Portal Capoeira Crônica de 1999: A Capoeira em SP Publicações e Artigos

Crônica de 1999: A Capoeira em SP

Historicamente a capoeira foi discriminada, desde quando o negro escravo usou o seu corpo como instrumento de ataque e defesa contra seu opressor. Quando foi instituída a Lei Áurea (suposta libertação dos escravos no Brasil), mais uma vez o negro usava seu corpo como forma de sobrevivência através dos movimentos da capoeira. Na década de 30, os capoeiristas foram ferrenhamente perseguidos e aprisionados, (muitos em Fernando de Noronha), época esta em que a capoeira foi proibida nas ruas, assim como o candomblé.
 
Na realidade essa discriminação existe até hoje, certamente transformada através dos tempos, devido à expansão, se assim posso chamar, 
da capoeira para o Brasil e para o mundo. Na introdução da capoeira em São Paulo, no final de década de 60 e começo de 70, não poderia ter sido diferente, pois os mestres que aqui chegaram com a intenção de abrirem academias ou trabalharem com capoeira em algum lugar, encontraram muitas dificuldades e muita discriminação.
 
Não só a discriminação da capoeira em si, pois a maioria das pessoas não sabia ao certo o que era ou de onde vinha e associavam-se diretamente ao candomblé e à umbanda, ou seja, “coisa de negros”.
A discriminação passava também pela figura do baiano, do nordestino que migrava para a grande cidade em busca de emprego, (parece que não mudou muito), e logicamente pela questão racial.
 
Mas o capoeirista encontrou outro problema. Para introduzir-se no mercado, ele teria que competir com o Kung-fú, Tae kwon do, Karatê e Judô, modalidades que já eram reconhecidas como lutas, como defesa pessoal, enquanto que a capoeira chegava aos olhos da grande maioria como uma dança apenas, supostamente sem utilidade como defesa pessoal.
 
As pessoas não percebiam, e ainda hoje não percebem, que esta é a magia da capoeira. Não notavam, não só porque acreditavam apenas no que supunham estar vendo, (uma dança), mas também porque a história oficial, passada no ensino de primeiro e segundo graus, não contava esta parte de resistência popular que nosso país viveu: lembremos que estávamos em pleno regime militar.
 
As pessoas olhavam para o “jogo da capoeira”, como o Sinhô ou o feitor olhavam para os negros escravos quando estes “brincavam de angola”. Mas quando o Sinhô se afastava, os negros transformavam aquela “dança” em uma luta de guerra e eram capazes de fazer coisas com o corpo que até hoje, quando alguém vê uma roda de capoeira, às vezes duvida.
 
Foi neste momento que a capoeira angola perdeu o espaço (que já não tinha) em São Paulo, pois a capoeira regional se apresentava mais competitiva em comparação ao que já havia no mercado, junto a isto, os mestres se viam na obrigação de serem os melhores no meio da capoeiragem, pois assim seriam reconhecidos e conseqüentemente conseguiriam mais alunos e seriam respeitados.
 
Assim, o que se via nos batizados de capoeira e na Praça da República, (que se tornou um Ponto de encontro dos capoeiristas em São Paulo em São Paulo, onde eram feitas grandes rodas), era uma pancadaria só, onde quem saía perdendo, mais uma vez, era a imagem da capoeira.
Este comportamento perdurou por mais alguns anos, (alguns capoeiras ainda se comportam assim), até que foi fundada a Federação Paulista de Capoeira, com a intenção de unir os capoeiristas, regrar a capoeira e promovê-la para o grande público, (isto, segundo os organizadores da época).
 
Ocorre que, naquela época, a Federação apresentou-se aberta só para alguns, surda para outros e omissa para a grande maioria dos capoeiristas (sendo que alguns de seus fundadores eram militares). Foi quando, não concordando com a maneira com que esta federação direcionava as coisas, surgiram dois grandes grupos de capoeira em São Paulo: o Grupo Cativeiro e o Grupo Capitães de Areia.
Ambos rejeitaram a ideologia que a Federação impunha, como por exemplo, a graduação onde os cordões tinham as cores da bandeira, (verde, amarelo, azul e branco).
 
