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Entrevista Mestre Gil Velho

Gil Clementino Cavalcanti de Albuquerque Filho (Mestre Gil Velho), filho de Gil clementino Cavalcanti de Albuquerque e Maria Amélia Campelo Cavalcanti de Albuquerque, nasceu em Recife em 1948.

1 – Qual foi seu 1º contato com a capoeira?

Nasci em Recife, capital de Pernambuco, no final da década de 40, século XX. Venho de uma família tradicional, os Cavalcanti de Albuquerque, cuja história se confunde com a própria história do espaço pernambucano. A mistura de elementos indígenas, lusos, holandeses e afro na sua formação, me transmitiu uma memória genética que flui nos meus insight e interagem no meu processo vivencial.
Assim, quando meu Pai se muda para o Rio de Janeiro, no inicio da década de 50, passo a simbiotizar esta perspectiva genética com a leitura da realidade percebida do espaço carioca. Torno-me um pernambucano carioca, com uma passagem rápida por Copacabana e um pouso longo em Ipanema, onde passo minha infância e adolescência.
Ipanema, nesta época se assemelhava a um subúrbio carioca com a diferença de ter o mar e estar na periferia da efervescente Copacabana, mas nas suas praças continham o cenário das cidades de interior, cavalos, charretes, mocinhas dando volta na praça, rapazes territorializando um banco da praça. Nas praias, marcavam-se os espaços por uma grande barraca associada a uma rede de vôlei, no pós praia, a rapaziada deslizava nas ondas na onda do jacaré, de peito ou sobre a tabuas de madeira. Nos bares, a boemia se esparramava no Mau Cheiro, no Jangadeiro, Veloso ou no Zepelim. Os cinemas eram 4, dois poeiras, sem ar condicionado e cadeiras de madeira, o Ipanema e o Pirajá, os luxuosos eram o Paz e o Astória.
Pontilhando este cenário bucólico, emergiam as favelas como a do Cantagalo, Catacumba e a da Praia do Pinto. Neste ambiente, comecei a ler a capoeira através de um discípulo do Mestre Sinhozinho, o Cirandinha, e neste contexto crio minhas raízes cariocas. Acompanho o desenrolar do carnaval de rua, o seu desaparecimento na zona sul e posterior ascensão, através da reconstrução das bandas, como a de Ipanema, e percebo a força que este espaço gerou na cultura carioca, principalmente nas décadas de 50,60 e 70.
2 – Fale um pouco sobre o seu primeiro Mestre?
Luiz Pereira de Aguiar, conhecido no meio da capoeira como Cirandinha Era aluno do Sinhozinho o grande Mestre da Capoeira Moderna carioca. O espaço capoeira do Cirandinha era informal e vários garotos entre eles eu fazíamos a leitura dos movimentos e em grupos de conhecidos sozinhos repetíamos o que tínhamos visto, como também praticávamos esta vivencia em nossas pendengas de rua. Desta forma – muito natural – desenvolvi minha base de capoeira. A sua influência sobre mim foi a de um Mestre que abre espaço para que o discípulo busque em si o seu caminhar.
3 – Conte-nos sobre as diferenças e as influências das capoeiras Sinhozinho e Bimba na sua vida.
Para falar sobre isto preciso entrar um pouco na história do Mestre Sinhozinho e Mestre Bimba e fazer as interações entre estas duas escolas de capoeira que básicas na formação da capoeira atual e a grande base do Grupo Senzala, do qual sou um dos fundadores.
A capoeiragem moderna carioca tem como principal representante o Mestre Sinhozinho (Agenor Moreira Sampaio 1891- 1962). Sinhozinho chega ao Rio, aos dezessete anos, em 1908, vindo de Santos (SP). Era um aficionado por esporte e ao chegar já era um entusiasta em futebol, fazia luta romana e praticava ginástica de aparelhos. Mas foi no Rio, principalmente na Lapa, que viu e se apaixonou pela plasticidade e funcionalidade da temível gestualidade dos malandros, durante os acertos de suas pendengas, que se davam por este tipo de comunicação, denominada aqui de comunicação gestual da capoeira.
