Nestor Capoeira no Filme Cordão de Ouro

Nestor Capoeira: Palestra e Novo Livrão

APRESENTAÇÃO

Em 2001, após ter defendido minha tese de doutorado em Comunicação e Cultura na UFRJ, que enfocava a capoeira, comecei a escrever um “livrão” que englobasse tudo que eu conhecia sobre a filoosofia e o histórico do Jogo. Em 2010, após 9 anos, o “tijolão” estava pronto: 1.216 páginas!

Este ano, 2011, o livro vai ser publicado, em 3 volumes, com umas 400 páginas cada. Resolvi fazer umas palestras para “esquentar” a rapaziada para o lançamento. A idéia é divulgar a palestra pela internet, ao mesmo tempo que apresento o capítulo sobre o qual vou falar.

Esta palestra, de janeiro de 2011, enfoca um tema polêmico:

Hierarquia e autoridade nas academias de capoeira
Excesso e autoritarismo?
Ou hierarquia justificada pela tradição?

Independente da chegada da TV a partir da década de 1950, que teve enorme impacto sobre  o Brasil e, evidentemente, a capoeira; da ditadura militar, entre 1964 e 1984, que poluiu toda a mentalidade daquela época (inclusive com grande influência sobre os grupos que, na época, iniciavam a fazer sucesso); da migração de capoeiristas baianos de Salvador para São Paulo, alguns de altíssimo nível (de jogo e cabeça) como Acordeon e Suassuna; e da criação do Grupo Senzala no Rio, algo que iria marcar a capoeira, de 1965 até 1985; vamos apontar, para começar, uma estratégia básica dos capoeiristas na luta interna pela hegemonia, entre os grupos e estilos.

Esta “estratégia na luta interna pela hegemonia” funciona até nossos dias e tem tudo a ver com o tema de nossa palestra.  

Talvez esta estratégia seja a tônica mais marcante, a partir dos 1950s, da dinâmica do relacionamento entre os estilos, entre os grupos, entre professores e alunos, e entre mestres e graduados; e se não a tivermos constantemente em vista, não entenderemos com propriedade os desenvolvimentos que culminaram na infra-estrutura da capoeira atual.

Espero que vocês curtam as páginas seguintes; e quem for ao Galpão das Artes (Rua Padre Leonel Franca, sem número, em frente ao Planetário, Gávea, Rio de Janeiro), das 19h. as 22h., no dia 28 de janeiro de 2011 – uma “6a feira sem lei” (roda com cerveja, no estilo das rodas no barracão do finado mestre Waldemar da Paixão, no bairro da Liberdade em Salvador, na década de 1960) – curta a roda, a cerveja, a rapaziada, e a palestra.

Até breve,

Nestor Capoeira.

ESTRATÉGIAS NA LUTA PELA HEGEMONIA

Muniz Sodré diz:

O que se tem como certo é que todo Estado-nação procura instituir uma “comunidade nacional” na base de uma etnicidade fictícia – o que não se entende como uma ilusão qualquer, mas como a montagem pela ilusão de um efeito institucional com sentido histórico e político preciso.  A partir de critérios linguísticos, históricos e biológicos, o Estado nacional “etniciza” a população essencializando as suas representações psicossociais por meio de ideologias nacionalistas ou mitos de identidade baseados em cultura, origem e projeto coletivo presumidamente comuns.

O investimento da consciência do sujeito por uma identidade étnica pode ser tão grande que certas formas de incerteza em relação a tal identidade geram violência social. (516)*

A partir de aproximadamente 1950, quando a capoeira migra da Bahia para o Rio e São Paulo, uma estratégia semelhante à explicada acima por Muniz Sodré, também é usada pelos jovens mestres das “associações” e grupos de capoeira com suas “populações”: os iniciantes e “alunos graduados”.  

Os jovens mestres tornam seus grupos mais coesos “essencializando as suas representações psicossociais por meio de ideologias” (“… nosso estilo, ou grupo, é o melhor, ou o mais eficaz de porrada”, ou “o mais tradicional, que realmente defende as raízes negras”, etc.): ou por “mitos de identidade baseados em cultura, origem, e projeto coletivo presumidamente comuns”.

Neste processo “que procura instituir uma comunidade coesa” (no caso presente, “um grupo de capoeira coeso”), também vemos mecanismos para desqualificar os outros grupos sob diferentes pretextos: “não tem competência”, “não tem tradição”, etc. E, na sequência, o uso de uma poderosa ferramenta: a criação de um “inimigo externo”.  Sem jamais terem lido Freud, estes jovens mestres sabiam de cor e salteado a lição ensinada pelo Pai da Psicanálise:

Freud (O mal-estar na civilização) considera que a civilização, para conseguir manter unida uma comunidade, lança mão de fortes identificações entre seus membros.  Ele argumenta não ser natural do homem ter afeto por um estranho, e a máxima “ama o proximo como a ti mesmo”, bem mais antiga do que o segundo mandamento, na vida cristã, consegue consolidar-se e impulsionar o indivíduo em direção ao grupo através de estratagemas que pretendem limitar os instintos agressivos, a hostilidade primária do ser humano.

Ele considera ainda ser “sempre possível unir um considerado número de pessoas no amor enquanto sobrarem outras para receberem as manifestações de agressividade”.  Dessa forma, passa à explicação de como se estabelecem as rixas entre grupos, que confirmariam o que nomeou de “narcisismo de pequenas diferenças”, cuja existência demonstra ser necessária, principalmente diante do fato de serem a hostilidade e a agressividade inatas ao ser humano.  Os limites para os instintos agressivos são indispensáveis à continuidade da civilização, como também o são seus ingredientes que, dosados, têm papel importante, a exemplo da competição e da luta. (517)

Este “inimigo externo” – fator essencial na solidificação interna dos grupos contemporâneos de capoeira – não é mais o feitor, o capitão-do-mato, ou o dono de escravos.  Tampouco é a sociedade injusta e preconceituosa.  Nem mesmo os órgãos de turismo que “tentam transformar o rito em show”, ou a tara pedagógica que “tenta transformar a brincadeira em esporte sério”.  Ou a televisão “com seu discurso consumista e desterritorializante”.  

Os “inimigos externos” criados pelo jovem mestre são outros grupos de capoeira.  E, em alguns casos de paranóia galopante – que não são tão raros -,  agravado pela súbita conquista de uma posição de poder, o “inimigo externo” é todo o restante do universo da capoeiragem.

A finalidade desta estratégia utilizada pelos jovens mestres, como dissemos, é dar uma consistência interna a seu grupo – semelhante à instituição da “comunidade nacional” pelo Estado. Ou seja: “irradiar” uma “verdade” sobre as “verdades individuais” dos alunos; seja esta “Verdade” uma invenção; ou as fantasias autoritárias, narcisistas, e paranóicas, daquele mestre. Uso o termo “irradiar” para propositalmente comparar a ação dos jovens mestres em relação a seus alunos, com a ação da televisão sobre a população de um país.

Estas estratégias usadas pelos mestres da capoeira, desconhecidas da quase totalidade de alunos, já foram usadas por conhecidos ditadores, tanto da direita quanto da esquerda.

Muniz Sodré nos conta (517a) que, em 1943, o governo norte-americano pediu ao psicólogo e psicanalista, Walter Langer, uma avaliação da personalidade de Adolf Hitler. Para Hitler, as massas teriam um caráter essencialmente feminino, onde predominaria o afeto e as emoções, sobre a razão.

{Hitler) procura primeiro “sentir” os seus ouvintes e começa sempre com cuidado, num tom de voz normal e de maneira objetiva. À medida que prossegue, no entanto, a voz começa a elevar-se e o ritmo acelera-se… Já aí, desapareceu toda objetividade, já está simplesmente desvairado… Ele constrói cuidadosamente inimigos imponentes como os judeus, os bolchevistas, os capitalistas e as democracias, para depois demoli-los impiedosamente. (517b)

Nos seus discursos, nós ouvimos a voz abafada da paixão sensual retirada da linguagem do amor; ele grita com ódio e voluptuosidade; um espasmo de violência e crueldade. Toda a sua gama de sons é tirada de becos sórdidos dos instintos. Fazem-nos lembrar nefandos impulsos por muito tempo reprimidos, (517c)

(Hitler) não entrou em campo em função de alguma extraordinariedade, mas por sua inequivoca rudez e pela manifestação de sua trivialidade.  (517d)

Este “transbordamento da emoção” que vai até a “exaltação característica dos fanáticos religiosos” é visto por Kant como “um meio de ocultar a própria ignorância” (517e).

Muniz explica que, além disto, “a instilação coletiva do  medo (tida por Hobbes como a emoção fundamental) faz parte de estratégias contemporâneas de controle de comportamentos”; e que  a “invenção de alguém a quem se atribui as culpas latentes e manifestas no corpo social, é atualíssima para os grandes demagogos” (517f).

Parte importante deste quadro é um “sistema de ensino” altamente autoritário e excludente, que exige que os golpes e movimentos sejam executados exatamente como aquele mestre (ou aquela academia, ou estilo de capoeira) acha “correto” – “… não é assim, imbecil; o certo é assim!”.

Isto resultou numa homogeineização do jogo dos capoeiristas de um mesmo estilo, de um mesmo grupo, ou de uma mesma academia. A maneira diferente de jogar, que deveria ser diversa conforme a personalidade, biotipo, criatividade, cidade de cada jogador, desapareceu. Os alunos são clones de um “modelo de jogar”; são “capoeiras-robôs” do estilo regional-senzala, ou do estilo angola da linha de mestre Pastinha, ou etc.

A pressão, que visa criar um “grupo coeso”, não permite emergir o indivíduo singularizado – o que paradoxalmente deveria ser a própria dinâmica da “viagem” do jovem jogador pelo universo da capoeira.

Já existia uma “tradição”, neste sentido – os “grupos inimigos”.  “Tradição” que remete às maltas cariocas dos 1800s; e também uma “tradição” mais recente, pois as rodas e os “grupos” só se começam a formar por volta de 1920.  Existiam as inimizades, e a concorrência comercial pelos alunos e pelos shows de turismo entre mestres de Salvador, nas décadas de 1930 e 1940.  

Mas, após 1960, estas estratégias – criar o “inimigo externo”; o sistema de ensino discriminatório; e desqualificar os outros grupos – começaram a ser  usadas de uma forma mais brutal, mais “capitalista selvagem”.

Essas estratégias, e o contexto geral no qual se situam, já têm sido discutidos, por este seu humilde e modesto almocreve, em revistas e livros com ampla aceitação no mundo da capoeiragem.

Hoje em dia, um jovem jogador que já viveu um pouco o mundo da capoeiragem olha em volta e observa os capoeiras que sobressaem no panorama geral.  E o que ele vê?

A nível local – numa cidade, ou numa pequena região, ou numa associação ou grupo -, alguém com um alto nível de jogo pode se destacar, ter prestígio na capoeira e com as meninas, e também ganhar grana.  Mas, saindo de sua cidade ou da área em que mora, este ótimo jogador não vai estar com essa bola toda: apesar de ser reconhecido como excelente capoeira em outros lugares, são outros jogadores, que jogam tão bem quanto ele, que têm prestígio.

Então, quem é que tem prestígio, a nível nacional ou internacional?  

Certamente os (poucos) velhos mestres.

Mas, de certa forma, para o jovem jogador que olha em volta a fim de armar sua estratégia dentro do mundo da malícia, estes não contam: ser velho mestre é uma questão de idade e experiência, e nem tanto de uma estratégia que possa levar o camarada – ainda jovem – pra dentro daquele pequeno grupo que tem cartaz e é reconhecido e respeitado por todos.

Algumas outras figuras também têm seu nome no gibi: são bons jogadores (ou, pelo menos, razoáveis) e principalmente são bons de porrada, que tiram uma onda de valente e durão.  Eles vão nas rodas e saem na porrada com quem estiver presente.  O lema é: “entra quem quer, sai quem pode”.

Mas o jovem jogador, que já tem uma certa quilometragem, sabe que esta estratégia é extremamente perigosa, pois só funciona a curto prazo: durante uns cinco anos o “bicho” é fulano; nos anos seguintes já é sicrano: mais três anos, e é beltrano que está sendo comentado e falado.

O cara sobe até uma certa altura, mas pra ficar lá é necessário muito mais gás do que o que se usou na subida.  E o tempo vai passando, o cara começa a ficar cançado, outros vão aparecendo com força total.  Pois pra ser porradeiro não é tão difícil e muita gente se candidata: basta uns poucos anos de treino, e colocar a disposição e a fé na parada.

“E o fulano, que era o bicho há tempos atrás?”

“Tá por aí.  Parece que está dando aula não-sei-aonde…”

Dando aula e correndo atrás pra não perder o resto do prestígio que tinha no passado.  Mas não tem jeito: valente, hoje em dia, é que nem a gostosa do verão – cada ano é uma.

E o cara que foi o valente de ontem, ao sentir que seu tempo está pra terminar, só tem uma saída: dar um salto mortal revirado junto com o pulo-do-gato; aproveitar o prestígio, tirar a roupa de valente e vestir a de jovem mestre “maduro e cabeça-feita” que viveu de porrada no passado mas, agora, está noutra.  E tentar enveredar por aí.

Mas é um lance difícil.  

Exige inteligência, dedicação, paciência, malandragem – e sobretudo sorte.  Quase ninguém consegue pular por cima deste abismo, que é o beco-sem-saída do valentão porradeiro.  Ainda mais, levando em conta que a quase totalidade dos porradeiros são limitados – em termos de cabeça -, e a maioria não passa de tigre-de-papel (apenas fachada, e nenhum valor “interno”).

Então, se o lance da Velha Guarda depende do tempo, e a jogada do Porradeiro é uma viagem de curto prazo, quem mais se destaca?  

… é isto que o jovem jogador, que quer armar sua estratégia pra vida, pergunta a si mesmo.

Ora, os chefes dos mega-grupos – é claro!  

Os mestres que têm grupos com dezenas e mesmo centenas de professores filiados.  

Eles tem carro, moto do ano, casa própria, dinheiro pra gastar, prestígio com o mulherio, são respeitados no universo da capoeiragem, viajam pra baixo e pra cima, e são tratados como estrelas – pelos capoeiras locais – onde quer que cheguem.

E como chegar até lá?

Bom, pra começar: treinar pra caralho.  Estes mestres – ou quase todos eles – são excelentes jogadores.  

Depois, começar a dar aulas e se dedicar integralmente  de uma maneira extremamente profissional – e comercial -, sem deixar cair o lance do treino e da forma física.  

Pra finalizar: construir o grupo.  Criar alunos bons e transformá-los em professores, exigindo deles muito treino e responsabilidade.  Criar “inimigos externos”: os outros grupos e academias.  Com o “inimigo externo” é mais fácil uma “coesão interna” no seu grupo.

E mais: manipular a cabeça destes jovens; absorvê-los completamente; dar-lhes oportunidades e ao mesmo tempo controlá-los.  Jogar uns contra os outros, quando for necessário; usar elementos de paranóia fazendo que o desenvolvimento de um ameace os demais – com isso vão  se empenhar mais.  

E, quando o grupo já tiver um certo nome, começar a absorver os professores que vem de fora e que estão meio sem rumo, e dirigi-los com mão-de-ferro.

Parece complicado, mas não é.  

Os modelitos já estão aí, desde a década de 1960.

Dá um bocado de trabalho duro, e é preciso persistência e força de vontade.  O camarada vai ter muito pouco tempo pra curtir e, quanto mais subir, mais trabalho vai ter.  

Ele vai viajar, mas pouco tempo tem pra saborear o lance.  

Vão pintar mil brotos dando mole mas, até pra namorar, o tempo é curto – raramente dá pra tirar um fim-de-semana pra ficar exclusivamente ao sabor da sacanagem.   

A agenda está sempre cheia.  

Os lances estão sempre atrasados.  

Tem sempre um montão de aporrinhação e problema pra resolver.  

Com o tempo, cada vez mais, dorme-se pouco e trabalha-se muito …é um trabalho duro.  

Que nem o de um cara que sobe como executivo numa grande firma; ou que nem um cara que abre um negócio que começa a prosperar, mas que não exige nenhum dote excepcional, como o de um Pelé ou um Garrincha (exige apenas trabalho duro).   

E, com uns quinze anos nesta jogada, já se vêem os resultados: o camarada já conquistou um certo nome.  

E, aí, ele pode chegar nos lugares e tirar aquela onda; aliás, este se torna praticamente o único prazer, pois todo o tempo está tomado pelo trabalho e pelos compromissos  pra manter a bola rolando.

A Velha Guarda e o tempo; os Porradeiros e a viagem de curto prazo; os Chefes dos Grandes Grupos e o trabalho alienante de executivo dono de empresa…  

Mas, e aquele lance que o Pastinha falou da capoeira: “…é um hábito cortês que se desenvolve dentro da gente… capoeira é uma coisa vagabunda”.  

E aquele negócio de “vadiação”?  

E o negócio da malandragem e da malícia?

Não é pro cara curtir e abrir caminho “nas rachaduras da fachada aparentemente impenetrável da sociedade”?  

O lance é ter tempo pra curtir – numa boa – a vida, o mundo e a capoeira?  

Ou não é?

Quem vai resolver é você.

No entanto, um jovem jogador que olhe em volta à procura de exemplos e de estratégias pra se dar bem; se olhar bem, vai ver que tem umas figurinhas dançando dentro da briga, viajando de montão, se dando muito bem, cheios de amizades, e curtindo até não poder mais – e ele nem tinha reparado neles antes.

Ele vê um Leopoldina, no Rio de Janeiro; um Lua “Rasta”, em Salvador… (518)

Estamos, de certa maneira, em território fronteiriço às “tradições inventadas” de Hobsbawn: cada mestre, na disputa pela hegemonia, inventa sua “tradição” e um discurso com o intuito de legitimar-se, ao mesmo tempo que desqualifica os demais grupos.  E, internamente, para manter seu grupo coeso (apesar da competição entre alunos), inventa o “inimigo externo”.

Por sua vez, os jovens capoeiristas, que pertencem a estes grupos, buscam seus caminhos dentro desta nova estrutura criada nos anos 1950-1975.

Reis nos falou algo semelhante a respeito da desqualificação das maltas cariocas de capoeira (dos 1800s), não só pelo Estado Novo, mas também por mestres como Bimba e Pastinha:

disputa travada em torno da ‘autenticidade’ da capoeira inserida num debate político mais amplo que envolve a construção das identidades regionais e a luta pela hegemonia da cultura negra no país. (519)

No entanto, é necessário não demonizar completamente a minha geração (nascida por volta de 1945) que implementou esta estrutura. Existem muitas tonalidades (e cores) além do preto e do branco:

1. Existe uma grande diferença  entre a estratégia do Estado que “procura instituir uma comunidade nacional”, e a usada pelos jovens mestres que procuram dar uma coesão interna ao grupo.  A do Estado é imposta de cima para baixo, de fora para dentro. Enquanto que a estratégia dos capoeiras está mais perto – veja-se Coutinho (520)* e sua “dialética da tradição” – de uma re-elaboração da tradição.  Tradição como um “operador político capaz  de reelaborar o acervo cultural legado pela história como patrimônio”, na qual é fundamental a “articulação orgânica” entre estes mestres e a própria capoeira.

2. Além de tudo isto, este antagonismo entre academias, e a acirrada competição interna entre alunos, também é parte de um mecanismo para manter a capoeira com características “nômades”, impedindo que uma estrutura “sedentária”, como a do Estado e de nossa sociedade, infiltre-se na capoeira como lemos no Mille Plateaux, de Deleuze e Guattari.

NOTAS:

516 SODRÉ, M. Op. cit., 1999, pp. 50-51.

517 PAIVA, Raquel. Op.cit., 1998, p.77.

517a SODRÉ, M. As estratégias sensíveis. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. Pp. 73-79.

517b LANGER, Walter in SODRÉ, ibid., p.74.

517c HEYST, Axel in SODRÉ, ibid., p.73.

517d SLOTERDJIK,Peter in SODRÉ, ibid., p.79.

517e SODRÉ, ibid., p.74.

517f SODRÉ, ibid., p.75.

518 CAPOEIRA, Nestor. Capoeira, galo já cantou. RJ: Record, 1999, pp. 288-291.

519 REIS, Letícia. Op. cit., 1997, pp.106-128.

520 COUTINHO, Eduardo. Op. cit., 1999, pp. 9 e 244.

A DIALÉTICA DA TRADIÇÃO OS NÔMADES E OS SEDENTÁRIOS

Então, para finalizar esta parte que enfoca a “hierarquia e a autoridade nas academias de capoeira” (excesso?; ou tradição?), vamos ver:

– a “tradição”, explicada por Eduardo Coutinho;

– os “nômades e sedentários”, explicados por Deleuze e Guattari.

A tradição, do oprimido e do opressor

Para nós, capoeiristas, toda esta discussão sobre o que é a tradição, e que tipos de tradição existem, é muito importante. Muita discussão sobre a “autenticidade” e sobre o “valor” de um mestre, ou de um grupo, ou de um estilo, usa como munição o fato daquele grupo, ou mestre, ou estilo, ser “tradicional” (ou “não ter tradição”).

É preciso que tenhamos os olhos bem abertos pois existem “usos” diferentes para a palavra “tradição”, e alguns destes usos poderiam ser prejudiciais aos capoeiristas e a própria capoeira.

É preciso que tenhamos os olhos bem abertos pois também existem muitas “tradições” que na verdade não são tão antigas como dizem, como nos explicou Hobsbawn no seu famoso livro, As tradições inventadas.  

Eduardo Coutinho, em sua recente tese de doutorado (547) enfoca, ao abordar a obra de Paulinho da Viola, o samba “como uma linguagem toda-vida marginal” (548); mesmo levando em conta os elos com as gravadoras multinacionais, e a influência da mídia no setor musical. Coutinho também estuda diferentes projetos identitários, e estratégias culturais contra-hegemônicas presentes na MPB (música popular brasileira).  

A obra de Paulinho da Viola – cantor/compositor – é compreendida como um projeto de afirmação do samba e como “fala histórica” – expressão de uma cosmovisão popular.  Alguns enfoques de Coutinho certamente vão clarear o emaranhado universo da capoeiragem na contemporaneidade.

Coutinho elabora uma “concepção dialética da tradição” entendida como praxis criadora; tradição viva; articulação orgânica do tipo sujeito/objeto, forma e conteúdo, povo/patrimônio-histórico-cultural.

A tradição é precisamente este processo de superação dialética do senso comum.  Processo de desenvolvimento que elimina, conserva e eleva a nível superior a sabedoria popular. (549)

Isto é bem diferente de pensar que a tradição é a repetição, sem possibilidades de mudança, de determinadas formas do passado.

Coutinho também indaga por quais mecanismos a tradição – como forma contínua no tempo, mas também como praxis criadora – é transmitida de uma geração a outra, e cita Muniz Sodré:

por meio da narrativa …

(e daí o entendimento das diferentes formas narrativas) como manifestações de uma concepção de mundo particular, isto é, como falas da história.  Falas que constroem, a partir de traços que testemunham o passado, uma historicidade conveniente às perspectivas de determinado grupo social e garantem a sua memória coletiva…  

Diferentemente da comunicação dialogal – a comunicação no espaço, com emissor e receptor presentes -, a comunicação intemporal constituiu, portanto, um processo em que o sujeito histórico, a um tempo emissor e receptor, responde às gerações futuras as questões propostas pelas gerações passadas. (550)

Pensada “como um processo objetivo em que o legado cultural é reelaborado pelo sujeito” (551) na perspectiva de uma classe social que, desta maneira, impõe à sociedade sua visão de mundo; isto “nos permite entender a tradição como um processo de construção de hegemonia” (552).*  E assim:

podemos falar em tradições hegemônicas, que reafirmam a visão do mundo das camadas dominantes, e em tradições contra-hegemônicas, que reconstroem a história na perspectiva das classes subalternas…

(a cultura dominante) tende à unidade, à organicidade e à coerência, enquanto que aquela (cultura popular) é desagregada, contraditória, anacrônica, ideologicamente servil e caoticamente estratificada. (553)

Existiria, em oposição a “concepção dialética da tradição” entendida como praxis criadora (de Coutinho), uma “concepção metafísica da tradição”: quando Macunaíma recupera a pedra Muiraquitã, nos conta Coutinho, “não encontra nela o caráter – a identidade – de seu povo, mas tão-somente um objeto, uma tradição petrificada, uma cultura morta” (554). Esta “cultura morta” seria o resultado de uma “concepção metafísica da tradição”.

A “concepção metafísica da tradição” seria uma tendência conservadora presente em várias áreas (senso comun, ciência, religião, política, etc.), que abstrai a cultura de seu processo histórico e desconsidera o papel ativo do sujeito na reconstrução dos signos do passado. E poderia ser:

– objetivista: que considera o legado da tradição como uma espécie de dom divino revelado no início dos tempos e reproduzido de maneira passiva; “tradicionalismo” como tendência política;

– ou subjetivista: a cultura como sujeito, “espírito do povo”; “culturalismo” como tendência científica; todos membros de uma sociedade arcaica participariam de uma cultura única, negligenciando a existência de “forças antagônicas, isto é, de conflito” [555] dentro dos grupos que receberam aquela tradição como legado.  

Este enfoque, expresso “no chamado ‘discurso da autenticidade’, possui grande afinidade com os discursos mitológicos e religiosos” (556).

Neste contexto, e citando Mariátegui, Coutinho desvincula “a tradição dos oprimidos do tradicionalismo conservador” (557).  

Este tradicionalismo conservador – cujos fundamentos filosóficos são natureza e história; ou como queria Burke, “uma ordem natural, estabelecida por Deus, consolidada pela experiência humana” (558) – poderia ser pensado como uma espécie de formalismo que se manifesta também de duas maneiras:

o apego a uma forma cujo conteúdo, superado pelo desenvolvimento histórico, corresponde aos interesses de uma classe que sobrevive ao seu destino (Burke, Maistre, Bonald)…  

(e/ou) como apropriação, por determinado grupo social, com a intenção de legitimar novos conteúdos (a “invenção das tradições” de Hobsbawn)  …  

Em ambos os casos, trata-se, nos termos de Marx, de uma farsa… Marx escreveu que os fatos e personagens de grande importancia na história ocorrem duas vezes: a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. (559)

Coutinho observa que “o tradicionalismo tem sido utilizado como um ‘artefato reinterpretativo’ de conservação das antigas relações de poder” e cita Sodré:  

os colonizadores europeus têm sido grandes fabricantes de ‘tradições étnicas’ no chamado Terceiro Mundo, com vistas a uma melhor administração de contradições e conflitos. (560)

Enquanto tendência, o tradicionalismo conservador seria “um fenômeno ideológico inerente, em princípio, a todos os regimes em que vige a propriedade privada de produção”. (561)

Vemos então os diferentes usos que se pode fazer do conceito de tradição dentro do universo da capoeira:

– alguns podem nos fortalecer como capoeiristas, inseridos no nosso tempo, mas ligados fortemente aos capoeiristas do passado;

– mas, outras vezes, o conceito de tradição é usado descaradamente por aqueles (de dentro e de fora do mundo da capoeira) que querem nos oprimir e dominar.

Felizmente em casa de malandro, vagabundo não pede emprego.  

NOTAS:

547 COUTINHO, E. Op. cit., 1999.

548 Ibidem, p. 245.

549 Ibidem, p.52

550 Ibidem, p.53-55.

551 Ibidem, p.48.

552 Ibidem, p.48.

553 Ibidem, p. 49-50.

554 Ibidem, p. 1.

555 Ibidem, p. 45.

556 Ibidem, p. 27.

557 Ibidem, p. 14.

558 Ibidem, p. 34.

559 Ibidem, p. 18.

560 Ibidem, p. 25.

561 Ibidem, p. 32.

OS NÔMADES E OS SEDENTÁRIOS: UMA MÁQUINA DE GUERRA URBANA BRASILEIRA

Apresentação

No presente capítulo, vamos ver até que ponto o “Estado” (Brasil Colônia, Império, República, Estado Novo, Golpe de 1964, democracia após 1984) fagocitou a capoeira, interiorizando esta máquina de guerra urbana brasileira, tal qual acontece quando o Estado se apodera de uma máquina de guerra nômade transformando-a num exército.

Vamos também enfocar:

– a diferença entre velocidade e movimento;

– como a pressa tecnológica e a vertigem do movimento podem vir associadas a violento conservadorismo e racismo;

– vamos estudar a possibilidade de usos da velocidade diversos dos da cultura hegemônica, e a possibilidade de criar uma máquina de guerra diferente da utilizada pelo Estado;

– vamos investigar a possibilidade de processos de singularização em locais específicos a partir das forças dominantes; uma interferência local (micro) que poderia afetar o macro.

Pano-de-fundo

Como pano-de-fundo temos a hipótese de uma produção de subjetividade, através da mídia, mais profunda que supõe o pensamento marxista, afetando nosso desejo – uma influência ao nível molecular -: os afetos e desejos devem fluir de tal maneira que o capital possa também fluir pelos canais característicos do capitalismo tecnoburocrático.

Como pano-de-fundo temos também a hipótese que mais importante que a mensagem veiculada pela mídia; e que  mais importante que o uso (“positivo”, “negativo”, “frívolo”, “pornográfico”, “pesquisa”, “cultural”, etc.) que fazemos do computador e da internet; na verdade, o mais imporatante é o grande número de horas de vida no mundo “real” que foi substiuído por uma vida no mundo “virtual”, algo que certamente pode causar modificações no físico, mental, e espiritual dos indivíduos, e da sociedade como um todo.

O estado contemporâneo no Brasil

Entre nós a expansão da TV (a partir da década de 1950) fez com que a idéia de integração nacional (útil e operante durante a ditadura militar de 1964-1984) seja uma noção básica até hoje (738). Isto acontece tanto na área da política, quanto no discurso de alguns capoeiristas quando falam especificamente de capoeira.

O “nacional” (um conjunto de estereótipos produtores da subjetividade capitalista) atualizaria ou desalienaria os sistemas regionais e autóctones; não menos que o “internacional” (americano, etc.) que nos atinge.

Este “internacional” consiste de fatos de civilização com grande poder de propagação, e mínima capacidade de entrar em contato com o que lhes é estranho (tentendo a neutralizar esta estranheza).

Esta “integração  nacional” almejada, e em parte obtida, é homogeinezante e avessa à diferença, semelhante as cidades “car oriented” norte-americanas. Os costumes locais são levados em conta somente depois de terem sido domesticados e convertidos.

E aqui a questão se complica, pois não se trata de opor o  “regional” a este “nacional” (ou “internacional”) das mídias. Sistemas locais também  podem  ser fortemente domesticadores de singularidades. Existe um horror à diferença que pode ser cultivado em correntes locais, tradicionalistas, preservadoras, que aparentemente se oporiam à destradicionalização da era das transmissões no tempo (TV, radio, etc.).

Trata-se, antes, de observar, tanto numa sociedade, como também para estes fenômenos, se funcionam na direção da promoção de estereótipo, ou de subjetividades normalizadas (seja qual for a extensão que elas cobrem: a região, um país, um conjunto de nações); ou se, ao contrário, ali é possível a singularização, a conexão com o  estranho em algum grau.

Esta mesma análise pode ser feita ao universo da capoeira dos 2000s.

A “integração nacional” é aquela exercida pelos mega-grupos, uns 5 ou 10, que fagocitam os grupos menores; ou aqueles mestres que se empenham em fortificar a Confederação Brasileira de Capoeira.

O “internacional” são os mesmos “fatos de civilização com grande poder de propagação”, descritos mais acima, e que permeiam toda a sociedade incluindo a capoeira.

E semelhante à descrição de Caiafa, na capoeira também encontramos pequenos grupos – “correntes locais, tradicionalistas, preservadoras, que aparentemente se oporiam à destradicionalização da era das transmissões no tempo” -, mas que, na verdade “podem  ser fortemente domesticadores de singularidades e têm horror à diferença”.  

Então, também na capoeira, trata-se de observar quais os mestres e grupos que funcionam na direção da promoção de estereótipo, ou de subjetividades normalizadas ; ou se, ao contrário, ali é possível a singularização.

Não será afirmando um passado pré-mídia que se deflagrará essa resistência.

Viu-se já, como o conservadorismo típico dos vetores áudio-visuais reutiliza a tradição que eles eliminam em seu caminho: engendram dispositivos normalizadores homólogos àqueles que desapareceram, já atualizados para o capitalismo contemporâneo.

Trata-se de não se furtar à inevitável velocidade da era das transmissões no tempo, mas produzir a partir daí outros efeitos.  Lembrando sempre que o Estado não é onipotente: falhas nos esquemas de imposição de sua hegemonia ocorrem e produzem efeitos nem previstos nem desejados.

A marginalidade, o samba, a capoeira

Vimos,  na capoeira carioca do  fim dos 1800s, sua formação em bandos e maltas típicos à máquina-de-guerra urbana. Note-se que esta capoeira carioca, apesar de extinta pela perseguição policial, vai enxamear o imaginário e a música popular carioca com a figura do Malandro, a partir dos 1920s-1930s.

Logo a seguir vemos que a repressão do Estado  Novo, de Vargas, à capoeira da Bahia, e ao samba carioca que exalta o malandro, não será policialesca; será de outra espécie.

Vejamos o que nos diz Deleuze a este respeito.

Os anéis da serpente

Tivemos as “societes de souveraineté: prélever plutôt qu’organizer la production”; decidir sobre a morte, mais do que gerar a vida (739).

Napoleão foi um ponto de conversão deste modelo para o das “sociedades repressivas”, s.XVIII e XIX, com apogeu no começo do s.XX – mesma época do apogeu da marginalidade na capoeira -, que se caracterizavam pelos locais de “encarceramento”.  O indivíduo não cessava de passar de um universo fechado a outro: família, escola, serviço militar, fábrica, de vez em quando o hospital.  Eventualmente, a prisão – o lugar de encarceramento por excelência.

A partir da II Guerra Mundial começa uma crise generalizada dos locais de encarceramento, e novas forças – formas de controle ultra-rápidas ao ar livre – começam a se manifestar: uma “sociedade de controle”. Aí entram evidentemente a televisão com seus valores (estereotipos, consumo, etc.), uma poderosa ferramenta de uma “segunda pedagogia” que “faz a cabeça das pessoas”; e, até mesmo o computador e a internet, que podem roubar muitas horas “da vida real” transferindo-as para a “vida virtual”.

Não se trata de perguntar qual regime é pior, mas, sim, procurar novas armas para combatê-los.

Na nossa atual “sociedade de controle”:

– as massas são encaradas como banco de dados;

– o dinheiro=ouro, transformou-se em câmbio variável;

– o homem, um produtor descontínuo de energia, agora funciona num regime ondulatório de produção constante (telefone celular, etc.);

– a produção é relegada ao  Terceiro Mundo (agora chamados de “Países Periféricos”), pois o que interessa vender são serviços, e o que interessa comprar são ações.   

A “toupeira” das sociedades de lugares fechados transformou-se na “serpente” da atual sociedade de controle.  Tanto no regime de dominação, quanto na nossa maneira de viver e de nos relacionarmos com os outros.

Não se trata, aqui, de uma evolução tecnológica, mas uma mutação do capitalismo.  Nós estamos assistindo ao começo de algo novo: a instalação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação, e os anéis da serpente podem ser mais perigosos que os buracos da toupeira.