O Grupo Cativeiro optou pelas cores que representavam os orixás e assumiram a ideologia de divulgar a capoeira em todo o Brasil, buscando a perfeição dos movimentos, o estudo dos rituais e a união dos componentes do grupo, estabelecendo quase que um código específico e fechado.
O Grupo Capitães de Areia optou por uma graduação que representava a evolução da história do negro no Brasil onde a primeira era uma corrente (escravo), a segunda uma corda (quilombola), a terceira um lenço no pescoço (liberto), assim, até atingir a graduação onde o capoeira poderia dar aulas e abrir sua academia tornando-se neto, bisneto de seu mestre, etc.
 
Este grupo preocupou-se com a questão histórica, política e cultural da capoeira e se apresentou em vários lugares com esta proposta.
Ambos os grupos caíram no mesmo erro: a Violência na capoeira onde sempre tinha que existir o melhor, onde sempre tinha que haver um vencedor. Componentes destes grupos não podiam se encontrar em rodas, pois se repetia a história das maltas do início do século (Guaiamuns e Nagoas), ou seja, acontecia só pancadaria.
 
Ocorria que o publico que assistia, passava a ter uma imagem da capoeira cada vez pior e ficava cada vez mais difícil conseguir adeptos ou simpatizantes.
Vivenciando tudo isso, eu não conseguia entender como uma manifestação cultural de resistência como a capoeira poderia ter como opressores os próprios capoeiristas, sendo eu ela foi criada justamente para libertar, para agrupar, e não para dividir e oprimir o oprimido.
Assim passei a fazer do meu corpo, através dos movimentos de capoeira, minha forma de libertação minha ideologia de igualdade e meus princípios de que a violência poderia ser evitada no meio da capoeiragem. Acreditava que poderia fazer com que os capoeiristas, (principalmente os mestres), refletissem sobre sua história, seu lugar social e político, sua situação no mercado de trabalho e sua importância histórica e cultural no universo da capoeira.
 
Comecei entrevistando todos os mestres e professores que conseguia contatar, questionando principalmente suas origens, seu início na capoeiragem em São Paulo, a forma de graduação que adotavam e sobre suas origens, seu início na capoeiragem em São Paulo, a forma de graduação que adotavam e sobre a violência na capoeira. Muitos, mestres nem quiseram conversa, outros ignoravam minha preocupação e poucos se propuseram a conversar.
 
Juntei as fitas que tinha e passei a ouvi-las com atenção. Repassei meu caminho na capoeira e tudo que tinha visto e vivenciado no meio da capoeiragem.
Comparei com o que tinha lido sobre o assunto e senti a necessidade de ler ainda mais. Freqüentei bibliotecas, livrarias, lojas de discos, academias e todos os lugares que pudessem me trazer algo sobre a capoeira em São Paulo.
Foi quando tive consciência de algumas coisas muito importantes para minha “pesquisa”, e mais do que isso, para a minha vida. Percebi que a Capoeira esteve comigo nas fases mais importantes de meu desenvolvimento pessoal (físico e psicológico) e que com ela e através dela eu estava ajudando a escrever a história da capoeira e vivenciando-a intensamente.
 
Percebi que a capoeira é inatingível em sua essência, pois ela existe independentemente de seus praticantes e continuará sempre existindo, pois ela faz parte da história de um povo. Hoje sei que a violência vem daqueles que a usam com este fim e que as pessoas mostram seu estado emocional quando a praticam.
 
Aprendi a deixar a capoeira se manifestar em mim através dos movimentos do meu corpo, aprendi a entender os ritmos e os jogos da capoeira e principalmente, seu ritual e sua filosofia.
 
Texto: Lelo – Casa de Capoeira Malungos – SP
Publicado no Jornal da Munzenza de 1999

Artigos Relatados

0 0 votos
Avaliar Artigo/Matéria
Subscribe
Notify of
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários