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Entrevista com Mestre Brasília

Antonio Cardoso de Andrade, Mestre Brasília, um dos pioneiros da capoeira em São Paulo, autor do livro – “Vivência e Fundamentos de um Mestre de Capoeira”, publicado pela Editora Circuito LW.
 
(O livro pode ser adquirido, no Capoeiradobrasil, via e-mail: [email protected] )
 
Mestre Brasília nos concedeu entrevista e conversou sobre o atual estágio de organização da capoeira. Ele pertence ao quadro de honra do Conselho Superior de Mestres de São Paulo e é vice-presidente da Federação de Capoeira do Estado de São Paulo.
 
  • Veja alguns trechos da entrevista:
 
Capoeiradobrasil: – Caro Mestre Brasília: é um grande prazer conversarmos com o senhor, e podermos compartilhar um pouco de sua grande sabedoria; temos a absoluta consciência de estarmos diante de um dos maiores mestres da capoeira mundial; conhecemos seu trabalho de longa data, desde os tempos pioneiros da capoeira em São Paulo. Sabemos de sua dedicação, da excelência de seu trabalho e de sua pessoa, tanto dentro como fora das rodas de capoeira.
Acreditamos que a capoeira vive hoje um momento muito especial, no processo de progressiva estruturação organizacional que deverá conduzi-la à maioridade, digamos assim, entendendo por isso o estágio de sua efetiva profissionalização e pleno reconhecimento social, como esporte e como parte valiosa do patrimônio cultural do povo brasileiro. O senhor, como um dos mais ativos participantes deste processo, como vê o momento atual?
 
Mestre Brasília: – Vejo com muita esperança. O fato de que a capoeira esteja se organizando é auspicioso, embora ela ainda esteja longe do ponto em que gostaríamos que estivesse. Hoje, contamos com a Confederação Brasileira de Capoeira, que congrega as Federações Estaduais e suas respectivas Ligas Regionais e Municipais, e eu estou lá, sempre apoiei, porque acho que é socialmente o mais correto trabalho de organização da capoeira que há, com respaldo do governo, nos níveis municipal, estadual e federal. Eles também acreditam como eu que a cultura brasileira deve ter um órgão que a preserve. Pode-se obter patrocínio e subsídios oficiais a partir do momento em que se tem um trabalho organizado e se adquire credibilidade social. E a Federação está aí para ajudar nisto. A capoeira precisa e merece ter pessoas trabalhando pelo seu engrandecimento, mas nós só vamos realmente obter maior credibilidade quando todos estiverem juntos, falando a mesma língua, e não cada um querendo puxar a brasa para o seu lado, cada um buscando satisfação e resultados pessoais; isso não vai levar a capoeira tão cedo aonde ela já deveria estar há muito tempo.
 
Capoeiradobrasil: – Sempre que o assunto é a “esportização”, ou, como agora, a “olimpização” da capoeira, levantam-se objeções de certos segmentos do mundo da capoeira, objeções que traduzem preocupações quanto à preservação da arte, ou dos aspectos lúdicos da capoeira, dos rituais e fundamentos. Isto nos leva a pensar nos critérios de avaliação e pontuação nos campeonatos e competições capoeirísticas. Como o senhor vê esta questão?
 
Mestre Brasília: – Eu, desde que comecei a praticar a capoeira, sempre venho praticando-a como esporte. Nunca como esporte competitivo, mas sempre como esporte. E se eu tivesse necessidade de competir, lá na roda, eu competia: era a minha vida que muitas vezes estava em jogo na roda, e eu tinha que competir, me defender. Se hoje ela pode ser um esporte legalizado, muito bem; a capoeira não é apenas esporte, é uma manifestação cultural brasileira que possui um conteúdo muito amplo: temos o ritmo, a poesia, a música, a coreografia, a defesa, o ataque, temos o espetáculo, temos a luta e temos o esporte.
 
Capoeiradobrasil: – O público tem muito interesse em saber se nas competições estes fatores – a musicalidade, o ritmo, a harmonia, a coreografia, etc – são também levados em consideração.
 
Mestre Brasília: – Sem dúvida. Toda luta tem um ritmo a seguir. Você tem que ouvir seu treinador. Na capoeira, você tem que saber ouvir a música, para que você tenha mais entusiasmo para lutar; mesmo em caso de competições, porque aí é o berimbau também que determina o tipo de jogo a fazer. Então, você tem de estar atento, para se defender, para atacar, para entrar na hora certa, na brecha de um adversário, ou para sair no tempo certo, você tem que estar atento, até mais do que normalmente. Para isso, é preciso treinar muito. Acredito até mesmo que a capoeira ainda venha a ser um esporte de ringue, profissional, mas no futuro. No momento, não vejo uma perspectiva de bons lutadores; vejo grandes entusiastas, aí, dizendo que estão lutando, mas que na realidade não estão lutando coisíssima nenhuma. Quando o cara entra no ringue para lutar, a vida dele e a de seu parceiro estarão em jogo. E a gente percebe, quando ele entra na roda se imaginando um lutador, que ele está cheio de brechas que, no caso de uma competição cerrada mesmo, esse cara poderia ser eliminado a qualquer momento, antes do que ele imagina. Acho que a capoeira ainda não está preparada para isso, mas ela pode se preparar, ela tem tudo para isso.
 
Capoeiradobrasil: –  No site www.capoeiradobrasil.com.br vamos pedir aos internautas que respondam à questão: “Deve a capoeira ser incluída no rol dos esportes olímpicos? Sim ou não, e por quê?” – Gostaríamos que o senhor fosse o primeiro a exprimir a sua opinião.
 
Mestre Brasília: – Pois bem: acho que, no momento, a capoeira ainda não tem condições de chegar às Olimpíadas, porque há modalidades esportivas com muito mais tempo e organização do que ela; mas o fato de que a olimpização tenha sido elegido como um objetivo é muito bom, pois vai orientar o processo de organização da capoeira, e aí eu dou todo o meu apoio, e espero ver o dia em que a capoeira integre as Olimpíadas. E não acho, de maneira nenhuma, que a inclusão da capoeira nas Olimpíadas traga qualquer prejuízo para ela. A capoeira é riquíssima, e é um pequeno segmento dela que vai para as Olimpíadas, e ela não vai perder nada, muito pelo contrário, ela vai é se enriquecer cada vez mais, no seu todo. Se as pessoas querem que a capoeira cresça, temos de nos acostumar com a idéia dela incluída nas Olimpíadas, sem dúvida alguma.
 
Capoeiradobrasil: – O senhor cresceu num tempo em que a divisão entre capoeira Angola e Regional não era bem nítida, ou não existia. Hoje, há várias divisões, várias “capoeiras”. Como o senhor dividiria hoje as variedades ou estilos de capoeira?
 
Mestre Brasília: – Dizem que Mestre Bimba, quando criou a Regional, chamou os angoleiros da época para conversarem sobre a unificação da capoeira. Alguns acharam que não, e ela continuou dividida. Na realidade, quando eu aprendi, o mestre dizia: capoeira é uma só, você deve ouvir o berimbau e jogar de acordo com o toque. Para cada toque há uma maneira específica. Não há modalidades diferentes, é o toque que determina as diferenças no jogo. Se você toca Angola, há uma maneira característica de jogar; se toca São Bento Grande da Regional, a característica do jogo é outra; se você toca São Bento Grande de Angola, é outra maneira; se toca Jogo de Dentro, outra maneira; se toca Iuna, é outra maneira de jogar. E o capoeirista tem que estar atento a tudo isso. Mestre Canjiquinha me dizia sempre, e eu acredito também nisso, a capoeira, no futuro, será uma só; ou melhor, o capoeirista vai ter que saber jogar tudo. Não é que ela será reduzida a uma só, mas o contrário: você vai ter que saber jogar a Regional e a Angola, tem que manter esta divisão, mas não é uma divisão política, de facções antagônicas, mas uma divisão cultural, percebe? Porque a Angola é a raiz, e Mestre Bimba, quando criou a Regional, levou para ela os movimentos da Angola aos quais achou que podia dar mais velocidade e acrescentou outros movimentos, mas 80% foram trazidos da Angola. Aplicou a isso uma didática específica, e pronto. Como ele enfatizava o aspecto de luta da capoeira, criou-se uma lenda. As pessoas que hoje fazem a capoeira com aquele espírito de luta, não estão fazendo a Regional do Mestre Bimba. A maioria toca São Bento Grande de Angola e diz que está jogando Regional. O toque de São Bento Grande de Angola chama para um jogo rápido, solto, mas é Angola. Mestre Canjiquinha, quando queria que nós jogássemos um jogo mais pesado, tocava Banguela; se queria jogo de dentro, tocava Jogo-de-Dentro; mas você pode jogar dentro tanto na Regional como na Angola, depende do toque, da situação, do momento e do jogador com quem você está jogando. Se você joga com um cara maldoso, você não vai jogar aberto com ele, não vai jogar descuidado, não vai fazer floreio na frente dele, a menos que você seja um cara inocente e entra na roda para “se espalhar”, como dizem, aí, vai sair com a cara quebrada, porque na primeira brecha, o cara maldoso vai entrar com tudo, pois as pessoas estão aí para fazer nome na roda, não há necessidade disso, mas as pessoas, por estupidez ou ignorância, fazem é isso mesmo, querem tirar proveito das outras, mas não deveria ser assim.
 
Hoje, fala-se aí em “capoeira contemporânea”; isso, na realidade, não é capoeira: é uma pequena parte dela, as pessoas estão pulando, e se fizessem isso de forma engrenada, ainda que bem, mas, assim, individualmente, cada um pula sozinho, é um circo mal organizado; um circo de acrobatas mal dirigidos. No entanto, ela pode ser executada de forma organizada, com coordenação e movimentos engrenados, fazendo toda essa movimentação que aí está hoje, pois a capoeira evoluiu; há quarenta anos, eu via capoeirista dar salto mortal na roda de capoeira, bonito, mas engrenado, um dentro do movimento do outro. Vi também João Grande e João Pequeno jogando no chão, e não era essa Angola que hoje o pessoal diz: ”isso aqui é Angola”; não, eles faziam tudo: bananeira, João Grande fazia a ponte, queda de rins, até a chamada volta-por-cima… e hoje, não: o pessoal fica com meia-lua de compasso pra lá e pra cá, passa a perna por cima do outro, só na meia-lua de compasso, e dizendo que estão jogando Angola.
Então, é isso: é preciso administrar toda esta parafernália de movimentos que os jovens acham que são contemporâneos, e inseri-los na capoeira realmente. Aí é que eu falo do estudo que o cara teria de ter: conhecimento do que havia antes; numa pesquisa médica, por exemplo, o pesquisador tem que conhecer os remédios que já foram criados antes, e hoje ele complementou; se ele não tiver esse conhecimento do que já foi feito antes, ele não poderá criar nada, e dizer que está fazendo uma capoeira contemporânea.
 
Capoeiradobrasil: – Mestre Brasília, neste final de entrevista, vou deixa-lo à vontade para falar do que achar melhor.
 
Mestre Brasília: – Pois bem: eu gostaria então de convidar as pessoas, os dissidentes, a conhecerem melhor a Federação e a Confederação, e que tragam a sua opinião. Venham somar conosco, venham aprender e, logicamente, trazer a sua contribuição, colocando nas reuniões as suas posições; acredito que, hoje, com o Conselho Superior de Mestres, nós poderemos aproveitar muita coisa, as pessoas estão mais abertas, eu converso com muitos capoeiristas, o carrancismo do passado está em baixa, o autoritarismo já não é tão presente como antigamente. As pessoas estão se conscientizando de que ele não leva a um trabalho construtivo. As grandes empresas de hoje ouvem cada vez mais, desde o seu faxineiro até seu mais alto funcionário. Por quê? Porque elas querem crescer. 
 
Mestre Gladson tem uma bela frase sobre isso: “não há ninguém tão incapaz que não tenha nada a ensinar, como não há ninguém tão sábio que não tenha nada a aprender”. Eu aprendo diariamente, junto com vocês, eu sinceramente me considero um aprendiz da arte da capoeira.
 

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