Esta população é muitas vezes maior que qualquer outro esporte ádvena.

Em novembro do ano passado, com muito sacrifício e peleja, conseguimos dar uma nova possibilidade de vida a um aluno, o Camisa 7, do Projeto Social Crianças Cabeludas, aqui de Camaçari, que está na Europa (para ser justo, vale citar e mais uma vez agradecer o apoio recebido do secretário Vital Vasconcelos, da SECULT). Desde então, o garoto, hoje com 18 anos, vem “explodindo” nas rodas espanholas sendo aplaudido em várias cidades, como Marbella, Cádiz, Sevilla, Granada, Málaga e Córdoba (esta última, cidade onde atualmente reside e trabalha com Capoeira e cultura brasileira). A Capoeira por lá é um dos esportes mais requisitados. Estes dias recebi uma ligação dele, totalmente atônito pelo que acabara de saber. Lá, em Córdoba, na Espanha, cidade sem tradição em Capoeira, o nosso Grupo havia marcado uma audiência com o prefeito local, com uma pauta de reivindicação na mão, sendo a principal delas, a necessidade de disponibilização de um local próprio para a prática da nossa cultura brasileira. Meu aluno, tomado de espanto me disse: “professor, o prefeito doou um galpão para o Grupo treinar, sem mais demora. Já fomos conhecer o local e estamos reformando o espaço. É inacreditável!”

Creio que vocês não tenham a dimensão do que isso representa. É a nossa arte-luta Capoeira sendo extremamente valorizada lá fora, mas que aqui dentro, em sua pátria, sobrevive apenas com as migalhas que caem dos palcos dos grandes festivais midiáticos, patrocinados com o meu e o seu dinheiro.

Todos que conhecem a luta dessa molecada, lá no Parque das Mangabas, talvez tenham entendido o espanto de Camisa 7, pois durante seis anos, esse jovem treinou sob as mais duras intempéries, em plena via pública, lutando contra todo tipo de dificuldades; construindo, com seu próprio sangue, o caminho que o fez voar mais alto. E ai, eu me questiono: como ensinar que aqui é a terra do dendê, da Capoeira Regional do Mestre Bimba, da Angola de Mestre Pastinha? Como informar que aqui, em nossa Bahia, tivemos o lendário Besouro Mangangá, o malevolente Vermelho 27, Canjiquinha, Di Mola, e tantos outros baluartes da capoeiragem? Como explicar às crianças do Palheiro, em Monte Gordo ou de Machadinho, que em Camaçari, terra rica, cheia de Pólos e empresas, com seus quase R$ 100 milhões de receita/mês, vemos Mestres como Geni Capoeira (uma lenda viva da Capoeira mundial), Petróleo, Oliveira, Saci, Neguinho, Maré, Vando, Ismael, Paulinho, Zeca, Bobô, Grandão não terem seus trabalhos totalmente (é totalmente mesmo, 365 dias do ano, e não apenas nas esmolas ofertadas para a realização de eventos esporádicos) apoiados por quem tem a obrigação legal e moral de fazê-lo? Eu, com meus 33 anos de idade, sinceramente não entendo, senhores. Como, então, explicar isso para crianças que do “lucro” do Pólo só lhe é oferecida a poluição de suas ricas chaminés?

Arrepio-me em saber que no mês de setembro tenho que fazer novamente o “batizado e troca de graduações” das crianças das Mangabas, do Palheiro e de Machadinho. Mais uma vez terei que bater na porta de muita gente, e sei que boa parte dessas portas se fechará, inclusive por que escrevo linhas de protestos como estas, que nada mais pede do que nos devolvam em ações práticas e efetivas, o que eles colocam em seus cofres por conta da nossa Capoeira. Ou capoeirista não paga imposto? Não divulga (e vende) a imagem do estado em todo o mundo? Ou não somos patrimônio imaterial da cultura brasileira?

Enquanto nos acusam de “desorganizados” (argumento semelhante ao utilizado pelos republicanos para lançarem a Capoeira no código penal brasileiro de 1890) e sobre esse pretexto nos relegam à margem das políticas públicas para o desenvolvimento de ações afro-brasileiras no município (sim! Já existe legislação específica que estabelece o ensino da cultura afro-brasileira, entre elas a Capoeira, em toda rede de educação pública e privada, fundamental e médio – vide Lei 10.639/2003), ficamos à mercê da boa, ou melhor, má vontade de uns senhores engravatados que se acham entendedores do assunto. Já fiz o teste! Em agosto de 2010 apresentamos um projeto para o batizado do “Crianças Cabeludas” (só lembrando, este trabalho é desenvolvido há seis anos e é estritamente social, sem qualquer fim lucrativo), com um custo total de R$ 3.500,00 e conseguimos da prefeitura de Camaçari um apoio – pasmem! – de cerca de R$ 50,00, além da cessão do espaço para a realização do evento – que é público, diga-se de passagem! No mesmo mês, houve uma etapa do campeonato de longboard (de onde é mesmo esse esporte?), que teve o apoio, desta mesma prefeitura, muito maior que o solicitado pela “turma da vadiagem”. Fui lá questionar qual teria sido o critério adotado e me responderam simplesmente que: “surf dá mais visibilidade à prefeitura e o evento era internacional”. Em minha opinião isto representa, tão somente, novas desculpas para as velhas políticas de discriminação da Capoeira.

