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A Musicalidade na Capoeira

Vários grupamentos sociais em diferentes locais e épocas sempre se utilizaram da dança e do canto com diversas finalidades. Dentre as mais comuns, destacamos as ligadas às atividades lúdicas como as cantigas de roda e as várias modalidades do nosso samba: o samba rural, o samba de roda e o samba de barreiro, cujo prazer da companhia é a tônica principal. Temos também as ligadas às celebrações religiosas, sejam nos pontos de Candomblé ou de Umbanda ou ainda nas manifestações de religiosidade populares como nas trezenas de Santo Antônio.

 
Os rituais de iniciação em algumas sociedades, também têm na musicalidade uma importância de destaque quando os valores intrínsecos de determinados grupos são, por seu intermédio, evidenciados e perpetuados. Outros rituais de dança coletiva como o Kuarup, dos índios do Parque Nacional do Xingu, revigoram os laços espirituais e afetivos do grupo, ao tempo em que fortalecem a coletividade e também a identidade do indivíduo.
 
Vários povos, em suas sociedades rurais, têm difundido muito o comumente chamado canto de trabalho, que pressupõe o uso de música como elemento auxiliar para as atividades laborais, dando ritmo, marcando o compasso, auxiliando-os assim no cumprimento da suas obrigações, suavizando sua relação com o desgastante trabalho.
Estas expressões musicais, objeto de pesquisas de etnomusicólogos e folcloristas, acompanham as atividades manuais no campo ou na cidade. São geralmente coletivas, mas também podem ser apresentadas em duplas ou individualmente.  O excelente projeto Quixabeira, levado a cabo no interior da Bahia pelo maestro carioca Bernard Von Der Weid em 1992 e devidamente registrado pelo Instituto de Rádio Difusão Educativa da Bahia – IRDEB, gerou o CD “Da Quixabeira Pro Berço do Rio”. Nele, como no documentário Canto de Trabalho, também realizado pelo IRDEB, foi registrada a união entre a arte e o labor, contrariando uma máxima de Henry Ford em sua auto biografia que diz:

 
“Quando trabalhamos devemos trabalhar. Quando jogamos devemos jogar. A nada serve tentar misturar as duas coisas. O único objetivo deve ser aquele de desempenhar um trabalho e ser pago por isso. Quando o trabalho estiver terminado, pode então começar o jogo, mas não antes”.
 
Por seu intermédio, os trabalhadores aliviam suas dores, aliando música e poesia à possibilidade de executar com prazer suas obrigações.
É comum se afirmar, entre os praticantes e estudiosos de capoeira, que a musicalidade utilizada na luta servia para disfarçá-la em dança e, assim, fugir às perseguições da polícia, que não permitia as manifestações culturais dos negros em espaço público. Os instrumentos usados no jogo da capoeira, para manter este disfarce, seriam o berimbau e o atabaque.
Toda essa simulação seria necessária à sobrevivência destas manifestações. Mas não há a devida comprovação científica para estas afirmações. Sendo a dança também uma manifestação cultural, ela seria, assim como a capoeira, reprimida pelas autoridades. O que não justifica, portanto, o argumento do disfarce. Porém, esta como tantas outras questões pertinentes à história da capoeira, serão sempre objeto de reflexões, dúvidas e inquietações uma vez que não há as devidas comprovações sobre os fatos. Contudo, segundo afirma o pesquisador e escritor Fred Abreu, era possível, ante a aproximação da polícia, que os contendores e os presentes afirmassem que estavam apenas brincando.
Sabemos, porém que a prática da capoeira como luta, ataque e defesa não era tolerada pela sociedade. Ela percebia nesse movimento um perigo, pois os negros se fortaleciam e ficavam aptos ao combate corpo – a – corpo, “ameaçando” sua integridade patrimonial e física.
Outra questão que polariza opiniões (tendo-se em vista que a capoeira é a única luta no mundo a contemplar acompanhamento musical através de instrumentos e cânticos) é qual seria o primeiro instrumento a ser usado como acompanhamento da vadiação e que conseqüentemente contribuiu para transformá-la numa luta/dança, ajudando a formação do paradigma, também discutível, da “esquiva social”.
 
O primeiro registro escrito da associação da luta com o berimbau, instrumento de origem africana, até então usado por vendedores ambulantes para apregoar suas mercadorias, diz:
Nesses exercicios, que a gyria do capadocio chamava de brinquedo, dansavam a capoeira sob o rythmo do berimbau, instrumento composto de um arco de madeira flexivel, preso ás extremidades por uma corda de arame fino, estando ligada à corda numa cabacinha ou moeda de cobre. O tocador de berimbau segurava ao instrumento com a mão esquerda, e na direita trazia pequena cesta contendo calhaus, chamada gongo, além de um cipó fino, com o qual feria a corda, produzindo o som. (QUERINO, 1916)
 
 Alguns pesquisadores, baseados na tela de Rugendas “O Jogo da Capoeira” ou “Dança da Guerra”, datada de 1830, que retrata um jogo acompanhado de tambores no Rio de Janeiro, afirmam que este instrumento foi o primeiro a servir de acompanhamento rítmico para a sua prática. Outros afirmam ter sido o berimbau. Porém, o fato de Querino registrar a presença do berimbau em 1916, e Rugendas representar um tambor em 1830, não garante, “per si”, que o berimbau não tenha estado antes do tambor em contacto com as rodas sem o devido registro. Mais uma questão controversa e pouco relevante.
O berimbau é considerado o principal instrumento da roda de capoeira. Por esta razão e por dirigir e proporcionar maior ou menor velocidade (ritmo) ao andamento da luta, ele adquiriu notoriedade e importância. Além disso, lhe é atribuída a função de gerenciar a cadência, por intermédio de toques característicos para cada tipo de jogo, e na roda introduzir cânticos.
 