O espaço liso, e o espaço estriado

Deleuze e Guattari (740) dizem que as máquinas-de-guerra nômades são as famílias ou linhagens nômades, mais o esprit de corps.  As famílias existem como vetores do bando, e não como a célula base do Estado (quando falamos “Estado”, queremos dizer um país, uma sociedade sedentária, que pode ser capitalista ou comunista ou socialista ou uma ditadura).

Vamos mostrar como podemos considerar a capoeira como uma “estrutura nômade”, onde os grupos (ou associações, ou academias) são os vetores, e o “esprit de corps” é a malícia.

Achamos interessante pensar os grupos, ou academias de capoeira, como o equivalente destas “famílias nômades” (as máquinas de guerra nômades, os vetores do bando), para entender melhor algumas coisas que acontecem e tornam a acontecer dentro da capoeira; entre os grupos de capoeira; e dentro de cada grupo de capoeira.

E algumas características que pareciam “negativas”, subitamente são entendidas como dispositivos que ajudam a capoeira a manter sua estrutura (nômade) face às pressões do Estado, da Sociedade, e do Sistema (todos eles, sedentários).

E, por outro lado,  certos discursos que, a primeira vista, parecem “positivos” e racionais, mostram sua real face perversa, ao serem examinados pela ótica nômade.

A capoeira como  uma estrutura “nômade”

As “famílias nômades” se reúnem, se dividem, e se reúnem novamente em outras configurações, conforme os lances que estão rolando dentro da família (brigas pessoais ou de poder, etc.), e fora da família (lances políticos e econômicos da conjuntura externa, etc.).

Algo muito similar ocorre na capoeira. Mas não somente na capoeira; encontramos uma estrutura semelhante entre as gangues que dominam o tráfico de drogas do Rio de Janeiro, entre as bandas de rockn’roll, entre as troupes dos circos que correm o Brasil e o mundo, entre os músicos de jazz, etc. Todos estes cenários, e muitos outros do nosso mundo contemporâneo, funcionam com uma estrutura nômade:  

1. Os nômades não têm a mesma relação, nem a mesma divisão de trabalho que o Estado.

Além disto, na ciência – arte e também técnica -, não existe a dualidade “forma e matéria”.

A capoeira, por sua vez, é denominada carinhosamente de “vadiação” (o anti-trabalho) por seus praticantes.  Sendo dança-luta-jogo-ritual (arte e também técnica), explode dualidades existentes em nossa sociedade.

2. O espaço sedentário é “estriado” (caminhos e muros). Na capoeira atual, dentro das academias, temos os treinamentos repetitivos/mecânicos e a metodologia de ensino, que criam clichês de movimentação e determinam o que “pode” e “não pode” fazer (caminhos e muros).

Em oposição, o espaço nômade é “liso” (o deserto); semelhante ao jogo propriamente dito (estrutura diversa da academia), onde não há “muros”.

Além disto, de certa maneira, o espaço nômade “liso” (o deserto) é semelhante ao método de ensino tradicional, feito intuitiva e organicamente através da observação dos jogos dos outros, com raras dicas dadas pelo mestre ou por jogadores mais antigos, o que favorecia a singularização dos estilos pessoais. A capoeira, anteriormente, manifestava-se principalmente em espaços abertos, rodas-de-rua no Mercado Modelo e nas festas de largo da Bahia; espaço aberto que se interiorizou com o advento das academias.

Então, quanto ao espaço, “liso” ou “estriado”, vemos que a capoeira propriamente dita se aproxima dos “nômades”; mas o ensino nas academias já apresenta características “sedentárias”.

3. O trajeto nômade distribui os homens em espaços abertos (quando estão acampando ou andando, p.ex., de camelo no deserto).

Isto também é típico da capoeira (e diverso da academia de capoeira).   

Em oposição, o caminho sedentário distribui os homens em espaços fechados, assinalando a cada um sua parte (sua casa, seu emprego, etc.), regrando a comunicação entre eles (quem tem grana só se dá com outros que também têm grana).   

Na academia, de forma similar, foi criada uma “graduação” para que cada um também soubesse qual era a “sua parte” (semelhante às casas, e aos empregos dos sedentários). A graduação do aluno é determinada pelo mestre e equivale a um tempo/esforço/dedicação do aluno: trabalho do tipo concebido pelo Estado Sedentário.  A graduação também rege a “comunicação entre os jogadores”: antes do jogo começar, o aluno já sabe que está “inferiorizado”, ou não, devido a graduação de ambos.

Aqui, vemos novamente o jogo de capoeira com características “nômades”; mas a academia apresentando características típicas do “sistema sedentário”.

4. O nômade tem um território e segue trajetos.  Vai de um ponto ao outro. Mas embora os pontos determinem o trajeto (um poço no deserto, uma cidade onde compra determinadas mercadorias para vender em outra cidade, etc.), o importante é o trajeto; o importante é estar “on the road”.

Em oposição, o sedentário parte de um ponto com a finalidade específica de chegar ao outro: o importante são os pontos de partida/chegada (as viagens de avião, etc.); o importante é voltar rapidamente para a sua própria casa com sua televisão, e a sua cidade onde estão o escritório e o shopping center.

No esporte, p.ex., algo típico da nossa sociedade contemporânea (sedentária), o que realmente interessa é o “placar final” (3 x 1, p.ex.); ou seja, o final é mais importante que o trajeto. Em oposição, na capoeira (nômade) o que interessa é o decorrer do jogo, é o “trajeto”, uma vez que não mexiste uma “contagem de pontos”.    

A capoeira tem mais a ver com a visão nômade:  

Mandinga de escravo em ânsia de liberdade.  

Seu princípio não tem método;

seu fim é inconcebível ao mais sábio dos mestres

(mestre Pastinha)   

O fim “é inconcebível”.

Mas com a academização; a absorção de um outro tipo de praticante vindo da classe média; e também pela ação de jogadores dos estilos tradicionais que adotaram valores do Estado (seja por terem sido seduzidos, seja por terem maiores vantagens, seja por estarem em sintonia com estas novidades), a academia de capoeira, e em consequência, a própria capoeira, começou a incorporar valores típicos do Estado, valores típicos dos sedentários.   

O Estado tentou constantemente “aprisionar” e transformar a capoeira – “máquina de guerra urbana brasileira” -, de maneira similar à transformação da “máquina de guerra nômade” (aquele monte de maluco, montado a cavalo, brandindo suas espadas, que a gente vê nos filmes do deserto), em um “exército” disciplinado (que lutaria pelo Estado).

A capoeira (através das acões dos mestres), por sua vez, entrou (até certo ponto) neste jogo de transformação, tentando ganhar mais espaço, mais reconhecimento, status e dinheiro.

– Vimos isto nos 1800s, com o relacionamento entre as maltas cariocas e políticos poderosos;

– Vimos a mesma coisa a partir de 1930, com Getúlio Vargas permitindo uma “capoeira vigiada”, o que é aceito e levado  avante por muitos mestres – Bimba, Pastinha, etc. -, que vai resultar, justamente na “academia de capoeira” que, como estamos vendo, insere valores sedentários dentro da estrutura nômade da capoeira.

– Vimos, ainda, como finalmente, a partir da década de 1960 – época da ditadura militar de 1964 a 1984 -, temos o trabalho de capoeiristas baianos (Suassuna, Acordeon, etc.) em São Paulo, e do Grupo  Senzala no Rio;  a sociedade começa a aceitar a capoeira que, a esta altura dos acontecimentos, além de se travestir com alguns valores sedentários a fim de seduzir a sociedade, mas na verdade, já adotou estes valores, de fato, dentro das academias de angola e regional.  

Existe, no texto acima, uma profunda crítica ao movimento da “academização” da capoeira.

Mas é bom lembrar que foi este movimento das “academias” que salvou a capoeira da extinção. Já vimos que as “primas-irmãs” do Atlântico Negro, como a ladjá (Martinica) e o moringue (Ilhas Reunião), onde não ocorreu a passagem de “cultura popular” para “academia”; já vimos que estas “primas-irmãs” se extinguiram nos tempos atuais (a partir aproximadamente de 1930 ou 1950).

Então o que nos interessa (aos capoeiristas) não é a radicalidade; mas sim a malícia onde, semelhante ao que ocorre no Jogo dentro da roda, jogamos “contra” e também “com” o  oponente.

Reprodução e velocidade

Ora, vimos como até o s.XIX a sociedade estava fundada no freio (muralhas, leis).

Com a Revolução Industrial ou dos Transportes (Dromocrática) vem, não só a possibilidade de multiplicar objetos similares, mas sobretudo um meio de fabricar velocidade (741):

Idade do Freio -> acelerador*

Hierarquia da riqueza -> velocidade

Supremacia da velocidade = supremacia militar

Por sua vez, a avalanche de técnicas de reprodução comprometeu a genuidade da obra.  A “aura” (expressão de autenticidade, Benjamim) é uma realidade longínqüa (742) ; as técnicas de reprodução tendem a neutralizar qualquer profundidade – a trazer para perto (Benjamim), ou chegar logo (Virilio), uma questão de velocidade.

De forma similar, vemos nesta atual capoeira, a tendência de “reprodução” através de um método de ensino  extremamente rígido e normatizado, nos diferentes estilos; não há espaço para o iniciante desenvolver seu lance pessoal até poder exprimir a sua “aura de autenticidade”.

Vemos também como se busca a racionalidade (e não o lúdico), a eficácia (e não o artístico), a objetividade (e não a curtição), em todos os estilos. No entanto, os atuais estilos construiram discursos para disfarçar a sua natureza anti-capoeira, a sua dureza, mecanicidade, e falta de suíngue: a capoeira angola tem um discurso que prega, justamente, o lúdico, o artístico, e a curtição; e a capoeira regional-senzala já tem até eventos denominados “Vadiação”!

Seria bom lembrar que há diferentes modos de uso da velocidade, diz Caiafa, ao contrário do que nos ensina Virilio (743):

– velocidade de controle do Estado (Goebels);

– velocidade de tendência nomádica (ativismo urbano);

– velocidade de organizações mundiais (transnacionais, Máfia, etc.).

Movimento e velocidade são diferentes.

O movimento vai de um ponto ao outro (objetivo e racional).

A velocidade: as partes de um corpo enchem um espaço liso (que poderia ser a roda de capoeira) à maneira de um turbilhão.  

Quando o Estado se apropria da máquina-de-guerra, transformando-a em exército, ele quebra este movimento turbilhonante através da “fortaleza” (a capoeira “presa ” dentro das academias) e da “parada militar” (a homogeneização dos movimentos através uma metodologia rígida de ensino que não permite a expressão das singularidades).

Neste sentido – expressão das singularidades -, vemos uma positiva contribuição da capoeira regional, ao absorver e incorporar novos elementos (me refiro àqueles, como acrobacias bem encaixadas, que não são alienígenas ao espírito do Jogo), tornando o Jogo mais abrangente.

O lento e o rápido não são graus quantitativos do movimento, mas duas qualidades diferente de movimento.

Na capoeira já vimos isto claramente: o jogo no “toque” (ritmo de berimbau) lento, é completamente diverso do jogo no toque rápido.  Não somente em relação à velocidade dos movimentos, mas principalmente à própria essência do jogo; maneira dos jogadores se relacionarem entre si.   

Linhas e segmentos

Deleuze e Guattari (744) nos dizem que o homem é um animal “segmentaire”; e que a vida é segmentarizada espacial e socialmente de maneira binária, linear e circular.

A segmentarização primitiva é relativamente flexível, molecular, com um código baseado nas linhagens e no território – rizoma -; em oposição a uma segmentação dura, molar, imposta pelo Estado – árvore. O “rizoma” são como o crescimento dos cogumelos, ou de um recife no mar,e a primeira vista têm um crescimento e uma estrutura caóticos. A “árvore” têm um troco principal (o presidente), de onde partem alguns galhos (os ministros), e de cada galho (o ministro da guerra, p.ex.) temos outros (generais, oficiais), mais finos, e finalmente as fôlhas (soldados).

No entanto a segmentarização flexível ou molecular (rizoma), e a dura ou molar (árvore), apesar de distintas, são inseparáveis: as sociedades primitivas possuem núcleos duros (que elas conjuram); e as sociedades modernas possuem núcleos flexíveis formando um tecido onde os segmentos duros se prendem.

A Regional de Bimba, a Angola de Pastinha, a ação do Grupo Senzala e dos mestres baianos de São Paulo (a partir da década de 1960), e as Federações de Capoeira (a partir dos 1970s), são os “segmentos duros” dentro do universo arcaico e flexível da capoeiragem.

Deleuze e Guattari também nos afirmam que quando há uma reterritorialização, esta é operada por aquele – como a burguesia na Revolução Francesa – que é o mais desterritorializado, e que vai sobrecodificar os outros segmentos.  Este ponto de vista nos aponta, justamente o caso do Grupo Senzala, e dos mestres baianos de São Paulo (1960s em diante), e isto explicaria a ascenção de ambos segmentos.

A Senzala não tinha um mestre, era auto-didata; era (melhor diria “éramos”, pois participei da Senzala desde 1968 até 1992) formado por garotões da classe média da zona sul do Rio, completamente alheios à cultura afro-brasileira; e havíamos recebido a porrada dos militares de 64, da tecnoburocracia, e da televisão, em plena adolescência. Ou seja: era um grupo completamente desterritorializado.

Os (então) jovens mestres baianos de Sampa, como Acordeon e Suassuna e outros, tinham um histórico diverso: Acordeon tinha sido discípulo de mestre Bimba em Salvador, e Suassuna de Paizinho em Itabuna (Bahia); mas mudaram-se para São Paulo, enfrentaram uma outra realidade, com outras incríveis oportunidades e exigências, e neste processo também romperam os elos que os prendiam a um determinado contexto – desterritorialização.

Na sequência, década de 1960, acontece a reterritorialização da capoeira liderado por estes dois “segmentos duros” – Senzala no Rio, baianos em São Paulo -, um processo que já havia sido iniciado por Bimba e Pastinha e outros.

A “visão evolucionista” x Clastres

Então, as “academias de capoeira”, por um lado, foram as que salvaram a capoeira da extinção. Sabemos que outros “jogos de combate” do Atlântico Negro, que, semelhante à capoeira, também foram criações dos africanos na diáspora – como a ladja, e o moringue, p.ex. -, tinham visibilidade e expressão em 1900 e, até mesmo, nas décadas seguintes. Mas estas outras manifestações negras não tiveram a sorte de ter um mestre Bimba por volta de 1930, e todos os outros que vieram depois; e foram murchando, face as novidades e a nova mentalidade dos 1900s, até desaparecerem.

As academias de capoeira, por um lado, salvaram a capoeira da extinção – tudo bem. Mas, por outro lado, introduziram na capoeira, através do ensino nas academias, “valores sedentários”, valores do Estado, que são incompatíveis com a capoeira (de estrutura “nômade”).

Felizmente, semelhante às sociedades arcaicas, a capoeira possui meios para (tentar) conjurar, como nos explicam Deleuze e Guattari em relação às sociedades nômades (745), a formação de um dispositivo semelhante ao do Estado (sedentário), dentro de sua “estrutura capoeirística” (nômade).

Muitos capoeiristas lamentam a “falta de união entre os mestres”.  O dia em que a capoeira “estiver unida”, aí sim, ela assumiria o seu “lugar de direito”.

Estas afirmações raramente são contestadas.

No entanto, se apresentarmos um outro enfoque, o enfoque “nômade”; onde a “guerra”, a “traição”, a “desunião”, etc., funcionam como dispositivos de conjuração (contra a instalação do sedentarismo dentro da capoeira); creio que isto será de grande utilidade.  Pois a  pretensa necessidade de “união” na capoeira, é um argumento usado por quem quer uma capoeira subordinada a um “órgão central” (estrutura tipicamente sedentária, como o exército em relação ao Ministro da Guerra); seja este “orgão central a Confederação Brasileira de Capoeira, ou então algum mega-grupo (ou um conselho formado pelos mestres de uns poucos mega-grupos).

É básico termos em mente o que realmente são estas instituições “oficiais” (como a Confederação Brasileira de Capoeira), ou “centrais” (como os mega-grupos de capoeira que querem engolir, e regrar sobre os grupos pequenos). É básico termos em mente como eles tentam se apropriar de uma estrutura nômade (como a capoeira) e, após algumas “adaptações”, utilizam-na contra os próprios “nômades” originais (os pequenos grupos independentes).  

Clastres (746) duvida da “visão evolucionista”:

– incialmente teríamos as sociedades primitivas ou arcaicas, ou seja, as sociedades nômades;

– em seguida, se seguiria um desenvolvimento econômico (o Estado conquistando através do comércio), ou até mesmo político (o Estado vencendo pela guerra);

– finalmente teríamos a “evolução” daquela sociedade nômade que, então, se transforma num novo Estado (sedentário), cheio de ordem e progresso.

Esta “visão evolucionista” também é compartilhada, e seduz vários segmentos da capoeira:

– inicialmente tivemos a capoeira dos escravos negros, seguida pela dos marginais;

– depois começa o período das academias, por volta de 1930;

– e, agora, finalmente deveríamos “evoluir”, organizar a capoeira. Seja de forma esportiva sob tutela de uma Federação Nacional; ou sob a tutela de um (ou alguns) megagrupo de capoeira, que iria ditar as regras; para, então, termos “muita ordem e progresso”.

Na “visão evolucionista”, o Estado (sistema sedentário) seria um estágio posterior, e mais evoluído, ao das sociedades primitivas ou arcaicas.

O Estado – p.ex., as antigas cidades forticadas -, no passado, existiu; fato atestado pelas descobertas arqueológicas. Mas existiu em relação, e em oposição, a um “exterior” que, na verdade, definia o Estado.

Neste “exterior” encontravam-se as tribos, as sociedades nômades.  

Clastres, que discorda desta “visão evolucionista”, pois pensa que as sociedades nômades têm tenta sofisticação (e as vezes, em determinados casos, funcionam melhor) quanto as sedentárias. Clastres indaga se estas sociedades nômades não teriam dispositivos capazes de conjurar o aparecimento da estrutura do Estado (que, em teoria, as sociedades nômades “não comprenderiam”), dentro de suas próprias tribos.