Sinhozinho foi morar no morro de Santo Antônio, vivenciando toda a realidade cultural carioca, subsídio para organizar uma estrutura de luta que tivesse por base os elementos da comunicação gestual da capoeiragem carioca, encontra alem disto, um ambiente impregnado por discurso intelectual nacionalista voltado para edificação da ginástica nacional, onde a capoeira é a base desta proposta, veja as propostas de métodos que aparecem nesta fase e os registros de discursos e em jornais como O Pais, a revista Kosmo e tantos outros.. Mas, o mais interessante, é que a capoeira numa perspectiva metodizada está dentro de sua ótica esportiva, sendo assim facilmente absorvida por ele. De interessante a provável mistura feita, por ele entre o universo dos métodos e do contexto dos malandros. (Anexo 4)
Em 1930, após já ter uma vivência em termos de movimentação de lutas e atividades esportivas, pois neste período foi instrutor de educação física, campeão de levantamento de peso, instrutor da Policia especial do Distrito Federal entre outros, reuniu sua primeira turma de alunos particulares, a quem ensinava capoeira de graça.
Sua primeira “academia” no Quintal de sua casa na rua Redentor, foi também a primeira academia de ginástica de Ipanema. Depois, sempre em Ipanema, passou por diversos endereços, como nas ruas Visconde Pirajá, Saddock de Sá e muitas outras, terminando na rua Prudente de Morais em frente à praça General Osório, quando morreu em 1962.
SINHOZINHO – marcou o cenário da capoeiragem moderna carioca, nos anos 30, 40 e 50, formando capoeiristas, boxeadores e remadores. Entre seus alunos famosos destacam-se Tom Jobim, que foi uma personalidade do mundo musical carioca e brasileiro e, como capoeira e desportista Rudolf Hermanny, que foi também campeão de judô no Pan-Americano do México em 1960. Entre os que participavam, do seu espaço de movimentação, podemos destacar: Paulo Azeredo, Paulo Amaral, Sílvio M. Padilha, André Jansen, Bruno e Rudolf Hermanny, Luiz Pereira de Aguiar (Cirandinha), Eloy Dutra, Carlos Alberto Petezzoni Salgado, Joaquim Gomes (Kim), Telmo Maia, Tom Jobim, Carlos Madeira, Darke de Mattos, Comandante Max, Paulo Lefevre, Paulo Paiva, Bube Assinger, Wanderley Fernandes (Pára-quedas), José Alves (Pernambuco), Carlos Pimentel, Lucas e Haroldo Cunha, Manoel Simões Lopes, Flávio Maranhão, Carlos Alberto Copacabana, e numerosos outros. Foram gerações sucessivas, daí a dificuldade de citar todos.
Paralelamente em Salvador, onde não existe registro sobre movimentos sociais de capoeira, numa perspectiva organizacional como a carioca no séc. XIX surge, a figura de Manoel dos Reis Machado, Mestre Bimba. Bimba abriu, numa academia de Salvador, suas aulas de “Luta Regional Baiana”, apresentando um treino disciplinado onde se aprendiam golpes numa seqüência padronizada. Além de golpes novos e treinos sistemáticos, introduziu elementos musicais como o pandeiro e o berimbau, formando a bateria, onde através de vários ritmos, associados a cânticos se praticava a luta marcial. Talvez evitando associações com a capoeira, que era ainda proibida, chamou de luta regional. Regional porque dizia que era originária de sua região, no Recôncavo baiano.
Lembrando aqui, que a construção do processo de capoeira como sport, tanto da regional de Bimba, como a de Sinhozinho, conviveu com a existência de algumas propostas de métodos organizando a estrutura da capoeira para uma luta marcial.
É, neste período, que a estratégia nacionalista de Getúlio Vargas, coopta a Capoeira e abre o caminho para transformá-la em Educação Física e Esporte, dentro de seu projeto populista.