A música “transporta” o capoeira, contribui para que aconteça durante o jogo uma espécie de transe espiritual, como afirma Decânio Filho, o Mestre Decânio, em Transe Capoeirano. É por intermédio do acompanhamento do seu instrumental característico, das palmas e cantigas que acontece a reverência aos seus antepassados, a prontidão para a luta e a afinidade com outras áreas do relacionamento humano. Estes aspectos são redefinidos de acordo com o envolvimento particular de cada jogador, quando acontece uma releitura dos seus códigos e elementos simbólicos, sugerindo uma atividade mista na qual se interpenetram religiosidade, combate, ludicidade e arte, dentre outros fatores.
Na capoeira, as letras das canções se configuram como uma das formas de transmissão oral da memória coletiva e das tradições, muito embora não possam ser consideradas um instrumento fidedigno de referência. Quem as compõe não tem obrigatoriamente compromisso científico na acepção das suas letras e, muitas vezes, as fazem dentro de conceitos individuais ou do “ouvir dizer”.  Por exemplo, as letras que falam de Zumbi, como mestre de capoeira no Quilombo dos Palmares, não encontram aporte científico em nenhuma literatura específica, todavia é referenciada com fundamento na necessidade popular da construção de ídolos e heróis. Podemos afirmar, por conseguinte, que o grau de veracidade, contido nos cânticos do jogo, varia do registro histórico factual até o devaneio da fértil imaginação popular mítica e lendária, baseada no inconsciente coletivo ou na versão particular e parcial de cada compositor sobre um determinado fato em questão.
 
  O conteúdo do canto na capoeira expressa a reinterpretação de realidades sócio-políticas e míticas. Tais elementos são responsáveis pela preservação e continuidade da tradição, pois através dela a história, o aprendizado e a memória, são passadas entre gerações, transformando-se num grande legado cultural.
Muitos destes cânticos interpretam a vida do negro no cativeiro e suas relações interpessoais, bem como as supostas origens da capoeira. O improviso, que faz parte do samba de roda, do pagode e da embolada, aqui também se faz presente, sob forma de loas improvisadas que elogiam as qualidades dos jogadores e da própria capoeira, seus heróis míticos e lendários enaltecendo suas epopéias. Estes cânticos exercem influência sobre o capoeirista determinando o estado emocional, o ritmo e a intensidade do jogo dentre outros fatores relevantes.
É notória a influência da música sobre o estado de humor das pessoas, basta lembrar a tristeza do toque de silêncio, a ternura da Ave-Maria, a agitação do Olodum e dos trios elétricos, os movimentos suaves do balé no Lago do Cisne. […] portanto, se a música pode alterar o estado de ânimo e as suas manifestações motoras, estáticas e dinâmicas, forçosamente teremos que concluir que o andamento, ritmo, palmas e cantos também modificam o comportamento dos capoeiristas durante o jogo. (DECÂNIO FILHO, 1996)
 
Eles são compostos de três tipos: ladainha, chula e corrido. A ladainha é parte ritualística e peculiar ao jogo de Angola. Sua característica principal é ser cantada em solo, isto é, por apenas uma pessoa. Os demais participantes só entram em coro quando o solista canta o “iê, vamo s’imbora”. Do ritmo das cantigas, o seu é o mais lento e proporciona um momento ímpar de concentração e até de preparação espiritual (de forma muito particular) para o jogo. 
Na chula acontece a saudação entre o solista e os demais jogadores. Ela é realizada ao final da ladainha. O corrido marca o instante em que o jogo pode ter andamento. E o coro é fundamental, devendo entrar desde o início.
 
Temos, pois, caracterizado um dos aspectos mais encantadores da capoeira que lhe empresta uma plasticidade ímpar, uma emotividade catalisadora da sedução que a arte de Bimba e Pastinha exerce sobre os seus praticantes e admiradores. Como vimos, longe de representar uma característica só da capoeira, os cânticos populares fazem parte de um universo maior dentro das atividades lúdicas, laborais e religiosas do ser humano. Eles representam a tradução em forma de arte, do dia-a-dia das comunidades e representam um dos aspectos que a identificam como tal e contribui para diferenciá-la de outros grupamentos sociais .
 

* O professor e pesquisador Acúrsio Esteves, é formado em Educação Física pela UCSal, com mestrado em Gestão de Organizações UNEB/UNIBAHIA e é professor da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Salvador. Leciona também nas Faculdades Jorge Amado e Fundação Visconde de Cairu, respectivamente nos cursos de Educação Física e Turismo, sendo também autor dos livros Pedagogia do Brincar e A “Capoeira” da Indústria do Entretenimento, de onde foi retirado este fragmento de capitulo.
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