Estes dispositivos seriam:

1. A chefia

2. A guerra

3. O guerreiro nômade

4. A traição

5. A indisciplina do guerreiro

É importante notar que o Estado pode ter um número imenso de cidadãos. E, tendo em vista que as pessoas de um mesmo país não se conhecem todas mutuamente, existem, p.ex., leis, juízes, advogados, para julgar as ações dos que agiram possivelmente “incorretamente”.

As Sociedades Nômades, ao contrário, são sempre formados de vários grupos muito menores, independentes, onde todos (dentro de um grupo) se conhecem. Se alguém age incorretamente dentro do grupo, todos sabem, e o chefe (ou um pequeno grupo de “mais velhos”) pode tomar a decisão “correta” para o grupo.

Como veremos, muitos dispositivos para impedir o aparecimento da estrutura do Estado dentro da estrutura nômade, visam fraturar um grupo quando ele cresce demais.

A “estrutura nômade”, da qual falamos – como a dos bandos e maltas de capoeira, dos 1800s -, obedecem ao esquema rizomático, (como  os corais, ou as colônias de cogumelos); em oposição ao tipo arborescente (um tronco do qual brotam os galhos) que caracteriza o Estado (um presidente, os ministros, etc.).

Apesar de, hoje em dia, existirem muitos alunos que sempre se mantiveram no seu próprio grupo, e de alunos que se “formam mestre” e começam a dar aulas dentro de seu próprio grupo – esquema arborescente -, tornando-se mais um “galho” daquela “árvore”, e aumentando o número de alunos; isto não é uma regra inflexível e geral.

A saída de “alunos graduados”, ou de professores recém-formados, para abrirem seus próprios grupos, acontece com muita frequência. E isto é sempre sentido como uma perda, ou até mesmo como uma “traição”, pelo mestre daquele grupo.   

No entanto esta, “dissipação de energia” (em relação à academia original), do ponto de vista global da capoeira, é a própria essência de revitalização da Capoeira.

Pois o novo grupo pode até ter um estilo de jogo muito semelhante à academia de onde veio; mas, ainda assim, provavelmente terá uma nova mentalidade, diversa da mentalidade de seu antigo mestre e, desta forma vai atrair uma nova “clientela” para a capoeira.

Mas o lucro não é somente “mais alunos para a capoeira”. A verdade é que os alunos mais antigos jamais conseguiram ter um briho próprio total, pois ainda estavam sob a autoridade de um mestre, que era quem tomava as decisões, etc. Mas o novo grupo permite o aparecimento de novos valores, de novos mestres, com outras ideologias, e sabemos hoje em dia, com os ensinamentos da ecologia, que a diversidade é um fator essencial para a sobrevivência.

Este é um exemplo de olhar a capoeira pela ótica nômade, e como isto pode nos trazer idéias surpreendentes.

Atratores estranhos dos estados caóticos

E, aqui, talvez pudéssemos falar dos “atratores estranhos dos estados caóticos”.

Não, não se trata de filme de ficção científica; trata-se da “Teoria do Caos”, um importante desdobramento da Física moderna.

Na verdade, trata-se de um afastamento da Física dos 1800s, onde a entropia era a medida da desorganização. Este ponto de vista, da entropia, já tinha derrubado a anterior Teoria de Newton, que não definia a irreversibilidade (e assim, em teoria, uma chícara que cai no chão poderia voltar, inteira, para cima da mesa). Mas, apesar da evolução em relação a Newton, a entropia não conseguia mais resolver certos problemas que foram pintando nos 1900s. Aí então, temos entre outras, a Teoria da Relatividade, de Albert Enstein; a Física Quântica; e a Teoria do Caos com seus “atratores”.

Saindo do mundo da Física, para o mundo do dia-a-dia, poderíamos pensar que estes “atratores estranhos dos estados caóticos” poderiam atuar, atraindo os jovens professores para uma ação – abandonar seu mestre, e abrir a própria academia -, que é um desgaste para a sua academia de origem. Mas esta desorganização local, como está dito na “Teoria do Caos”, propicia uma organização geral.

Os “atratores estranhos dos estados caóticos” são estruturas dissipativas; mas o que dissipa as energias. também é vida.

O modelo de equilíbrio não vigora absoluto. O ser vivo e o clima não tendem ao equilíbrio. Não se trata de imaginar uma coisa linear, de pequenos desgastes que levam, finalmente à morte. Trata-se de outra coisa: de pequenas “desorganizações locais” que organizam o geral.

Os “atratores estranhos dos estados caóticos” são (algo misterioso) que, justamente, agenciam estas pequenas “desorganizações locais”

Dispositivos para conjurar o Estado

Mas, deixando de lado a Física moderna e os “atratores estranhos dos estados caóticos”, vamos ver, então, quais seriam os “dispositivos de conjuração” que evitam o aparecimento da estrutura sedentária dentro da estrutura nômade:  

1. A chefia

Estas sociedades nômades tem chefes. O Estado, contudo, não se define pela existência de chefes, e sim pela perpetuação dos órgãos de poder.  A preocupação do Estado é “conservar”.  

Os chefes primitivos têm, no seu prestígio pessoal, a única arma instituída; a persuação é seu único meio; sua regra é o pressentimento dos desejos do grupo.

Isto é semelhante ao que se passava com as maltas cariocas de capoeira dos 1800s; e é semelhante ao que se passa com os mestres de capoeira em relação à seu “grupo” ou academia.

Na verdade, em teoria ele poderia fazer qualquer coisa e continuar “mestre”; mas se arriscaria a perder todos seus alunos, ou grande parte deles se não mantiver o prestígio, a persuasão, e a sintonia com o grupo.  

O excesso do chefe primitivo, não raro, é a poligamia; mas o chefe constantemente produz objetos e artefatos para o grupo.

Na capoeira, é o mestre que faz os berimbaus; providencia as “apresentações”; organiza as “rodas-de-rua” e “batizados”, além de dar as aulas.  Além disto, “constrói um social” que estravasa do horário das aulas: aos sábados ou domingos, todo o grupo vai visitar uma outra roda ou participar de um batizado de uma academia “amiga”; vão à festas juntos; os mestres mais liberais, vão tomar cerveja com todo o grupo em algum barzinho que vira o “ponto” daquela rapaziada.

É através deste engajamento, e desta dedicação total, que o mestre “arma” seu grupo, atraí novos alunos e cresce.  Os que se limitam apenas a dar aulas, mesmo que sejam excelente jogadores e professores, raramente conseguem criar um grupo grande.

No entanto, é comum o professor, ou mestre, de determinado grupo, acabar tranzando com a namorada ou esposa de aluno(s) de seu próprio grupo. A posição de destaque do “mestre” atrai a “inocente pombinha” e, quando isto é descoberto (o que nem sempre acontece), é barraco na certa, em especial se o aluno é um “aluno graduado”.

Acontecimentos como este fazem o grupo se dividir, ou perder um grupo de alunos. Que, como dissemos, é justamente uma das maneiras de manter uma estrutura nômade dentro do grupo (que se crescer demais, vai necessitar de uma estrutura similar a do Estado).

2. A guerra

Através da guerra – estado permanente, disposição guerreira constante -, mesmo que não haja batalha, é conjurado o aparecimento do Estado.

O oposto – etnologia tradicional – da idéia dos grupos em concordância, fazendo laços e trocando mulheres.   

A “guerra”, neste sentido, não é uma troca fracassada, mas fundamental para manter a fragmentação das sociedades arcaicas em “famílias nômades” (em oposição à “unidade do Estado”; e à “unificação” tão almejada e incentivada, na capoeira, pelo Estado e por vários mestres).

Por outro lado, evitando fazer estoques na economia – só se trabalha para comer (na capoeira, a “vadiação”) -, o que parece “falta” é um mecanismo de conjuração.

Vejamos vários contextos na história da capoeira onde é evidente o “estado permanente de ‘guerra’, e disposição guerreira constante”:

a. Na passagem do Brasil Colônia para o Império , uma carta (1821) dirigida ao Ministro da Guerra pedia que os negros capoeiras – que muitas vezes se feriam, o que era economicamente indesejável -, fossem punidos com o açoite no pelourinho em praça pública, coisa que talvez os atemorizasse.

b. Rugendas (1824) relata que o “jogar capuera ou danse de la guerre” – capoeira primitiva de cabeçadas e saltos ao som do atabaque (tambor) -, muita vezes degenerava em conflito sangrento com uso de faca.

c. Na passagem do Brasil Império para a República, as diferentes maltas da capoeira carioca dividiam entre si a geografia da cidade (semelhante ao tráfico de drogas atual); ocupavam as ruas fazendo o “arrastão”, obrigando o comécio a fechar as portas e  aterrorizando às “pessoas de bem”; entravam em choque, verdadeiras batalhas campais urbanas, com saldo de mortos e muitos feridos. Sem falar nas escaramuças entre dois capoeiras de maltas diversas.

d. Em Salvador, os capoeiristas do estilo regional (criado na década de 1930) antagonizavam os angoleiros. Seria um exagero dizer que Bimba incentivava seus alunos (da regional) a esta prática, mas também não se pode dizer que ele os censurava.  

e. Atualmente, é comum a inimizade entre academias, ocorrendo brigas quando elementos de uma encontram os de outra numa roda ou mesmo na rua.  No Rio (aprox. 1990), por exemplo, dois mestres proibiram seus alunos de frequentar a academia do outro: tinha saído até tiro, a plena luz do dia, na zona sul, e isto arriscava “queimar o filme” com propaganda negativa por parte da imprensa.

f. É comum, também – hoje em dia e no passado -, certos mestres incentivarem seus alunos à violência contra outras academias. Apesar de, para “uso externo”, estes mestres veicularem um bonito e convincente discurso sobre a “capoeira arte-ritual, lúdica e filosófica”.

Então vemos, em toda a história da capoeira, estes conflitos que muitos mestres querem extinguir, para torná-la “uma só”; e as energias gastas nestas disputas seriam utilizadas para colocar a capoeira “no lugar que merece”. E é verdade que muitas vezes estas açoes que incentivam a violência; ou a competição excessiva entre capoeiristas, ou entre grupos; extrapola o “estado permanente de ‘guerra’, e disposição guerreira constante” preconizados pelo modelo nômade. E neste caso, o exagero de violência, ou de competividadade, não é benéfico à capoeira; trata-se, na verdade, de um reflexo negativo, da violência que granjeia na sociedade capitalista de nossos dias.

“Capoeira unida!”; um lindo discurso, sem dúvida.

A armadilha deste discurso é a seguinte: quando a capoeira for “uma só”, isto implica em ter uma estrutura semelhante as “oficiais” (e diversa da atual estrura nômade).

E então a capoeira deixará de ser “nômade”, onde cada mestre é chefe de seu grupo (grande ou pequeno); para se tornar “sedentária”, semelhante ao Estado com suas entidades “oficiais”. Todos nós teríamos como chefe, p.ex., a Confederação Brasileira de Capoeira, que seria semelhante a Confederação Brasileira de Futebol (com seus “cartolas”), onde todos sabemos que grassa a corrupção, e o prato principal da agenda não é “fazer o melhor para o grupo” mas, sim, a luta pelo poder e pelo dinheiro.

3. O guerreiro nômade

Por outro lado, o guerreiro nômade – assim como o bom capoeirista que envelhece sem ser chefe de um grupo -, fica preso a um processo de acumulação de façanhas que o leva a uma solidão e morte com prestígio mas sem poder.

Até mesmo os mestres donos de grupo, ao envelhecerem, têm menor número de alunos que seus jovens contra-mestres; mesmo quando o jogo do mestre ainda é melhor, e sua metodologia de ensino muito mais eficiente. Pois a juventude (os alunos recem chegados) se sente atraída pelos jovens jogadores em plena forma física (apesar de colocar respeitosamente uma foto do mestre mais velho na parede).

Isto está em oposição ao Estado, e às sociedades sedentárias, onde os membros de destaque acumulam fortuna e poder; e exercem este poder também na velhice. Além disto, a fortuna pode ser transmitida a seus descendentes, criando uma “divisão em classes” baseada na “propriedade privada” e dinheiro, que pouco depende do valor real dos indivíduos.

4. A traição

Na sociedade nômade, cada guerreiro membro do grupo, é “aparentado” a outros. Em caso de desacordo com o chefe, ele não parte sozinho.

Na capoeira vemos, constantemente, alunos de alto nível se desentenderem com seus mestres, e partindo com alguns amigos “graduados”, e vários iniciantes a eles “aparentados”, para abrir seu próprio grupo independente,  não raro inimigo da academia de onde ele veio.  

5. A indisciplina  do guerreiro

A disciplina é própria do exército, dos soldados, e também do esporte. Muitos mestres almejam e implantam este tipo de disciplina rígida em suas academias, em oposição à própria Capoeira, com sua estrutura de “máquina de guerra nômade” caracterizada pela “indisciplina do guerreiro”.   

a. O guerreiro nômade desrespeita constantemente a hierarquia; pois ele é livre. Daí a iniciativa de criar graduações na capoeira para contrariar esta tendência.

b. O guerreiro nômade usa uma chantagem permanente em relação a abandonar o seu próprio grupo. Na capoeira vemos alunos antigos formando seus próprios grupos ou trocando de academia.

c. Entre os guerreiros nômades, e entre as máquinas de guerra nômades, existe uma preocupação constante com a traição; um grupo que era unido a outro, subitamente adere a outros grupos que eram considerados “inimigos”. Na capoeira temos a “falsidade” como um dos “fundamentos” do próprio jogo.

d. Entre os guerreiros nômades existe um senso de honra extremamente suscetível; qualquer pequena afronta, mesmo que tenha sido sem intenção, pode ocasionar uma resposta, não necessariamente imediata, mas curtida na “falsidade” e na traição.  

Todos estes elementos tendem a “fraturar” um grupo quando ele começa a se tornar grande demais.

Quando um grupo começa a crescer demais e, em consequência, começa a sair do contexto “nômade”, onde todos se conhecem e não são necessários “tribunais de justiça”, nem “imposto de renda”, para que “a justiça seja feita”; então estes “dispositivos”, que acabamos de ver, entram automaticamente em ação.

É claro que o lance da “justiça ser feita” pode ser tão improvável no Estado (sedentário), quanto nos grupos nômades.

No entanto, no Estado é difícil mudar uma estutura injusta. Geralmente a injustiça existe ali há muitas gerações; e é através da injustiça que uma classe rica se perpetua.

Enquanto que no grupo nômade é muito mais fácil, pois a injustiça é resultante da incapacidade daquele chefe específico. E basta partir do grupo com alguns colegas, e fazer um novo grupo; ou matar o chefe.

Mas, enfim, estes são os “dispositivos” que contrariam a formação do (tipo de organização do) Estado dentro da capoeira (com sua estrutura nômade).

Mas temos de entender muito bem o que é A chefia, A guerra, O guerreiro nômade, A traição, e A indisciplina do guerreiro, dentro da sociedade nômade. Isto é extremamnete importante.

Se não tivermos em conta que estas características são diferentes das do Estado, nos arriscamos a ver esta “estrutura nômade” utilizada como legitimação para uma violência e competitividade excessivas dentro da capoeira (já que a “guerra”, p. ex., seria parte do mundo nômade); violência e competitividade excessivas que, na verdade, são típicas do Estado (sedentário).

E poderíamos perguntar: mas qual é a importância de manter uma estrura nômade dentro da capoeira?

Porque não “evoluirmos” para uma estrura sedentária dentro da capoeira?

Obviamente porque, em alguns casos e setores, a estrutura nômade funciona melhor. Vemos como a capoeira se espalhou por todo o mundo justamente porque cada mestre agia (ia para o  exterior, ou não) sem ter de consultar, ou obedecer, um Poder Central.

Além disto, cada mestre pode fazer como quiser dentro de sua própria academia. Isto é maravilhoso para cada um de nós (mestres); e é ótimo para a capoeira pois instala a diversidade (cada grupo reflete a personalidade de seu mestre),

É bom lembrar que só recentemente, com estudos avançados sobre a Ecologia (e outros), a diversidade  assumiu seu real valor (a importância da diversidade das espécies de animais na natureza, etc.). As mentalidades mais tacanhas preferem um modelo mais autoritário (não de diversidade); paternalista (como nas antigas Casas Grandes e Senzalas); centralizado (como nas antigas ditaduras das repúblicas das bananas).

Centros de Poder

Então, apesar de todos estes “dispositivos de conjuração”, existem estruturas  sedentárias dentro da atual  capoeira.

Além deste perigo – captura da máquina-de-guerra pelo Estado -, há um outro: a possibilidade da máquina-de-guerra vencer o Estado; mas mesmo vencedor, adotar os valores e estruturas sedentários.  A integração dos nômades aos Estados conquistados, é um dos perigos aos quais muitos grupos nômades sucumbiram.

Resta ver se o mesmo vai acontecer com a capoeira:

– a partir da década de 1930, Getúlio Vargas permite a prática de uma capoeira “vigiada”; mestre Bimba e outros aproveitam a brecha;

– este movimento se torna mais forte ainda a partir da década de 1960, conquistando um mercado de alunos e um status econômico e social nunca vistos ou sonhados antes;

– para finalmente desembocar na “grande empresa multinacional de capoeira” contemporânea.

Será que a capoeira vai sucumbir ao Estado conquistado (depois de conquistá-lo)?

O fascismo é inseparável dos segmentos moleculares, que se comunicam uns com os outros antes de ressoar num grande fascismo molar.  É fácil ser anti-fascista ao nível molar, sem vermos o fascista molecular que existe em nós.

Talvez esta seja a resposta às perguntas:

– Porque o Estado triunfa?

– Porque as pessoas escolhem uma servidão voluntária?

– Porque muitos capoeiristas estão em sintonia com as “estrias” abertas e oferecidas pelo Estado?