Foi assim que Mestre Bimba apresentou ao Interventor da Bahia (espécie de Governador na fase Getuliana), uma exibição de sua luta, recebendo permissão para legalizar sua academia, dando início ao período da moderna capoeira. Em 1934, Getúlio Vargas, interessado no voto feminino, dos analfabetos, dos soldados, etc, extingue o decreto-lei que proibia a Capoeira e a prática de cultos afro-brasileiros. Mas, por outro lado, obriga que tanto os cultos quanto à Capoeira sejam realizados fora da rua, em recintos fechados, com um alvará de instalação. A iniciativa de Bimba teve um imenso sucesso, ganhou projeção nacional e foi adotada pelo próprio regime do Estado Novo como exemplo de “Luta Nacional” tirando a capoeira do limbo da rejeição. Manoel dos Reis Machado chegou a ser chamado para dar treinos nas Forças Armadas e na Academia de Polícia.
Segundo Liberac Mestre Bimba, passou por um longo percurso até chegar a hierarquia superior no que tange a “cultura popular” Ele reelaborou a capoeira construindo-a como símbolo cultural. Para construção de sua luta regional, Bimba redesenha a estrutura do gestual de sua realidade cultural baiana, pois ele achava a capoeira que se praticava na Bahia muito fraca como luta, por possuir um numero de golpes reduzidos e seu uso era mais para exibições em praça pública por “pseudos-capoeiristas”. Na construção de sua perspectiva de luta buscou no Batuque e nos movimentos de luta vivenciados e em manuais de luta marcial de seu tempo, os elementos que vão estruturar a sua luta regional, lembrando que teve, provavelmente, grande ajuda do grupo de alunos que o cercava, pois a grande maioria era da elite de Salvador e de grau de educação refinado.
Saio de Salvador, no inicio da década de 70, decepcionado com a não compreensão de seu trabalho por parte dos baianos. Sua escola nunca foi bem vista por intelectuais baianos, estes sempre se esqueceram em suas análises, de que a perspectiva do Mestre Bimba, era de fato a base da capoeira moderna. Nela todos se miraram, inclusive os ditos “angoleiros”, pois se a regional do Bimba surgiu não foi por mera coincidência, faltava no que se intitulou capoeira baiana algo, em seu gestual, e este algo era sua fragilidade para contendas.Em entrevista registrada no ensaio de Waldeloir Rego , Bimba fala que criou a capoeira regional por achar que a brincadeira da capoeira em Salvador era muito fraca, boa para divertimento, mas não para educação física e defesa pessoal. Morreu fora de sua terra, porém de pé.
A diferença destas duas escolas estão no contexto cultural que ambas estão inseridas. Uma na Bahia e outra no Rio de Janeiro, Capital da República. Onde a diversidade cultural é bem maior que Salvador. Em Salvador Bimba Constrói sua proposta de luta Marcial baseada em um método racional, mas dá a ela um indumentária, um vestuário, que para mim é a grande diferença, pois cobre o vazio da capoeira moderna, que surge da desconstrução da personalidade da capoeira como movimento social, imposição da república, para uma proposta de luta marcial com uma conotação de cultura local.
Sinhozinho tem uma proposta de movimentação muito eficiente, mas é seca sem nenhuma proposta de ritmos no que a capoeira carioca do século XIX, brincou. Desta forma é a capoeira do Mestre Bimba que vai ser o marco da Capoeira atual é o Grande Pai.
As duas escolas são para mim o grande marco da capoeira atual, pois o meu grupo surge da fusão das duas e, no meu entendimento o processo de massificação da capoeira se dá a partir daí.
4 – Um fato que lhe marcou positivamente dentro de sua vida na capoeira.
Ter vivenciado o período da construção da capoeira moderna no Rio de janeiro, década de 50 e 60 do século XX.
5 – Em algum momento você pensou em desistir, achou que a capoeira não lhe satisfazia integralmente?
Ser capoeira para mim é um estado de espírito. Nunca a fiz comercialmente e mesmo que a fizesse a faria como algo de minha essência vivencial.

6 – Você compôs alguma música de capoeira?. Conte-nos qual foi sua primeira composição (música de capoeira), como foi esta experiência e qual a sua música preferida:

Não, nunca compus uma música de capoeira, pois acho que não existe música de capoeira o que existe são músicas ligadas às manifestações sócio culturais da cada região onde a capoeira esta inserida. A música de capoeira é umas das indumentárias construídas pela perspectiva da capoeira moderna.