Se não bastasse isso, vale salientar que futebol, judô, vôlei, jiu-jitsu, boxe, surf, natação, karatê, basquete… Todos! Completamente todos os demais esportes são modalidades estrangeiras. Não que não devam ter apoio, claro que devem! Esporte, seja ele qual for, exerce um papel fundamental na formação da criança e do adolescente e na propagação de bons hábitos de saúde, dentre outros fatores socialmente positivos. Mas, cá pra nós, o poder público deveria ter maior zelo com nossa própria cultura, com o nosso único esporte genuinamente brasileiro. A Capoeira, senhores, deveria ser tratada com muito mais cuidado, respeito, honestidade e apoio. Estamos cansados de ouvir promessas e factóides, de ver leis que não saem do papel. Enquanto travamos discussões infindáveis, em fóruns que só servem para promoção política de alguns, lamentavelmente vemos, por exemplo, um mestre com mais 40 anos de história, como o Mestre Oliveira, do Grupo de Capoeira Estrela do Céu, no bairro Nova Vitória, educar e formar crianças e jovens em uma academia cujo teto nem mesmo existe e sem qualquer contribuição dos órgãos governamentais. É realmente um desrespeito não apenas ao ser humano, mas ao esporte, a cultura e ao patrimônio imaterial brasileiro.

Enquanto aqui, os nossos mestres antigos e também novos vivem das sobras – quando sobra! –, acabo de receber um convite da Fundação Casa da Capoeira de Bauru para participar da inauguração da Praça Mestre Bimba, no município de Bauru, São Paulo. Ou seja, na Bahia, a casa do Bimba, temos apenas uma rua e um monumento mal cuidados em homenagem àquele que foi um dos personagens decisivos para que a Capoeira saísse de “debaixo do pé do boi”. Mesmo antes de confirmar a minha presença (e consequentemente a do município de Camaçari), o desânimo já me abate, pois sei das absurdas dificuldades de se conseguir uma mísera passagem, através dos órgãos da prefeitura.

Concordo que a Capoeira é livre e que ela é luta de resistência, mas desafino quando tentam utilizá-la como massa de manobra (tal qual ocorria nos séculos XIX e XX). Fica evidente o que lamentavelmente pensam os nossos governantes sobre a Capoeira, pois, para eles, a “brincadeira de negros” só serve para ser apresentada aos turistas e chefes de estado como algo folclórico, bem como, em espetáculos em seus picadeiros políticos. Recentemente o Governador Jaques Wagner recebeu o título de cidadão baiano na Assembléia Legislativa da Bahia – ALB. E quem fez a recepção? Claro, os capoeiristas! Afinal de contas, são em momentos iguais a estes que a Capoeira representa a mais genuína imagem da Bahia – bem sarcástico mesmo! Todavia, são estes mesmos capoeiras que estão lutando, nesta mesma ALB, para que a profissão e, consequentemente, aposentadoria dos mestres seja legalmente reconhecida. Que incoerência!

Em Camaçari é igualzinho… É só chegar uma comitiva estrangeira, ou até mesmo brasileira, que logo é chamado o “povo da malandragem”, sempre posicionados nas portas da Cidade do Saber, para fazer o showzinho. Às vezes é pago um cachê miserável, é fornecido um lanchinho meia boca e, por fim, os colocam num ônibus para retornarem para os seus guetos, a fim de limparem a área.

Sou um bebê nisso de jogar os pés pro ar, tenho apenas 12 anos de roda. A estrada é muito longa até me tornar Mestre, mas sei que a minha voz, desde já, não poderá calar-se diante de tamanho desdém do poder público, em relação ao nosso tesouro. E não vou me calar, mesmo que isso me custe um apoio aqui, uma passagem acolá… Eu quero ver a minha Capoeira forte, pois “maior é Deus, pequeno sou eu!”.

 

Yê! Volta no mundo, camará!

 

Caio Marcel ([email protected]) é administrador de empresas e formado em capoeira regional, pelo Grupo de Capoeira Regional Porto da Barra. Também é responsável e mantenedor do Projeto Social Crianças Cabeludas, nos bairros do Parque das Mangabas, Machadinho e Palheiro, em Camaçari/BA.

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