– Porque o desejo de sua propria repressão?

Quanto mais forte é a organização molar, mais ela suscita uma molecularização dos seus elementos (em relação direta ou inversamente proporcional). Cada vez que percebemos uma linha dura segmentarizada bem definida, mais se percebe que ela se prolonga através uma outra forma: um fluxo de quanta. E, cada vez, podemos perceber um “centro de poder” entre os dois: conversão entre a linha e o fluxo; entre os microfascismos moleculares e o facismo molar.

É justamente esta posição de “centro de poder” que as Confederações de Capoeira. e também alguns grupos de capoeira hegemônicos, buscaram; uma colocação entre os grupos de capoeira e o Estado.   

Deleuze e Guattari (747) nos falam também que os “centros de poder” tem três zonas de influência:

1. Zona de poder, em relação a uma linha dura; no caso das Confederações, sua ligação com o Estado.

2. Zona de indiscernibilidade, em relação com sua difusão num tecido micro-físico; ou seja, a possibilidade das Confederações terem uma difusão dentro do universo da capoeiragem, através da filiação dos mestres dos grupos de capoeira às Federações.

3. Zona de impotência, em relação com os fluxos e quantas, que o “centro de poder” pode apenas converter, sem os controlar ou determinar; ou seja, as Federações não podem nem controlar nem determinar os grupos de capoeira, que são formados por alunos que espontaneamente buscam determinado mestre, as Federações podem apenas converter um grupo em “filiado” à Confederação.

É do fundo de sua impotência que o “centro de poder” retira a sua pujança, concluem Deleuze e Guattari; daí sua maldade radical e sua vaidade.

Há, no final das contas, a possibilidade de conjurar a instalação de um aparelho semelhante ao do Estado dentro do universo do Jogo da capoeira?

Como vimos, havia elementos favoráveis e desfavoráveis; mas a verdade é que ao chegarmos nos meados da década de 1980, parecia que o Estado ia definitivamente ganhar o Jogo.  Apesar das Federações e os campeonatos terem perdido terreno , existia uma homogeneização quase total na maneira de jogar;  os mestres da Velha Guarda – Waldemar, Canjiquinha, Caiçaras, Gato, João Pequeno, João Grande – estavam completamente eclipsados.  Neste momento, inesperadamente,os mestres da nova geração voltaram-se na direção da Velha Guarda, conferindo-lhes status, o que acarretou na re-introdução de heterogeneidade e  elementos rituais e lúdicos que aparentemente já estavam perdidos.

A capoeira, fato de civilização com real aptidão para viajar – a partir da década de 1970 ela já havia se estabelecido na Europa e USA – parecia ter, ao menos temporariamente, vencido a parada.

NOTAS:

736 CAIAFA. Fast trips and foreignesses, tese de doutorado, Cornell University, 1991, pp. 109-124; e “Linhas da Cidade”, ECO, publicação da pós-graduação em comunicação e cultura n.2, RJ, ECO-UFRJ, 1992, pp. 53-59.

737 GUATARI. Caosmose. RJ: Ed. 34, 1992, PP.171-172.

738 CAIFA. SP: “velocidade e viagem”, Anuário do LASP, ano 1, v.1, dez 91 a dez. 92, pp. 173-188.

739 DELEUZE. Pourparlers. Paris: Les Ed. de Minuit, 1990, pp. 240-247.

740 DELEUZE e GUATTARI. Mille Plateaux. Paris: Les Ed. de Minuit, 1980, cap. “Nômades e sedentários”.

741 VIRILIO, P. e LOTRINGER, S. Guerra pura. SP: Brasiliense, 1984, p.50.

742 CAIAFA, J. Movimento punk na cidade: a invasão dos bandos sub. RJ: Zahar, 1985, p. 90.

743 CAIAFA. Op. cit., 1991, pp. 20-22.

744 DELEUZE e GUATTARI. Mille Plateaux. Paris: Les Ed. de Minuit, 1980, pp. 253-283.

745 Ibidem, pp. 434-527.

746 Ibidem, pp. 434-527.

747 Ibidem, p.276.

Aqui terminamos a nossa apresentação que enfocou o tema:

Hierarquia e autoridade nas academias de capoeira

Excesso e autoritarismo?

Ou hierarquia justificada pela tradição?

No entanto, para termos uma visão completa de nosso tema é necessário estudar os “vetores” que dinamizaram a atual infra-estrutura da capoeira. Ou seja: precisamos estudar os grupos e mestres que ajudaram a criar o atual sistema de hierarquia e autoridades no período 1970-1990.

AS DÉCADAS DA EXPANSÃO; 1970-1990.

No Brasil, entre 1964 e 1984, abrangendo a maior parte do período que vamos enfocar, vivemos os “anos de chumbo”, os 20 anos da ditadura militar de direita encabeçada pelos segmentos mais retrógrados e incompetentes das Forças Armadas; secundados pela televisão, em especial a Rede Globo, liderada por Roberto Marinho, ferramenta de uma “segunda pedagogia” e a face mais visível do Sistema; tendo, por trás das cortinas, a movimentação espúrea dos emissários da Grande Matriz Norte-Americana.  

Nas décadas de 1970 e 1980, deu-se uma incrível  expansão da capoeiragem: as academias e o número de praticantes multiplicaram-se em progressão geométrica. Inicialmente no Rio e em São Paulo; em seguida, nas capitais de outros estados; e finalmente por todo o Brasil.

Paralelamente, a capoeira migrou para o estrangeiro. Inicialmente para a Inglaterra, França, Alemanha, Holanda, Dinamarca, Estados Unidos e Canadá; e, mais tarde, outros países da Europa, América do Sul, África, Israel, Japão, Ásia e Austrália.

Se é que a capoeira, de nossos dias – na roda com berimbau, e ensinada em academias -, “nasceu” na década de 1930, com mestre Bimba; então, a partir de 1970, mal saindo da adolescência, começou a ganhar o mundo.

Vamos enfocar e tentar entender uma característica básica e impressionante: o processo que fez com que uma cidade como São Paulo, por exemplo, que tinha menos de 10 núcleos de capoeiragem em 1970, tenha, hoje em dia (2011), mais de 1.500 academias com um total de uns 30.000 praticantes. Já em 1996, estatísticas oficiais apontavam 874 centros de capoeira na Grande São Paulo. (587)  

A dinâmica da expansão

Para explicar este explosivo crescimento, que não foi incentivado nem patrocinado pelo Estado ou pelo capital privado, temos de levar em conta um efeito “bola-de-neve rolando ladeira abaixo”; de acúmulo de contingente e experiência.   

Poderíamos citar, também, a teoria dos quanta: as mudanças não ocorrem gradativamente mas, após um certo acúmulo de energia “interna” dá-se um pulo, conquista-se um novo nível energético de acontecimentos: a fruta vai amadurecendo lentamente e, subitamente, desprende-se da árvore e cai ao chão.

No dizer de mestre Bimba: “… a fruta não dá antes do tempo”.

Por último, poderíamos lembrar alguns cenários citados por Michel Maffesoli que, segundo o autor, caracterizariam os1980s; e talvez facilitaram a súbita expansão da capoeira.

Maffesoli nos diz que, nesta época dita pós-moderna, existe uma certa “temática da atração” que caminha junto com o corpo; uma “tactilidade contemporânea”; um narcisismo coletivo; uma coisa neo-tribal em que o experimentar junto, o estar junto – onde a estética apareceria como fator de agregação e fortalecimento – é vetor de criação.

Neste contexto se enquadraria a popularização do jogging e do cooper, das academias de ginástica, e também de capoeira.   A chamada “malhação” (ginástica, aeróbica, musculação , etc.), p.ex., trabalha uma estética do corpo, “liga social do novo que se esboça, marcado pela falta de engajamento e irresponsabilidade, caracterizando o aparecimento de um homo aestheticus após o homo politicus e homo economicus”. (588)

Apesar destas características dos 1980s, apontadas por Maffesoli, que talvez tenham ajudado a expansão da capoeira, é importante apontarmos que  – e aqui está uma diferença básica quando comparada à ginástica, musculação , etc. -, na capoeira, não estamos na presença de uma “ética da estética” mas de algo “da ordem do ritual, da dança, do canto, jogo, e do gesto”. (589)

Enfim, após estes fatores que poderiam ajudar a entender a expansão explosiva da capoeira, devemos dizer que as locomotivas-mestras, os mestres que estavam à frente deste movimento não eram os mestres Bimba e Pastinha, nem os angoleiros da Velha Guarda de Salvador nascidos antes de 1935, vindos das classes desfavorecidas economicamente.

Inicialmente, ainda na década de 1960, os vetores que dinamizaram, revolucionaram, e expandiram a capoeira foram principalmente (mas com o apoio de muitos outros): o (carioca) Grupo Senzala no Rio; e os baianos que migraram para Sampa, como Suassuna e Acordeon (todos nascidos por volta de 1945, e pertencentes à classe média).

Em seguida, começando seu trabalho um pouco mais tarde, no início do período que enfocamos, por volta de 1970, e ganhando grande visibilidade no final deste período, por volta de 1985, temos dois baianos de Salvador que vieram para o Rio de Janeiro: o angoleiro Moraes (de Pastinha, João Grande e João Pequeno);  e o regional Camisinha (o atual mestre Camisa, irmão mais novo de Camisa Roxa, e com forte referência em Bimba).

A Senzala, Suassuana, Acordeon, e tantos outros que marcaram a década anterior – 1960 -, continuaram seu trabalho, tornaram-se uma referência, e estão aí até hoje. Mas, entre 1980 e 1990, Moraes e Camisa, que eram 5 ou 10 anos mais moços, cresceram até ficarem ombro a ombro com a “geração regional-senzala”.  

Muniz Sodré diz que é “no mínimo uma miopia teórica e no máximo uma completa ingenuidade culturalista supor que a problemática dos cultos afro-brasileiros se resolva apenas na dimensão simbólica” (590) – aquela com que lida normalmente a antropologia. É necessário levar em conta pulsões de afirmação grupal, reinvindicações de reconhecimento identitário, práticas “internas” e “externas” de poder.

Para entender o contexto das mudanças, e do processo de expansão do Jogo, entre 1970 e 1990, poderíamos dizer algo semelhante da capoeira. teremos de estudar os “jogos” entre os (então) jovens mestres, levando em conta que, além dos que citamos acima, existiam dezenas de outros que também lutavam pela hegemonia.

NOTAS:

587 ASSUNÇÃO, op.cit., 20o5, p. 183.

588 MAFFESOLI, Michel. A ética da estética, Papeis avulsos n.3, Rio de Janeiro, CIEC-UFRJ, 1990.

589 PASSOS, NETO. N.S. Op. cit., 1995, pp.100-101.

590 SODRÉ, M. Op. cit., 1999, p.169.

2.7.1 – 1970-1990: A UNIFORMIZAÇÃO DA CAPOEIRA

Entre 1970 e 1990, a maioria absoluta dos grupos seguia  o “modelo regional-senzala”; a capoeira angola era uma exceção (praticamente só o Grupo Pelourinho, do jovem baiano Moraes, no Rio), e só vai re-aparecer por volta de 1985, já no fim deste período.

Veron (591) diz que lhe interessava comprender o surgimento de “um novo tipo de hebdomadário burguês” num dado momento da evolução dos países da América Latina, entre 1960 e 70.

A nós, interessa comprender o surgimento da capoeira “regional-senzala”, que se expandiu entre a classe média, e depois entre todas as classes sociais, entre 1970 e 1990.

O texto escrito por diferentes jornalistas (deste tipo de hebdomadário), nos diz Veron, parece escrito pela mesma mão.  Ora um dos fenômenos mais característicos da capoeira regional-senzala, no mesmo período, é a homogeneização dos estilos de todos jogadores (em oposição à diversidade de estilos conforme o  tipo físico e perfil psicológico).

Essa mão que escreve estes textos similares, diz Veron, não é a de seu autor, mas é movida para estruturar um aparato de enunciação bem determinado. O discurso dos jornais  burgueses que aparece na América Latina, a partir da década de 1960, “estranhamente semelhante aos franceses” (592), remeteria às transformações das linguangens-mídia nas sociedades industriais, segundo Veron.

Pensamos que estas influências conformadoras também atravessaram a capoeira. Já falamos destas determinações que atuam mais tempo do que conjeturas políticas precisas e que acompanham um determinado processo de um período da industrialização capitalista, e suas consequências sobre o plano da cultura; vetorizadas, entre 1970 e 1990, por uma “ação pedagógica” específica por seus agentes, em especial a televisão. (593)

Dentro deste cenário, vamos enfocar o fim de um período e o começo de outro.

A morte de Bimba e Pastinha, e o sucesso da geração regional-senzala

Enquanto  isto, na Bahia, encerrou-se definitivamente um capítulo com a morte de Bimba, em 1974, e de Pastinha, em 1981.

A estes dois mestres deveriam suceder uma nova geração de angoleiros e de regionais, em Salvador.

Mas, naquela época, os alunos de Bimba em atividade eram jovens e não tinham a experiência necessária para calçar os sapatos do mestre.  Além disso, por um lado, poucos continuaram a praticar, basta dizer que, hoje em dia, somente uns dez jogam e ensinam; e, por outro lado, vários emigraram: p. ex., Acordeon foi para Sampa e depois para a California, Preguiça e Baiano Anzol para o Rio, etc.

Mas, na capoeira baiana “tradicional” (capoeira angola), haviam vários mestres já maduros, como os legendários Canjiquinha, Valdemar da Paixão, Cobrinha Verde, Caiçaras, Gato, Paulo dos Anjos – falecidos recentemente -, João Grande, João Pequeno, e outros, que normalmente ocupariam o espaço deixado por Pastinha.  Mas a angola tinha sido progressivamente obscurecida pelo sucesso da regional. Mesmo João Grande, excepcional jogador e pessoa carismática da mais fina estirpe, não encontrava alunos e trabalhava como frentista num posto de gasolina de dia e, de noita, tocava berimbau (para jovens capoeiristas fazerem jogos atléticos com muitos saltos) num show para turistas, em um restaurante de Salvador.

Parecia que a era dos angoleiros tinha acabado: seus conhecimentos e sua filosofia de vida eram incompatíveis com a época da massificação do indivíduo, em que os valores máximos são a tecnologia e o dinheiro, e a cultura tem seu grande representante na televisão.  Sem falar nas mudanças que ocorreram em Salvador, transformando, em parte, a capital mística em mais um centro de consumo e turismo.

Os mestres da Velha Guarda não tinham o prestígio que lhes era devido: a nova geração tinha os olhos voltados para outra direção.  Desgostosos, pararam de ensinar (não haviam alunos) e não jogavam mais.

… e a capoeira vem amofinando-se.  Quando, no passado, ela era violenta, muitos mestres e outros nos chamavam a atenção; quando não estava no ritmo, explicavam com decência; e davam-nos educação dentro do esporte da capoeira.  Esta é a razão que todos que vieram do passado tem jogo de corpo e ritmo.

Os mestres reservam segredos, mas não negam a explicação. (594)

(Mestre Pastinha)

O comentário de Pastinha expressa seu desencanto, e é, de certa maneira, parte de um discurso baseado numa “tradição inventada” (termo cunhado por Hobsbawn): sabemos que “antigamente”, antes de Bimba abrir a primeira academia em 1930 (e Pastinha em 1941), o que havia era a capoeira dos “disordeiros” e dos “valentões”, por isso dificilmente os mestres “chamariam a atenção quando era violenta”. Na verdade, antes de Bimba e Pastinha, nem existia a figura do “mestre” associado à “academia”.

E antes disso, nos 1800s, praticamente não temos notícias da capoeira na Bahia (em oposição à violenta capoeira das maltas cariocas dos 1800s, extremamente documentada em sua época).

No entanto, nas entrelinhas do texto de Pastinha temos o recado: o que vinha amofinando-se era a “capoeira angola”, que perdia cada vez mais terreno para a “capoeira regional” de mestre Bimba.

Em 1992, Muniz Sodré, apelidado de “Americano” por mestre Bimba, disse que a capoeira “praticada pelos velhos mestres baianos” era um exercício anti-repressivo, referindo-se à Bimba e Pastinha, e a toda a geração mais nova (Canjiquinha, Caiçaras, Waldemar, etc.).

Jogar ou brincar é, de algum modo, “contornar a seriedade do conceito de arte, estabelecido por um sistema neurótico chamado cultura”.

A capoeira, segundo Sodré, estava enfrentando “inimigos mais sutis e poderosos: o turismo que transforma o rito em show, e a tara pedagógica que procura fazer do jogo/arte um esporte com regras e regulamentos”.  Mas “a brincadeira continua viva e tem muita coisa a ensinar”. (595)

Muniz se refere aos “shows para turistas” patrocinados pelo orgão oficial de turismo de Salvador, no qual os capoeiristas tinham de se adaptar às idéias estereotipadas do imbecil que, na época, fosse responsável por aquela secretaria. E também ao método de ensino, cada vez mais “sofisticado”, um processo deflagrado inicialmente pela Senzala carioca e pelos baianos de Sampa (a partir da década de 1960), e que também seria utilizado (com as devidas adaptações) pelos angoleiros que voltaram a florescer por volta de 1985.

Os professores e mestres se adaptavam às necessidades dos shows; e/ou adotavam os novos métodos que faziam sucesso comercial (em termos de número de alunos); e com isso, afirmava Sodré, poderiam estar introduzindo deturpações ao espírito do Jogo.

Resumindo: enquanto a capoeira angola e os mestres “tradicionais” perdiam terreno, a nova geração regional-senzala no Rio, em sua maioria vinda da classe média, e os baianos (e outros da própria São Paulo), estavam tendo enorme sucesso e fazendo dinheiro.

E quando a capoeira, nos 1970s, começou a ser ensinada na Europa (1971, com Nestor Capoeira), e nos Estados Unidos (1975, com Jelon Vieira e Loremil; 1978, com Acordeon), o estilo predominante era o regional-senzala.