7 – A Capoeira como “ferramenta de resistência”, A Capoeira como “meio de subsistência” até a “Capoeira Business”… Qual é a sua postura e visão em relação a estes processos?

A capoeira na sua gênese, no século XIX, foi um dos elementos representativos da cultura de um espaço como o Rio de Janeiro, tão diverso e mestiço sob o ponto de vista da origem e etnia de seus elementos componentes. Sua forma de expressar esta relação se deu através de uma comunicação gestual, onde os elementos deste cenário eram provenientes da interação entre as diversas categorias que criavam o tecido deste contexto cultural.
A forma que moldava a estrutura deste tecido era proveniente de um processo que atuava nesse espaço, cuja dinâmica é relativa ao seu tempo. Esta relação espaço-temporal é fundamental para ser percebida, pois é ela que caracteriza o contexto (ambiente). Entretanto, sua estrutura é de difícil visualização, quando fragmentada numa definição esquemática de seu comportamento.
Na sua organização contemporânea, academizada e sistematizada, a capoeira perde a sua característica básica, que é de ser um movimento de desobediência ao estabelecido representado na espontaneidade de gestual e ganha uma estrutura de atividade organizada para representação de “arte marcial brasileira”.
Essa passagem, embora básica para a manutenção de gestos culturais ligados aos elementos que constituía o ambiente de existência, como ritmos, melodias e outras formas de expressões populares, tornou-os congelados a uma estrutura estática, onde a diversidade cultural regional não tem espaço para interagir como no passado. Esta observação é importante no contexto atual do mundo da capoeira, principalmente quando se tem em conta a sustentabilidade de sua continuidade.
A capoeira, no espaço carioca tem registro suficiente para mostrar a sua personalidade como movimento social(perspectiva identitária e territorial) na sua fase originária, onde ela foi construída pela dinâmica interativa dos elementos que há constituíam e a perda desta personalidade em sua modernidade, perde a força identitária e por este motivo, perde sua territorialidade. Desta forma, mostra a trajetória da capoeira no espaço carioca, sua gênese, seu momento identitário e territorial e a destruição desta relação, com a substituição por uma capoeira sem a referencia da subjetividade do indivíduo e a do contexto, onde o vazio deixado pela perda de identidade é preenchido por invenções de tradições, discursos e mitificações.
A capoeira precisa voltar a ter o indivíduo como sua construção. A perspectiva identitária e de territorialidade que o individuo desenvolve, faz na invisibilidade uma comparação entre a relação indivíduo e sociedade. A subjetividade do indivíduo – no espaço da capoeira moderna – não tem importância na construção da estruturas sociais. Como resposta tem-se um quadro de conflitos, em todos os níveis, com propostas desenvolvimentistas numa ânsia de entender o momento. Esta resposta esta no indivíduo, onde sua sobrevivência depende de seus sensores de leitura vivencial, os quais irão dá-lo perspectivas territoriais, onde o seu espaço de vivencia é sua identidade.
A identidade cultural é dinâmica, pois é construída no processo interativo que forma um determinado espaço. Seus elementos estão em constante troca e com isto produzindo mutação na organização da forma de um contexto. Ao desenvolver a consciência do momento vivenciado, o indivíduo, percebe sua identidade com o contexto, o que lhe confere percepção do espaço que está inserido, ou seja, consciência de seu espaço vivencial, seu território.
Ao conferir identidade ao processo capoeira, o que passa pelo indivíduo, cria-se na capoeira um movimento de legitimação, pois a capacita edificar identidade social no contexto que se insere.
Na fase embrionária de sua modernidade, o gestual é engessado pela construção de um padrão funcional e estético, voltado para ter um lugar nas artes marciais. Foram selecionados, dentro do gestual espontâneo, os elementos com as características mais próximas da forma globalizada da arte marcial.
O indivíduo, o elemento do discurso da modernidade se torna um corpo estranho na construção da sociedade moderna, some do cenário da capoeira, passa a ser um elemento de enfeite, sua personalidade não é interessante na construção do tecido gestual. A necessidade do retorno do indivíduo na construção do contexto por ele vivenciado é de extrema importância na sustentabilidade da capoeira. A construção de um contexto capoeira se faz por informações gestuais personalizadas, as quais ao interagir com as demais existentes neste ambiente, produz no espaço vivenciado, uma forma única tanto em termos de tempo como espaço, ou seja, uma unicidade.
Hoje a perspectiva que se inicia no processo de construção da capoeira moderna entra em crise de identidade e inicia-se o processo do retorno do indivíduo participar com sua subjetividade na construção do seu contexto capoeira. Os discursos angola e regional são percebidos como estruturas criadas sem a força de movimentos de resistência, falta a eles a perspectiva da desobediência, da desconstrução para construção do momento vivencial.
A história da capoeira na última década do século XX foi a da fragmentação dos grandes grupos e da multiplicação dos discursos de identidade. A criação de milhares de pequenos grupos, liderados não apenas por “mestres”, jogadores de profundo passado e dedicação, mas principalmente por jovens “contra-mestres”, “professores” e “instrutores”, sem grande experiência nem de vida nem de capoeira. A capoeira se espalhou por todos os estratos sociais, ganhou não apenas as academias, como nas décadas passadas, mas também as escolas, universidades, clubes e praças, porém a troco de se afastar por completo de ser uma prática de sabedoria cultural, enraizada no contexto social. Agora a relação passou a ser a de troca econômica, ritual de construção estética ou prática de saúde. Permitiu-se criar um “mercado de trabalho” para mestres, contra-mestres e professores, que se sustentam de suas aulas, porém numa relação estática de troca. A sistematização e a padronização dos treinos facilitou o aprendizado, permitindo um rápido desenvolvimento técnico ao aluno, mas em compensação ele recebe seus ensinamentos através da indução de movimentos, racionalizada e impositiva, destruindo sua espontaneidade. Isto foi necessário, sobretudo a partir do intenso movimento migratório, inicialmente no espaço intra regional brasileiro e posteriormente. para países da Europa e América do Norte, culturas de outros contextos, em que a capoeira precisa de uma “embalagem” para ser entendida. É assim que a capoeira moderna repete sua perspectiva e não constrói sua identidade.
A falta de uma identidade que caracterize sua personalidade é o marco da controvérsia contemporânea. A capoeira só se estabelece quando cria uma identidade social, este fato ocorreu no século XIX, na cidade do Rio de Janeiro. Nesse cenário ela territorializou-se e personalizou seus ambientes. O fator de construção deste espaço cultural foi a diversidade de seus componentes, oriundos de um contexto, tão diverso e mestiço, sob o ponto de vista da origem e etnia, que compunha a realidade urbana carioca. Porém, na sua contemporaneidade, a capoeira perde a sua identidade social, pois é desfeita sua estrutura coletiva, desfaz-se dos territórios e com isto acaba sua magia. Todo o universo da riqueza de sua invisibilidade, produto do espontâneo, é quebrado ao formalizar sua relação.
Desvinculada de seu contexto e sem a referência de seu território, multiplicam-se os discursos sobre sua origem, sobre sua raiz. Por esse ponto de vista, o discurso nacionalista da época do Estado Novo, dá lugar por um lado ao discurso da origem “negra e africana” da capoeira, defendida pelos “angoleiros”, herdeiros de Pastinha, pelo discurso marcial de alguns grupos da capoeira como “mandinga de escravo” para enganar o feitor, etc. Ou surge um discurso anti-histórico, da capoeira como espetáculo ou prática estética da mídia, ou como maneira de “manter a forma”, discurso utilitário e integrado ao sistema capitalista.
O discurso étnico (da capoeira como luta negra), nacionalista (da capoeira como luta brasileira), corporativista iniciatório (da capoeira de grupo seguidor de um mestre famoso) ou classista (da capoeira como mandinga do oprimido contra o opressor), mostram a necessidade de se estabelecer um imaginário carregado de verdades e tradições que qualifique mestres e contra-mestres, como linha que contemple a identidade social, na contemporaneidade da capoeira. Identidade atualmente perdida que procura se reconstruir sobre o artificialismo de discursos e mitos.