As Federações de Capoeira

Foi também no início deste período, em 1972, que a capoeira teve entrada na Confederação Brasileira de Pugilismo (CBP), e em 1973 entrou para a Confederação Nacional de Desportos (CND).  E rapidamente, em 1974, foi criada a primeira federação de capoeira – a FPC, Federação Paulista de Capoeira -, um “orgão oficial” sob a tutela do CND (Conselho Nacional dos Desportes).  Vários dos principais mestres (quase todos baianos) de São Paulo se filiaram.  

De certa maneira, podemos pensar a adesão destes mestres à Federação Paulista como parte da luta pela hegemonia entre Rio e Sampa.

No Rio, a Senzala se tornava cada vez mais visível com seus 10 “cordas-vermelha”. Em oposição, talvez a reunião dos baianos de São Paulo sob o guarda-chuva da FPC poderia fazer uma oposição “em bloco” mais eficaz e, como as federações eram uma novidade, lançaria a capoeiragem paulista para a frente do  palco.

Isto aconteceu até certo ponto pois, em breve, foram criadas federações em outros estados, o que tirou a primazia da FPC. Além disto, as lutas internas pelo poder, dentro  de cada federação estadual, pulverizou a possibilidade de um efetivo e real “trabalho em bloco”.

Finalmente foi criada a CBC – Confederação Brasileira da Capoeira – que coordenaria as Federações Estaduais de Capoeira (uma para cada estado). No início, assim como  as federações, a CBC teve algum sucesso com a novidade de seu “campeonato brasileiro de capoeira”. Mas com o passar dos anos, e com a constatação de que o governo não  ia derramar rios de dinheiro e benesses nas federações/confederação (nem tampouco  entre seus afiliados), este sucesso diminuiu.

No entanto, criou uma nova espécie de divisão: as “associações de capoeira” (as academias filiadas às federações), e os “grupos de capoeira” (academias não filiadas, independentes).

As Federações e a Confederação, muitas vezes, especialmente no início, assumiram uma atitude extremamente autoritária e arrogante. Era como  se dissessem: “agora vamos mostrar a estes ignorantes e desorganizados capoeiristas como se gerencia uma atividade popular “.

No entanto, a maioria dos dirigentes das Federações não eram estranhos à capoeira, como se poderia pensar devido à sua atitude; eles eram capoeiristas. Alguns eram mestres respeitados; muitos outros eram uns caras de quem ninguém jamais tinha ouvido falar, uns burocratazinhos que não tinham conseguido se fazer na capoeira e agora viam a sua chance de exercer algum poder.

Enviavam cartas aos locais onde mestres não-filiados ensinavam, ameaçando os locadores com represálias: o mestre que estava alugando o local era “ilegal”. Telefonavam e mandavam cartas aos teatros onde houvesse um espetáculo de capoeira com o mesmo tipo de ameaça. Tudo  com uma linguagem “oficial”, “de advogado”, e, nas entrelinhas, a atitude de quem “pertence”  ao grupo militar que dominava o país. Era assustador, uma vez que a ditadura militar, de 1964-1984, sumia com seus desafetos e recorria à tortura e ao assassinato.

Com o passar do tempo, e vendo que muitos mestres de renome não se intimidavam, alguns dirigentes das Federações assumiram uma postura mais inteligente e flexível; mas eram uma exceção.  

No entanto, as Federações, com seu ranço de autoritarismo do tempo  da ditadura militar, nunca tiveram o sucesso que almejaram.

Mestre Luiz Renato, citado por Mathias Assunção, também defende esta tese – a pouca influência das federações – quando diz que “ficou claro  que os grupos foram a modalidade de organização que a capoeira escolheu (em oposição às ‘associações’ filiadas às Federações)” (596)

A mobilidade e a troca de informações

Como dissemos, no Encontro Nacional de 1969 (no Rio), os capoeiristas levaram um pancadão (no bom sentido) ao se verem, um grande número deles, da Bahia, Rio e Sampa, sob um mesmo teto. Mas na década de 1970, já existia uma mobilidade e troca de informações muito maior entre os capoeiristas e grupos de Salvador, São Paulo e Rio; e também com grupos que começaram a se firmar em Brasília, Belo Horizonte, Recife, e Curitiba.  Capoeiristas baianos, cariocas e paulistas, jovens porém experientes, viajavam constantemente e eram recebidos como verdadeiras “estrelas” nas cidades onde a capoeira ainda estava se implantando.

Estas viagens, e as aulas que estes jovens “mestres” davam em outras cidades, não tinham ainda um caráter profissional/comercial: os visitantes geralmente ficavam na casa (dos pais) de algum aluno, ou dormiam na própria academia.  Muitas vezes, era feita uma coleta para ajudar nas passagens de ônibus e na comida.

Na década de 1980, e principalmente na de 1990, este intercâmbio – viagens e cursos – se intensificou e, pouco a pouco, assumiu um caráter profissional/comercial. Hoje (2009), os mestres de maior renome (uns 15, todos nascidos antes de 1965) cobram R$1.000 (ou mais) para comparecer a um batizado ou dar um curso de fim-de-semana, no Brasil; e US$ 1.000/1.500, para os USA e a Europa. Os mestres mais jovens, porém (re)conhecidos (uns 50), cobram 1/3 ou 1/2 deste valor.

Paralelo a esta movimentação de professores e mestres, começa no final do período, por volta de 1990, uma maior movimentação de alunos gringos. Não apenas os que já têm vários anos de capoeira, mas inciantes também: vinham ao Brasil fazer uma espécie de “turismo-capoeira” e muitos aprendiam ou já falavam português.

Muitos integravam “excurções”, com 5 a 30 alunos, criadas por seus mestres e professores (brasileiros residentes no estrangeiro); outros vinham por conta própria e visitavam Salvador e Rio, além da cidade onde estava a academia ao qual seu professor pertencia originalmente (muitas vezes, uma cidade do interior). A maioria voltava outras vezes ao Brasil e ficava de um a três meses, e outros os seguiam, fortificando uma real e fortíssima troca cultural alternativa, afastada dos canais oferecidos pelo “Sistema”.

A capoeira no estrangeiro

Dissemos que a capoeira começou a ser ensinado na Europa em 1971 (com Nestor Capoeira) e, poucos anos depois, nos USA (Jelon Vieira em 1975, e Acordeon em 1978).

No entanto, o movimento de expansão não aconteceu rapidamente; a rapaziada pioneira (e os que vieram depois também) tiveram que quebrar pedra na pedreira.

Vejamos alguns depoimentos sbre os anos 1979 e 1984, na Europa e nos Estados Unidos:

-1979, Europa:

“Em 1979 voltei (Nestor Capoeira) à Europa (depois da primeira viagem pioneira, de 1971 a 1974) e fiquei dois anos em Paris.

No final de 1980, um ano depois, eu dava aulas em três academias diferentes e tinha um total de uns 35 alunos. Dava para sobreviver, mas para curtir eu dependia do apoio econômico das namoradas.

Havia, que eu saiba, apenas um outro camarada dando aulas em Paris (e na França), o Grande da Bahia (que está lá até hoje), que ensinava na Maison du Brésil e tinha um numero similar de alunos. Além de nós dois, na França, eu só sabia do Martinho, que estava na Alemanha; mas o forte do Martinho, em número de alunos/as, eram as aulas de samba e dança brasileira.”

-1979, Estados Unidos;

O Jelon Vieira chegou em Nova Iorque em 1975 e, alguns anos depois, abriu a sua Capoeira Foundation – uma entidade sem fins lucrativos para divulgar a cultura brasileira – em 1979, ele recebeu apenas 900 dólares de entidades particulares e governamentais (em 1990, no final do período que estudamos, já receberia 400.000 dólares). Jelon comenta que, no início, a parada era dura e dependia dos shows, dificeis de conseguir, para sobreviver.

Em 1980 só existiam 4 pessoas ensinando capoeira nos USA: Acordeon, em São Francisco; Jelom e Loremil, em Nova Iorque; Eusébio, em Illinois.  

-1984, Europa:

“Quando fui (Nestor Capoeira) à Europa pela terceira vez, em 1983, e fiquei mais dois anos, já haviam, talvez, uns 10 caras dando aulas. Já viajávamos, e íamos visitar um ‘colega professor’ em outro país; ou, quando arranjávamos algum show razoavelmente bem pago, convidávamos os outros professores (que ensinavam em outros países), além de chamar alguns músicos e mulatas para a parte do samba/carnaval.”

-1984, Estados Unidos:

Em 1984, seis anos depois de ter se estabelecido na California, um estado de mentalidade aberta (em relação ao resto dos Estados Unidos, “se fosse num estado mais conservador, o trabalho seria ainda mais difícil”), mestre Acordeon afirmava que a capoeira era completamente desconhecida e que não  tinha apoio de espécie alguma, seja do governo (Brasileiro e/ou Americano), seja de entidades privadas ou orgãos culturais.

Os Estados Unidos tinham (em 1984) 220 milhões de habitantes, mas apenas uns 500 praticantes de capoeira: “uns 300 na California (na costa do Oceano Pacífico), uns 60 em Nova Iorque (considerado “a capital do mundo”, do outro  lado dos Estados Unidos, na costa norte do Atlântico), e mais uns 100 espalhados aqui e ali”.

E como é que estes mestres e professores acabavam indo parar no estrangeiro?

– Pouquíssimos iam por conta própria.

– Alguns iam com alguma turista gringa que, no Brasil, tinha se apaixonado pelo malandro e o arrastou para o estrangeiro.

– Vários iam com shows para turistas que faziam turnê pelo estrangeiro. Entre estes se destaca o luxuoso “Brasil Tropical”, do “Camisa Roxa” (de Bimba, irmão mais velho do atual mestre Camisa) e do Domingos Campos, que rodava a Europa desde a década de 1970: depois de ficar algum tempo nas exaustivas viagens – as vezes faziam uma cidade por dia -, muitos dos capoeiristas acabavam se radicando em  alguma cidade.

Mas enfim, poucos chegavam e ficavam definitivamente; a maioria não aguentava a pressão, após alguns anos retornava ao Brasil. Outros, como eu (Nestor Capoeira), ficavam no ping-pong (alguns anos no Brasil, alguns lá fora; alguns no Brasil, etc.).  

Este movimento, no estrangeiro, só vai começar a ter um aumento significativo no proximo período que vamos estudar, a partir de 1990. Mestre João Grande, p.ex., só vai para Nova Iorque em 1992.

No entanto, já podemos indagar:

Porque a capoeira, que não tinha nenhum apoio do governo ou de entidades privadas (nacionais ou estrangeiras), e cuja expansão dependeu apenas da iniciativa particular (e que, na época, pareciam ridículas e “malucas”) de vários jovens capoeiristas, fez tanto  sucesso no estrangeiro?

Mathias Assunção nos dá parte da resposta, algo ligado ao contexto da identidade que temos ressaltado  desde o início deste trabalho:

As culturas metropolitanas (européias) só sentiram superficialmente o impacto social e cultural do tráfico de escravos (em oposição às Américas e à África, onde os efeitos de deslocamento de milhões de pessoas e de culturas, durante quatro séculos, foram certamente mais impactantes que os da “globalização” a partir dos 1990s). Elas (as européias) não estavam diretamente envolvidas como agora, quando as próprias metrópoles  tornaram-se sociedades multiculturais (devido a intensa imigração africana e asiática nas últimas décadas). É por isto que, agora, as culturas metropolitanas necessitam de formas diaspóricas como a capoeira, que acumularam uma longa experiência em como acomodar a diversidade cultural e ainda assim continuar preservando seu núcleo identitário…

Uma prática “creoula” transatlântica, como a capoeira, está, então, particularmente apta para providenciar uma identidade englobante para pessoas diaspóricas de qualquer ascendência. (597)

Poderíamos perguntar: qual vai ser a contribuição, positiva e negativa, que a capoeira nos Estados Unidos, e a capoeira na Europa, darão à Capoeira, em geral, no século XXI.

De forma simplista, poderíamos dizer que, nos USA, provavelmente veremos um aumento dos negócios “paralelos” (que já existem mas de forma amodorística): a venda de camisetas e calças de capoeira (e todo  tipo de vestuário também); a venda de DVDs, CDs, livros, tanto em “lojas” como através da Internet; e venda de instrumentos musicais. E também uma maior homogeneização, aulas tipo “restaurante McDonald’s”, super-padronizadas; algo que ja existe no Brasil desde os 1970s (como veremos, a seguir); e também uma alta competividade (maior que a que já existe no Brasil) entre grupos e professores pois os USA são uma sociedade altamente competitiva.

Na Europa, creio que haverá menos competição; ao contrário, vai haver mais entrosamento entre professores de grupos antagônicos que no Brasil. Na Europa.p.ex., desde o final do período 1970-1990, nos Encontros de Verão de Hamburgo, do mestre Paulo Siqueira; ou da Páscoa em Amsterdam, dos mestres Samara e Marreta, professores e mestres de todas as linhas e grupos davam aulas nestes eventos, e com poucas exceções as rodas eram de alto astral; sem falar das confraternizações noturnas com muita cerveja, dança e azaração (mais de metade dos alunos eram gringas). Além disto, a parte “cultural ortodoxa” – livros, teses de doutorado, pesquisas históricas – é mais valorizada na Europa que no Brasil. E, aí, também está um perigo: de repente, um babaca qualquer, com meia dúzia de anos de capoeira mas com uma tese de doutorado (e/ou livros publicados), pode se tornar mais importante que um mestre semi-analfabeto mas com grande visão e experiência de capoeira. Existe a possibilidade da “Universidade suplantar o Jogo”.  

A homegeneização, seguindo o modelo regional-senzala

Quando se fala em “homogeneização da capoeira”, muita gente pensa no estilo de jogo que imperou neste período 1970-1990, que era o estilo do Grupo Senzala ou, melhor dizendo, o “regional-senzala”, uma vez que a Senzala se desenvolveu a partir do modelo criado por mestre Bimba.

No entanto, não foi só o “estilo de jogo” que influenciou toda a capoeiragem daquela época, especialmente as gerações mais novas. E também não foi só o “método de ensino”, que começou a ser copiado. Foi também toda uma infra-estrutura e uma “mentalidade”.  

Uma infra-estrutura com os “uniformes”, a graduação através “cordas” de cor diferente na cintura (influência do judô e karate), a estrutura das aulas (aquecimento, “malhação”, treinos e roda), etc.

E também uma “mentalidade”:

– a maneira como os “cordas-vermelhas” se relacionavam entre si, que mudou com o passar do tempo; inicialmente era a amizade da juventude e, aos poucos, tornou-se extremamente competitiva);

– a maneira como se relacionavam com seus alunos: o “mestre” como o sério sensei oriental, e não o malandreado mestre de capoeira;

– a maneira como se relacionavam com os outros grupos (altamente competitiva), na busca  da hegemonia e também do mercado de alunos;

– e a maneira como o mestre se apresentava à sociedade, não mais o malandro boa-gente mas como um cidadão “sério” e defensor dos valores hegemônicos da classe média, ou como um “educador” em sintonia com os valores da Educação Física, ou um “engajado defensor” de grupos étnicos ou das “classes desprivilegiadas”.  

A Senzala, como vimos no capítulo anterior (1950-1970), despontou no cenário da capoeiragem no final dos 1960s por vários motivos:

– eram um grupo de professores (em oposição aos outros grupos que tinham apenas um mestre);

– treinavam constantemente com uma dedicação nunca visto antes, algo que vislumbraram nos sensei do karate japonês (na época, os outros capoeiristas treinavam 3 ou 4 anos com pouca dedicação, e já se consideravam “formados”, e daí em diante treinavam menos ainda);

– eram, na maioria, cariocas da classe média alta (em oposição a maioria de seus comtemporâneos, da classe média baixa ou das classes populares, que tinham vindo da Bahia paro São Paulo e Rio de Janeiro); etc.

– estavam sediados no Rio de Janeiro que era a capital do país, e o centro cultural irradior, sede da TV Globo.

Por volta de 1975, com a morte de Bimba e o ocaso de Pastinha, a Senzala já era o “acontecimento” mais importante do universo da capoeira. É evidente que isto não era aceito por seus contemporâneos da Bahia e de São Paulo, nascidos todos por volta de 1945. Os de SP, a maioria baianos, tinham também um alto nível técnico de jogo e estavam tendo muito sucesso em número de alunos, dinheiro e status.

Mas os novos grupos, que começavam a pipocar por todo o Brasil, só tinham olhos para a Senzala.

O centro  da capoeiragem tornou-se, repentinamente, o Rio de Janeiro. Para ser mais exato: o Grupo Senzala com seus “cordas-vermelha” que, em 1975, tinham entre 25 e 30 anos de idade.

Este sucesso incentivou os jovens “senzaleiros” a treinarem com mais afinco ainda, pois era evidente que o sucesso vinha daí (sustentado pela infra-estrutura e pela nova “mentalidade”). Isto não era nenhum sofrimento pois todos eram, por natureza, amantes dos exercícios físicos, dos esportes, das artes marciais – tudo isto foi canalizado para a capoeira. Os treinos eram um “grande barato” pois, até 1975, o ambiente era de grande camaradagem e (a maioria) não pensava primordialmente no dinheiro ou em ser o “número um”; a competição entre os jovens “cordas-vermelha” era extremamente amistosa e positiva.

O método de ensino foi evoluindo e ficando mais sofisticado. Mas, já por volta de 1980, o método de ensino tornou-se rígido demais, e começou a formação de “clones”, de “cópias xerox” que, desde a primeira aula, aprendiam que as coisas, inclusive a ginga que deve ser a expressão da individualidade de cada jogador, deveria ser feita da “maneira certa” (e rígida).

Um enfoque crítico  

Este enfoque sobre o “método de ensino” é a minha “própria opinião pessoal”, em oposição ao resto deste “Histórico”, onde tento ser “imparcial” (algo que, hoje, com as Teorias da Comunicação, sabemos ser impossível); e onde tento mostrar a “verdade histórica” (seja lá o que isto quer dizer).

Esta opinião, bastante crítica, deve ser vista com cautela  pois evidentemente não é uma “verdade absoluta”. A grande maioria dos mestres, e alguns são extremamente inteligentes e capazes, não concordam com minhas críticas. Tanto é assim que, até hoje, o método usado, na regional-senzala e na angola, continua reproduzindo clones, formando alunos que são cópias xerox de seus mestres, devido a rigidez do método de ensino; e os mestres parecem  estar bastante satisfeitos com isto.

Aliás, os mestres estão mais do que satisfeitos.

Basta ouvir o discurso contemporâneo ufanista:

1 – a capoeira é “uma luta de liberdade” (no passado contra os escravagistas, e no presente contra a sociedade consumista de autômatos), dizem regionais e angoleiros.

Mas na minha opinião, a “liberdade” que meus colegas apregoam só existe no discuso deles. Dentro da academia o que vemos é o autoritarismo militaresco dos alunos mais graduados para com os iniciantes; e entre as academias existem um sem número de inimizades, ao ponto de um aluno de determinada academia não poder passar perto da roda de um outro grupo, etc.

2 – a capoeira é “criatividade e improvisação”, é “expressão pessoal de cada indivíduo”.

No entanto, eles ensinam seguindo um modelo extremamente rígido, onde as coisas são “certas” ou “erradas”. Os alunos são tão condicionados a se movimentarem de determinada maneira que, na verdade, o que chamam de “improvisar” é apenas re-arranjar determinados “clichês de movimentação” de diferentes maneiras.

3 – a capoeira é (segundo os novos mestres da angola) “tradição”.

Mas a tradição deveria incluir a “vadiação”, e não uma postura séria e “careta”, onde, p.ex., não se pode jogar descalço; e se a camisa sair para fora da calça, o jogo tem de parar, para o jogador se arrumar e ficar “bonitinho” e dentro dos padrões de “decência e correção” da classe média. Além disto, “tradição” não quer dizer um discurso fechado e sectário.

A violência nas rodas, dentro e fora das academias

A partir aproximadamente 1980, a violência nas rodas de capoeira, tanto  nas rodas de rua quanto dentro das próprias academias, que lentamente já se fazia sentir desde os 1970s, aumentou sensivelmente. Rio e Sampa foram os centros irradiadores desta tendência.

Os alunos trocavam socos, se agarravam, rolavam pelo  chão, chutavam a cara do outro que estava ajoelhado no “pé do berimbau”, num descalabro total que não tinha nada a ver com o  chamado “jogo duro” (que tem seu espaço e sua razão de ser dentro das várias possibilidades oferecidas pela capoeira).

Repentinamente, vários capoeiristas fracos de jogo, fracos de cabeça, e fracos de “fundamentos” – vamos chamá-los de “porradeiros” -, começaram a ter um destaque dentro das academias, pois eram eles que melhor seguravam a barra quando havia visitantes de outras academias (e troca de pancadaria).

Quase sempre o “porradeiro” agia em grupo: visitava as outras academias com outros “porradeiros” de sua própria academia. O “porradeiro”, além de se tornar importante dentro de sua academia, também começou a se tornar conhecido em sua cidade e até nacionalmente, porque rodava as rodas de outros locais, e saía na porrada onde quer que fosse.

Estes alunos “porradeiros” eram incentivados, na surdina, por seus mestres. Os mestres os utilizavam para desqualificar as outras academias, e para lançar o caos e o temor ao mesmo tempo que valorizavam seu grupo. Era uma clara “estratégia de violência” em busca da hegemonia e do mercado de alunos. Uma clara “estratégia de violência interna”, uma vez que era de uma academia contra as outras, similar à que existiu entre as maltas de capoeira cariocas nos 1800s; se bem que entre as maltas não existiam o “mercado de alunos”, o que existia era “um território”.

A explicação, óbvia e simplista, é que este fenômeno, do aumento da violência, era um reflexo de:

1. A crescente violência nas grandes cidades; o processo  de desterritorialização; etc. e tal.

2. O fato da capoeira ter conquistado um “mercado” (jovens que queriam aprender capoeira) significava que havia dinheiro que vinha das aulas e dos alunos, como jamais houvera antes. A violência seria o  resultado direto da “comercialização” do Jogo, no período 1970-1990. A capoeira teria sido definitivamente cooptada e entrava definitivamente para o Universo Capitalista Selvagem.

Não se pode dizer que estas explicaçõezinhas “inteligentes”, “politicamente corretas”, e de acordo  com  a cartilha que explica o “mundo capitalista”,  estavam erradas.

No entanto eram generalizações. Um quadro geral que realmente existia, mas que não explicava os detalhes das engrenagens do aumento da violência na capoeira; não apontava os atores, nem enfocava os vetores que realmente agenciaram a onda de violência; e não levavam em conta a infra-estrutura nômade (no sentido usado por Deleuze e Guattari) da capoeira (599).

Eu (Nestor) vivi e fui parte deste processo, convivendo com os principais atores daquele cenário: não foram somente as influências “externas” – como a violência das cidades, nem a luta por mais dinheiro (mensalidades dos alunos) – as causas principais que resultaram numa súbita explosão de violência em todo o universo da capoeiragem.

O que houve, já na década de 1970 e aumentando progressivamente até 1990 (quando a violência finalmente começou a amainar), foi a ação de alguns poucos jovens mestres de renome que adotaram conscientemente a estrategia de violência, no Rio e Sampa, e que, pouco a pouco, foram seguidos em pelo resto da boiada.

Eles – os mestres – não estavam basicamente atrás do dinheiro. A grana era, evidentemente, importante; mas o lance mais forte era o Poder; e isto acarretava, também, o descrédito dos outros mestres, e ter o maior número de alunos.  

Vários destes (poucos) mestres – vamos chamá-los de “Mestres Cabeça-de-Bagre” -, ao contrario do que poderia se pensar, já pertenciam ao  segmento hegemônico e não eram nenhum Zé Arruela.

Eles já tinham Poder e eram reconhecidos.

Mais queriam mais.

É aquele lance do cheirador de cocaína: o pouco é pouco demais; o muito não é o suficiente.

Queriam ser o “capo de tutti capo”. O Mussolini, o Hitler, o Stalin, o Fidel, o Mao Tse Tsung, a puta-que-os pariu.

Estes “mestres cabeça-de-bagre” fizeram uma escolha consciente, de usar a violência como uma “estratégia” de conquista da hegemonia (total), eliminando ou desclassificando  grupos menores, conquistando os alunos dos grupos que eles visitavam e onde davam porrada.

Com o passar do tempo, os “mestres Cabeça-de-Bagre” mais maquiavélicos e ligados, já não iam eles próprios fazer o “serviço”. Eles compreenderam que aquilo funcionava muito bem dentro do universo da capoeiragem, mas não era bom para a “imagem externa” irradiada para determinados segmentos da sociedade que consideravam a capoeira uma “arte”, algo “lúdico” etc. Então faziam a cabeça de alunos de mentalidade limitada, ensinavam-nos a brigar, alguns davam força para que usassem anabolisantes e ficassem imensos; e ao mesmo tempo trabalhavam as inseguranças destes jovens, jogando uns contra os outros, demonizando os outros grupos de capoeira, e finalmente transformando-os em “porradeiros”.

Estes alunos “porradeiros” eram, as vezes, chamados de “teleguiados”, pelos (poucos) mestres “cabeça pensante” da época.

Os “mestres Cabeça-de-Bagre”  já eram homens adultos entre 1970 e 1990, mas não tinham resolvido seus probleminhas de “afirmação machista”, nem tinham dechavado seus traumas (fala Freud!), suas paranóias, e suas inseguranças da época da infância e da adolescência.

Então, depois de ser mordido pela “mosca azul do Poder”, e já tendo as ferramentas necessárias, era uma coisa “natural” que um “mestre cabeça-de-bagre” escolhesse uma “estratégia de violência”. Pois a violência esta estruturalmente imbricada na problemática da insegurança e da paranóia.

Além disto, não havia uma real “Violência”, como nos confrontos armados entre as gangues das drogas; e nem mesmo a violência das lutas de ringue das quais os “mestres cabeça-de-bagre” nunca participaram. Era uma estratégia inteligente aos olhos de seus  implantadores, e também em harmonia com o Sistema Capitalista; ainda mais porque o nível técnico dos “mestres cabeça-de-bagre”, e de seus alunos mais desenvolvidos, era bem superior ao da grande maioria dos grupos menores (que existiam em grande número), e assim não corriam um real perigo de derrota.

Ora, a verdade é que a violência existe na vida, em mim, e em você; no mundo da capoeira idem. Mas, neste parágrafo, estamos assumindo o ponto de vista de um Mestre utópco (com “M” maiúsculo); estamos criticando uma “violência mesquinha”, em oposição à uma “violência inocente” (vamos chamá-la assim) que seria normal no âmbito da capoeira.

Por exemplo: um capoeirista vai visitar uma academia e começa a jogar com o professor do lugar. O toque é são bento grande da regional, e o jogo aos poucos vai ficando duro, e o pau come. Como o visitante tem mais jogo que o professor local, o visitante mete a porrada no professor; o professor dá o trôco dentro de suas possibilidades. Acabou a roda e vamos encontrar o professor e o visitante no maior papo. Trocaram porrada, mas o toque era são bento grande da regional; os dois se tornam amigos. O visitante (e o professor) exercitaram uma “violência inocente”.

Vamos ver agora outro caso bem diferente: um capoeirista, que sabe que é física e tecnicamente superior a um determinado professor, resolve fazer-lhe uma visitinha. Mas já vai com a idéia preconcebida de dar porrada, desacreditar o professor, e roubar seus alunos. É o que chamo de “violência mesquinha”.

Os “mestres cabeça-de-bagre” se justificavam dizendo  que “mestre Bimba já fazia a mesma coisa em relação às rodas dos angoleiros”, em Salvador entre 1940 e 1974. Ou então os “cabeça-de-bagre” diziam que estavam “ajudando a capoeira”, “melhorando o nível”, “acabando  com os incompetentes”.

As desculpas esfarrapadas deram certo e, durante vários anos, todo o ensino da capoeira voltou-se no sentido de prepararem os alunos para a “porrada”, que certamente ia rolar ao receberem os visitantes de outros locais. Por um lado, isto exercitou os capoeiristas na faceta do “jogo duro” e da porrada; mas infelizmente, por outro lado, obscureceu todos as outras facetas lúdicas e artísticas – a coisa toda, o jogo e a mentalidade geral, se tornou grosseira e ignorante.  

Quem não conhece o mundo da capoeira poderia perguntar: porque um mestre “cabeça pensante” não proibia a entrada destes “porradeiros”, de outros academias, na sua roda “alto-astral”?

É que há uma admiração pelo malandro-valente, do Rio de 1920; ou pelo valentão-disordeiro de Salvador, no mesmo período; pelos brabos do carnaval de Recife, também da mesma época. Admiração justificada, pois eles são também nossos “ancestrais”; eles também moldaram fortemente  o Jogo. Muitos mestres dizem, com razão, que o capoeirista formado tem de estar preparado para qualquer tipo de jogo.

Por isso, demorou anos até que alguns mestres se deram conta que, com esta mentalidade aberta, de receber e “dialogar” com os “cabeça-de-bagre”, estavam estragando as rodas e o astral de suas próprias academias. Os mestres “Pensantes” estavam deixando os ” Cabeça-de-Bagre” ditarem como as coisas deviam rolar. E finalmente, inicialmente apenas aqui e ali, mas logo em grande parte do universo da capoeiragem, os “porradeiros” começaram a ser barrados nas rodas, e até proibidos de entrar em determinadas academias. Alguns grupos, de renome ou não, que utilizavam radicalmente a “estratégia da violência” começaram a ser discriminados: a maioria da comunidade da capoeira começou a “dar um gelo” nestes grupos, apesar de alguns serem importantes e representativos dentro do universo da capoeira.

Em resposta, os “mestres Cabeça-de-Bagre” continuaram incentivando a violência como estratégia(nas conversas com alunos graduados dentro de suas academias); mas condenavam a violência publicamente, chegando a reprimir seus alunos “porradeiros” em público (para depois elogiá-los particularmente). É aquele mesmo lance do político corrupto que faz discurso contra a corrupção.

Mas já era tarde.

Vários capoeiristas, mestres, e grupos, ficaram marcados com o estigma do “porradeiro” e continuam discriminados até hoje, apesar de abertamente, devido à importância e influência de alguns, serem louvados e até receberem homenagens.

Mas quem eram os “mestres cabeça-de-bagre”?

Quem eram os que, a partir das grandes metrópoles agenciaram a onda de violência que se espalhou por todo o Brasil?

Em menor ou maior grau, praticamente todos os que tinham nome, no período 1970-1990. É mais fácil nomear alguns dos poucos mestres de renome que não embarcaram nesta onda:

– Em Salvador: mestre João  Grande, e mestre Lua Rasta.

– No Rio: mestre Leopoldina.

– Em São Paulo: mestre Suassuna.

Dentro deste cenário, a violência foi num crescendo, no Rio e São Paulo durante todo os 1980s, e logo se difundiu por todo o Brasil; aos poucos; como ondas concêntricas formadas por uma pedra jogada num lago.

Houve consequências de real violência, como  era de se prever. Houve tiro na saída de academia em área nobre de grande metrópole; e algumas mortes, consequência de pancadas dentro da roda.

A coisa tinha fugido do controle dos próprios “Mestres Cabeça-de-Bagre”. Já começavam a aparecer notícias negativas na imprensa (que geralmente demonizava o jiu-jitsu da família Gracie, do Rio); e houve um recuo geral.

Os “Mestres Cabeça-de-Bagre” não eram burros; e, vendo a reação negativa, dentro e (mais ainda) fora da capoeira, mudaram seu discurso e começaram a reprimir, de verdade, os tele-guiados porradeiros que eles próprios  haviam criado e incentivado.

Nas outras capitais e cidades menores esta onda demorou um pouco à chegar. Mas na sequência, se instalou geral; e continuou a ser sentida durante bastante tempo, mesmo após a onda de violência ter abrandado, já no final dos 1990s, nas grandes capitais.  

No estrangeiro, entre 1970 e 1990, os professores (que ensinavam lá) já comentavam que a capoeira/luta – que tinha grande sucesso no Brasil – não funcionava tão bem lá fora. Os gringos preferiam algo que destacasse a parte musical e lúdica; o cultural/histórico e a “filosofia”; e que, além de tudo, fosse um espaço de “encontro” com outras pessoas, com saídas para beber e bater papo nos bares depois das aulas – e, desta maneira, combater a solidão assustadora das metrópoles do Primeiro Mundo.

Era necessário aparar as arestas da regional-senzala, e os jovens professores emigrantes assim o fizeram sem descaracterizar a capoeira: deram mais ênfase à música e à parte lúdica, e diminuiram os tipos de treinamento para “viris e combativos” capoeiristas/gladiadores.

Isto, à curto prazo, foi muito positivo para os jovens professores lá fora (atraiu mais alunos); e, a longo prazo, foi muito bom para a capoeira.

Mais tarde, já na década de 1990, quando a capoeira na Europa e USA se tornaram mais fortes dentro do universo da capoeiragem, e começaram a  dar sua contribuição e influir no cenário maior, está tendência – mais “jogo”, menos “porrada” – contribuiu positivamente para o momento. Instalou-se a verdadeira Época de Ouro, que a capoeira vive no início do século XXI.

Poderíamos pensar que a Capoeira Angola, que começou a se tornar visível novamente (aproximadamente) em 1985, iria se aproveitar desta característica do mercado americano e europeu, que não se sentia tão atraído pela “estratégia de violência”.

No entanto, a angola não “aconteceu” na Europa como se poderia esperar, provavelmente devido à mentalidade fechada e sectária: os professores eram “sérios”; exigiam uma “militância”, um “engajamento”, um “ativismo” em relação a aspectos “culturais” e/ou “étnicos”, que pareciam bastante “estranhos” à maioria dos alunos europeus que ainda tinham na memória (se não na sua própria memória, seguramente na de seus pais e tios) os radicalismo e nacionalismos, de esquerda e direita, de Stalin, Lenin, Mussolini, Hitler, Salazar e Franco. O sectarismo da capoeira angola, para muitos jovens europeus, era uma coisa tão “repelente” quanto a “estratégia de violência” (usada por muitos mestres da regional-senzala).

Nos USA, onde a maioria dos jovens é menos “culta” que o jovem europeu “médio”, e são decisivamente voltados para a televisão e o carro e o shoping-center; o movimento da angola ainda floresceu um pouco mais. Mais facilmente entre afro-americanos e simpatizantes que viam, no discurso da angola, uma forma de veicularem seus anseios e frustações. Houve, inclusive, já na década de 1980, alguns sinais de radicalismo: vários capoeiristas negros americanos tentaram fazer da capoeira angola um território exclusivo dos afro-americanos e, portanto, interditado aos brancos.

Mas a capoeira deu sorte: por volta de 1990, mestre João Grande (1933 ?????? ), um negro brasileiro que é considerado desde sua juventude como um dos maiores angoleiros de todos os tempos, aluno dileto (juntamente com mestre João Pequeno) de mestre Pastinha (o criador da capoeira angola), mudou-se para Nova Iorque e recusou qualquer forma de discriminação. A academia de mestre João Grande, em Manhatan, é frequentada por todo tipo de gente.

Hoje (2009), a angola engloba uns 25% da capoeiragem no estrangeiro; e os outros 75% pertencem à regional-senzala (mais lúdica que no Brasil), e outras tendências (não alinhadas à angola ou à regional).  

Mas voltando a “estratégia da violência” que grassou, principalmente, a partir de 1970 até finais de 1990: paradoxalmente houve alguns efeitos positivos posteriores, que só se tornarm visíveis após o declínio da onda.