8 – No tocante à sua experiência de trabalhador formal (Geólogo e professor) e capoeirista, diga-nos como (e quando) essas atividades se permitiram concomitância harmônica e como (e quando) elas se incompatibilizaram.
A vida é sempre o momento que se vive e viver é espontaneidade. Não existe para mim uma divisão da minha área de atuação como geógrafo e capoeira, as duas coisas, para mim , são simbiótica. Estou vivenciando em qualquer perspectiva o espaço, o ambiente e a forma. Estou sempre presente no meu vivenciar. Posso estar analisando a dinâmica socioecológica de um determinado contexto, tanto como geógrafo ou capoeira. Ser capoeira, geógrafo, pai é vivenciar a realidade presente, ou seja, o momento.

9 – Existe uma ampla discussão a respeito das tradições dentro da capoeira, as diversas formas em que se apresentam, o modo de preservá-las e a importância em divulgar às novas gerações de maneira coerente e séria a história, os personagens, os causos e toda a infinidade de elementos inerentes da capoeira. De que maneira o “Mestre Gil Velho” encara esta missão e qual seria a melhor forma de trabalhar neste contexto?

Acho que devemos ter uma noção muito forte das relações sócio culturais que existem em qualquer contexto e elas são importantes na construção de qualquer manifestação social.
A capoeira na sua prática atual, independente de estilos é uma proposta de modelo de movimento, ou seja, é imposta ao indivíduo. Ela não é uma construção feita a partir do indivíduo e com isto se torna inerte, sem vida. Sua música seus ritmos são sempre alóctone ao contexto em que ela se insere. Ela deve ser construída pelas manifestações sócios culturais do espaço que propõe interagir e esta perspectiva só é possível se os indivíduos que compõe o espaço capoeira colocar suas relações sócias culturais próprias de seu contexto.
O indivíduo, o elemento do discurso da modernidade se torna um corpo estranho na construção da sociedade moderna, some do cenário da capoeira, passa a ser um elemento de enfeite, sua personalidade não é interessante na construção do tecido gestual. A necessidade do retorno do indivíduo na construção do contexto por ele vivenciado é de extrema importância na sustentabilidade da capoeira. A construção de um contexto capoeira se faz por informações gestuais personalizadas, as quais ao interagir com as demais existentes neste ambiente, produz no espaço vivenciado, uma forma única tanto em termos de tempo como espaço, ou seja, uma unicidade.
Não podemos, por exemplo, termos um espaço capoeira em Recife sem levar em conta sua diversidade cultural, onde diversas manifestações rítmicas existem na memória genética dos indivíduos deste espaço. Este fato irá exigir da perspectiva da capoeira que sua resposta gestual seja relacionada com personalidade deste contexto.
Então, vejo que a forma da capoeira ter continuidade é ela trabalhar com a realidade dos indivíduos e contexto. Dentro desta perspectivas criaremos diversidade e vamos aos poucos desconstruíndo os discursos de sua fase moderna e construindo espaços capoeiras personalizados. Espaços que podem vir a serem ordenadores sócio culturais. Desta forma teremos diversas espaços capoeiras como no passado foram os das Maltas Cariocas e dos Bravos e Valentões, no Recife.
10 – Os historiadores divergem sobre a origem do termo capoeira. Para você qual é o verdadeiro significado, não do termo, mais sim da “CAPOEIRA”.
A versão do Termo capoeira que para mim é mais adequada é aquela que se origina dos Capus – Cesto muito usado pelos estivadores de cais no final século XVIII e inicio do XIX, no Rio de Janeiro. A capoeira é uma expressão nascida no Rio de janeiro para categorizar indivíduos que brigavam utilizando cabeçada, inicialmente e posteriormente em grupos organizados(Maltas)braços, pernas, facas, navalhas e porretes.
O termo e significado são segundo os registro originário do Rio de Janeiro. Não existindo qualquer registro fora do Rio de janeiro no século XIX. Em Recife grupos semelhantes às Maltas de capoeira Carioca são registrados mas, com o nome de bravos e valentões. Estes grupos – do Rio e Recife – se assemelham – na perspectiva de suas etnofronteiras, ou seja, eram Gangs urbanas que disputavam territórios, porém suas formas de relação de comunicação gestual eram diferentes por serem produtos de espaços sócio culturais diferentes.
11 – Fale-nos sobre seu trabalho, suas expectativas e objetivos:

A formação do Mestre Gil Velho passa pelo geógrafo Gil Cavalcanti ou vice versa, pois, estes dois personagens, se fundem numa perspectiva vivencial, que passa pelo trinômio “espaço, ambiente e forma”, termos que estão em unicidade e envolvem percepção de tempo, movimento e troca, que por sua vez estão diretamente relacionados à questão da realidade, ou seja, do contexto vivenciado.
Minha primeira experiência de docência foi na Universidade Federal do Acre como professor de Geomorfologia no Departamento de Geografia, no ano de 1976.
Posteriormente, lecionei durante 11 anos no Departamento de Geografia e Meio Ambiente da PUC-Rio, no período que vai de 1988 até 1999, como professor das cadeiras de Geomorfologia, Hidrologia, Análise Ambiental e socioecologia. Colaborei ainda com a criação do curso de Pós Graduação em Análise e Avaliação Ambiental da PUC-Rio, Desenvolvi, neste período, Diversos Projetos relacionados à percepção socioecológica.
Durante 18 anos trabalhei como Geógrafo na Amazônia, em levantamentos geobiofisicos nas diversas unidades socioecológicas desta região. Também atuei em todo litoral brasileiro, em levantamentos de geomorfologia costeira para diversas empresas como Petrobrás, Portobrás, CPRM, e outras. Na região nordeste trabalhei em levantamentos geohidroecológicos, na área do semi-árido (caatinga), onde vivenciei as diferenças tanto físicas como culturais desta região. Nos últimos quatro anos trabalhei com levantamentos socioecológicos, aplicados em processos de identificação de Terras indígenas, processo de licenciamentos ambiental de empreendimentos que interferiam na perspectiva identitária e territorial indígena, como em programas de ordenamento etnoterritoriais. Todos estes procedimentos foram trabalhados dentro de uma perspectiva sócia participativa.
A minha experiência gerencial em projetos, programas sociais ou educação comunitária passa tanto pelos trabalhos da área socioecológica como pela capoeira que faço há 50 anos. Durante o meu trabalho como professor da PUC/RJ desenvolvi ações comunitárias que associavam a capoeira ao meu trabalho acadêmico, tendo inclusive registro desta perspectiva no filme documentário “O ONIBUS 174”.A capoeira foi sempre um espaço, para mim, de ensaio de percepção identitária e territorial, onde desenvolvi vários trabalhos de resgate pelo individuo, de sua percepção contextual. Este trabalho foi dirigido, sempre, para todas as faixas etárias, como crianças e adolescentes (inclusive com meninos de rua), como jovens adultos e pessoas de 3º idade.
Portal Capoeira Entrevista Mestre Gil Velho Conversando com o Mestre Mestres
Minha expectativa no momento é desenvolver o projeto do “Memorial da perspectiva revolucionária e libertaria Pernambucana”. Nesta perspectiva a capoeira entra simbióticamente com todos atores da cultura popular Pernambucana e a partir daí desenvolver ações que tenha a capoeira como aglutinadora de grupos de indivíduos relacionados as comunidades ligadas a Centro de cultura do Recife e municípios periféricos e, a partir destes grupos fazer uma leitura perceptiva destas comunidades, para desenvolver programas inclusivos sócios culturais. Dentro destas ações comunitárias existe ensaio de capoeiras dirigido para pessoas portadoras de transtorno específico.
12 – Gostaria que nos deixasse uma mensagem pessoal para todos os visitantes e leitores do Portal Capoeira:

Que tenham a capoeira como uma relação que nasce de dentro para fora, para que cada um faça a sua capoeira. Desta forma, a capoeira mostra que não existe idade, sexo ou biótipo, como também, que não existe fundamentos ou tradição estabelecida, o que ela exige é percepção de que a vida é o momento sentido, ou seja , vivido.

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