Um deles foi que, o professor ou mestre que viveu aquele fenômeno e lutou contra ele (não deixando os “porradeiros” participarem de sua roda, p.ex.), teve de confrontar (e negar) toda uma formação e uma problemática machista (que também existia dentro de sua própria cabeça). Após a onda de violência se acalmar, no final dos 1990s, este professor ou mestre estava mais maduro, mais vivido, com mais malícia; e com menos tendência a ser influenciado por idéias e agentes radicais (de esquerda, de direita, ou da clase média).

E alguns dos próprios jovens alunos “teleguiados”, que compunham a “turma de frente” dos “mestres Cabeça-de-Bagre”, também sairam enriquecidos: viveram a experiência de ser parte de um grupo coeso, treinado, que ia pros lugares para o que “desse e viesse”. E com a discriminação da violência (e deles próprios), também amadureceram, vendo que “o que vai, volta”; a “volta que o mundo deu, a volta que o mundo dá”.

Mas infelizmente a maioria dos “porradeiros” não chegou a atravessar o túnel e ver a luz no final.

O processo de formar um “porradeiro” envolvia trabalhar as inseguranças do jovem, canalizando-as para um sentimento de “superioridade” sobre os “outros” baseada na força física, na técnica de luta, e a pertencer a um “grupo excepcional”. Ou seja, criar um “porradeiro” era criar um “ídolo-de-pés-de-barro”.

E quando a ficha caía, e o jovem – agora famoso como “porradeiro” – se dava conta que estava sendo discriminado pela comunidade da capoeira, e que tinha sido manipulado  e usado pelo seu próprio mestre, a quem admirava e confiava como a um pai/gurú, isto trazia uma desilusão que marcou muito fortemente, e muito negativamente, um sem número de jovens capoeiristas “porradeiros” que se afastaram desgostosos da capoeira.

De um ponto-de-vista externo e macro (em oposição a esta minha visão interna e micro) completamente diferente, esta dinâmica da violência também pode ser entendida  – e também é – um reflexo da globalização, onde as grandes multinacionais engolem as empresas menores.

Mas, repito, a estratégia de violência não era “a única alternativa”, e os “mestres cabeças-de-bagre” que a implataram não eram joguetes inocentes da “sociedade injusta”; foi a escolha fria, pensada, e consciente de alguns.

Foi uma época chata e sem brilho, semelhante à do “futebol força”; as rodas perderam a graça.

As mulheres, a universidade, as crianças

Enquanto isto, já no início de 1970, as moças começaram a procurar as academias de capoeira. Inicialmente nos bairros ricos do Rio e Sampa e, mais tarde, nas outras capitais e, por último nas cidades menores. É bom lembrar que a atitude reaconária de pais e amigos, além do machismo da sociedade brasileira, é  maior nas cidades menores e nas classes mais pobres.

Muita gente pergunta a razão de haverem poucas “mestras” (em relação ao número de “mestres”), uma vez que elas estão presentes nas academias há praticamente 40 anos. Evidentemente que as “feministas de plantão” dizem que isto seria devido ao machismo, ainda mais que a maioria das ditas “mestras” não são reconhecidas como tal pela  maioria da comunidade da capoeiragem.

Mas o buraco é mais embaixo: as mulheres capoeiristas, depois de uns 10 ou 15 anos de treino, desistem de manter o ritmo.

São pouquíssimas, talvez umas 5, que conseguiram manter-se em treinamento por 20 (ou mais) anos e assim chegar à condição que atualmente (nos grupos de renome) se exige de um “mestre de capoeira”.

(Obs: aliás, diga-se de passagem, mais de 80% dos ditos “mestres de capoeiras”, homens, também não são reconhecidos pela maioria da comunidade da capoeiragem).

No voleibal, no basquete, p. ex., a gente vê equipes de jogadoras que têm um nível internacional de excelência, e que só são suplantadas pelos atletas masculinos de nível Olimpícos. Isto não aconteceu na capoeira, execto por meia dúzia  de capoeiristas mulheres.  

Talvez as mulheres não vejam retorno às suas fantasias (diferentes das dos homens) e, em consequência, os treinos se tornam uma “obrigação extremamente chata”.

Ou talvez não atinjam o nível necessário por terem filhos no meio do percurso, algo que muda completamente o enfoque e as primazias da mulher (vamos nos lembrar que os “mestres” de respeito estão sendo formados com mais de 40 anos de idade, uns 25 de capoeira, e ainda em pleno período de muito treino).

Por outro lado (independente do assunto “mulher na capoeira”), desde a década de 1960 a capoeira já era ensinada extra-curricularmente em várias faculdades. Eu (Nestor Capoeira), p.ex., fui iniciado por mestre Leopoldina, que dava aulas na “Atlética”, a parte desportiva da associação de alunos da Escola de Engenharia da UFRJ, em 1965.

Mas foi somente no final do  período que estamos estudando, por volta de 1990, que a capoeira começa a fazer grande sucesso no 1º grau (6 a 11 anos) dos colégios mais exclusivos de Rio e São Paulo, onde é ensinada, a peso de ouro, como uma opção extra-curricular.  Jovens professores de capoeira (de todas as classes sociais) se tornam verdadeiros ídolos da criançada. Apareceu um novo e rico filão que começou a ser duramente disputado.

Paralelamente, a partir de 1980, em muitos CIEPs cariocas (Centro Integrados de Educação Pública, gratuitos, mas infelizmente carentes de recursos e de vagas para alunos), e nos CIDs de Brasília, a capoeira também começou a ser veiculada.

Foi  também na década de 1970 que um psicanalista, o Dr. Roberto Freire, começa a sua Somaterapia, na qual incentivava seus analisandos a praticarem capoeira como parte da terapia.

Então, vemos  neste período de 1970-1990, a capoeira começar a se firmar, e ser reconhecida (com justiça), como um vetor de educação, socialização, e uma ferramenta terapêutica.

A capoeira e sua visibilidade na mídia

Mas a visibilidade na mídia (jornais e televisão) não  acompanhou este crescimento e popularização.

Ocasionalmente aparecia alguma coisa num jornal ou num canal de televisão local (na época, Rio e Sampa só tinham 4 canais de TV). Fiz (Nestor Capoeira) dois programas para a TVE sobre a capoeira com “mini-palestra” e roda; eram”especiais” de uma hora, produzidos pelo saudoso Fernando Lobo, em “rede nacional” (algo extraordinário, na época), em 1979 e 1984. Não me recordo de nenhum outro programa de TV com essas características, no período que ora estudamos.

Apesar disto, já existia um pequeno público, tanto assim que lancei dois livros (em pequenas editoras) que venderam bem, para algo da “cultura popular”:

– O Pequeno Manual do Jogador de Capoeira, RJ, Ed. Ground, 1971, que vendeu 7.000 exemplares em 5 anos.

– O Galo Já Cantou, RJ, Ed. ArteHoje, 1985, que saiu com um disco LP do mesmo nome, que vendeu 5.000 exemplares em 4 anos.

No entanto só consegui ser publicado por uma “grande editora” (a Record), a partir de 1992. (Hoje, 2009, Nestor vendeu um total de 45.000 livros no Brasil, e 55.000 no exterior)

Alguns outros livros foram também lançados na época, mas geralmente eram trabalhos acadêmicos por editoras pertencentes a “orgãos culturais do governo” e não passaram (ao que eu saiba) de uma pequena primeira edição (2.000 ou 3.000 exemplares), semelhante ao excelente Capoeira Angola, de Waldeloir Rego, que saiu em 1968.

O público e a clientela da capoeira era realmente pequeno, até aproximadamente 1990.

Tanto assim que o primeiro longa-metragem (e único, até 2008, no Brasil; em 2009 tivemos Besouro), que tinha por tema central um capoeirista, num filme “tropical de ação”, foi Cordão de Ouro (dir.: A.C. Fontoura, Embrafilmes, 1979; com Nestor Capoeira e Zezé Mota), só  ficou em cartaz uma semana, em poucos cinemas do Rio e Sampa, e algumas outras grandes capitais.

Não  teve sucesso comercial apesar de ser visto e revisto por praticamente todos capoeiristas da época. E não foi por falta de dinheiro (o filme tinha um bom orçamento para um longa brasileiro da época); nem por falta de divulgação (os principais jornais noticiaram com destaque, em reportagens de, até, uma página inteira); nem por falta de talento (o diretor era o promissor A.C.Fontoura que tinha dirigido “Copacabana me engana” e “Rainha Diaba”), a “artista” era a Zezé Mota (que acabara de ter um estrondoso sucesso com o longa “Xica da Silva”), e o “herói” era este seu modesto escriba, Nestor Capoeira (na flor de meus 33 aninhos de idade).

A clientela da capoeira era pequena em 1979; e o público, em geral, não  se interessava por filme brasileiro, e menos ainda de capoeira.

No entanto, quando, anos depois, o filme foi editado em vídeo (VHS) pela Globovídeo, e atingiu as locadoras, teve um razoavel sucesso em todo o Brasil. Sem falar das milhares de cópias piratas caseiras que, até hoje (agora também em DVD), são encontradas em todo o Brasil e exterior.

Mas, apesar do crescimento (em relação às décadas anteriores), e da aceitação em inúmeros e diversos setores da sociedade, alguns estudiosos (como Muniz Sodré) e mestres sentiam que algo estava se perdendo pelo caminho.

Por um lado, isto já fazia parte de uma atitude apocalíptica que sempre permeou aqueles que se debruçaram, e também por muitos que praticam, a capoeira (e também o chorinho, o samba, e ocasionalmente até o futebol!). Por outro lado, eles tinham (e têm) toda razão de estarem preocupados.

A súbita expansão tinha alterado as relações entre os mestres, entre as academias, e entre os praticantes e a sociedade. A violência nos jogos grassava especialmente onde imperava a regional-senzala (que era a grande maioria). Existia também um discurso fechado e sectário (por parte da capoeira angola), que criticava a comercialização e as “deturpações”; e que, na verdade, disfarçava – a raposa e as uvas – a sede de poder e status dos (neo) angoleiros.  

No entanto, apesar destes aspectos negativos no quadro geral, a verdade é que, em uma multiplicidade de microcosmos, vivia-se profundamente e apaixonadamente a capoeira nas diferentes academias, grupos, associações, e estilos.

A capoeira, semelhante aos seres humanos jovens, era algo intenso. Com seus paradoxos e obscuridades, é verdade; mas também com o brilho e a força da juventude.

NOTAS:

591 VERON, E. A produção do  sentido. SP: Cultrix, 1980, pp.226-235.

592 Ibidem, pp. 226-235).

593 Ibidem, pp. 226-235.

594 PASTINHA, V.F. Op cit., s/data, p. 9a.

595 SODRÉ, M. “Uma arte brasileira do corpo”. RJ: Jornal do Brasil, 19/12/1972, p.5.

596 VIEIRA, L.R. Praticando Capoeira, SP, ano 2 nº 17, p.33.

597 ASSUNÇÃO, M., op.cit., 2005, p.212.

598 PASSOS NETO, N.S. dos. Op. cit., 1995, p.225.

599 DELEUZE e GUATTARI. Mille Plateaux. Paris: Les Ed. de Minuit, 1980. Veremos o desdobrar desta faceta no capítulo “Ética” quando enfocarmos a “máquina de guerra nômade”.

2.7.2 –  A CAPOEIRA NA DÉCADA DE 1980: UMA MUDANÇA INESPERADA

Depois da criação da “capoeira regional” por mestre Bimba, na Bahia na década de 1930; seguido do grande sucesso do Grupo Senzala, no Rio nos 1960 e 1970s; da capoeira paulista com mestres como Suassuna e Acordeon; e da criação das Federações de Capoeira com seus campeonatos (a Federação Paulista foi  a primeira, em 1974) ; parecia que a Capoeira Angola vivia melancolicamente seus últimos dias.

Pouquíssimos mestres da “velha guarda da angola” continuavam em atividade; no entanto, havia até um ou outro jovem angoleiro ensinando, mas completamente obscurecidos pelo sucesso do novo estilo regional-senzala.

Nas outras capitais brasileiras. a capoeira começava também a florescer. Aliás, em Brasília, isto aconteceu bem antes com o (então) jovem Helio Tabosa, que tinha convivido e integrado o pessoal da Senzala carioca. Logo em seguida, aparecem Adilson, Zulú, e muitos outros.

Mas em Belo Horizonte, Curitiba, e Recife, que iriam tornar-se centros irradiadores regionais, os capoeiristas que vetorizaram este movimento, apesar de fortemente influenciados pelo modelo regional-senzala, eram uns 15 anos mais novos que os “cordas-vermelhas” da Senzala:

– No  final dos 1960s apareceu um incipiente movimento em Belo Horizonte, onde se destacava Cavaliere. Mais tarde, Dunga, uma excêntrica figura de excepcional qualidade entrou em cena. E por volta de 1980 apareceu, no bairro mais chique de B.H., o estruturado grupo Ginga liderado por Macaco, que breve contava com mais de 100 alunos. Mas foi somente após 1985, com Mão Branca (que tinha passado pelo Rio e adotara o modelo  Senzala) com o seu Capoeira Geraes que, aos poucos, tornou-se hegemônico na capital e em todo o Estado de Minas, é que a capoeira firmou-se numa estrutura que mantém até hoje.

– Em Curitiba, no início  de 1970, temos Vadinho e Eurípedes dando aulas, mas sem grande repercussão. A capoeira só vai explodir com a chegada do jovem Burguês, em 1975, que cria o Grupo Muzenza que irá se tornar hegemônico em todo o sul do país na década de 1980. Burguês tinha sido aluno, no Rio, de Paulão e Mentirinha (por sua vez, aluno de Paraná), mas ao emigrar para Curitiba adotou o modelo regional-senzala.

– Na década de 1970, João Mulatinho, que tinha sido aluno de Mosquito e mestre Gil Velho (Senzala) no Rio, emigrou para Recife. Na década de 1980, dois de seus jovens alunos – Corisco e Birilo – após dar aulas juntos por algum tempo, fundaram seus próprios grupos. Juntos com Teté (que mais tarde emigrou para a Suiça), um talentoso capoeira de rua, que tinha alunos como Barrão (que mais tarde emigrou, e faz enorme sucesso no Canadá), tornaram-se uma referência fortíssima no Nordeste.

Todos estes jovens mestres – Mão Branca (Belo Horizonte); Burguês (Curitiba); Mulatinho, Corisco e Birilo, Teté e Barrão (Recife/Olinda) -, têm algumas coisas em comum:

– nasceram por volta de 1960/1965, e a partir (aproximadamente) de 1985 começam a ter visibilidade no mundo da capoeira;

–  tiveram enorme influência e formaram muitos alunos e professores, não só em sua cidade e estado, mas em todo uma região (a partir aprox. de 1990);

– foram fortemente influenciados pelo “modelo Senzala” (estilo de jogo, mentalidade, e infra-estrutura de grupo), e são, quase todos, 15 ou 20 anos mais novos que a turma da Senzala;

– hoje, continuam como referência no cenário nacional e internacional da capoeira;  

Em São Paulo, no entanto, a Senzala carioca não teve esta grande influência.

A capoeira paulista já estava “formada” em 1970, com mestres bem mais velhos que os “senzaleiros”, como Zé de Freitas (de Salvador); e outros, apenas ligeiramente mais velhos, mas cuja técnica de jogo e visão de mundo era, no mínimo, tão boa quanto a dos cariocas, como Acordeon (de Bimba) e Suassuna (de Itabuna).

Quando começa o movimento de expansão por todo o Brasil, por volta de 1970, fortemente marcada pelo “modelo regional-senzala”, a capoeira paulista já estava estruturada.

E entre todos que tiveram influência na capoeira paulista, na década de 1970, dois excepcionais capoeiristas baianos (nascidos por volta de 1940/45) se tornaram os mais conhecidos:

– Mestre Suassuna, cujo grupo, Cordão de Ouro, é encontrado em todo o mundo e é hegemônico em países como Israel (que tem um surpreendente movimento de capoeira);

– Mestre Acordeon, que veio de Bimba, passou por São Paulo, e se instalou na California em 1978 e, junto com mestre João Grande (aluno de mestre Pastinha que se instalou em Nova Iorque em 1992), é a grande referência da capoeira nos Estados Unidos.

A volta dos “Velhos Mestres” e o renascer da Capoeira Angola

A regional/senzala dominava e se espalhava pelo Brasil, em 1970. A única exceção era o jovem (na época) mestre Moraes (1950-), vindo de mestre Pastinha e de João Grande, em Salvador.

O angoleiro Moraes era uns 5/10 anos mais novo que a geração carioca e paulista fortemente influenciada pela regional, que se tornara hegemônica. Chegou no Rio por volta de 1970 (com uns 20 anos de idade), como fuzileiro naval transferido de Salvador, e lentamente organizou o pequeno, mas ativo, “Grupo Pelourinho de Capoeira Angola” – o GCAP, fundado por volta de 1980.

Moraes voltou para a Bahia por volta de 1982, depois de passar 12 anos no Rio, junto com seu aluno mais dedicado, Cinésio “Cobra Mansa” (que se formou mestre em 1984, mudou-se para Washington D.C., onde ligou-se a mestre João Grande, e fundou a FICAP, a Federação Internacional de Capoeira Angola, que tem grande influência entre angoleiros).

Em Salvador, Moraes reuniu um grupo de angoleiros mais velhos e reiniciou um movimento de renascimento da capoeira angola.

Então, apesar da pouca divulgação da capoeira angola, a partir mais ou menos de 1985, houve uma volta dos Velhos Mestres (como Caiçaras, Canjiquinha, Waldemar e, especialmente, João Grande e João Pequeno), e um renascer da capoeira angola, trazendo de volta alguns valores  que andavam desprestigiados. A regional-senzala estava afinada com o quadro geral da sociedade, daí o seu crescente sucesso.  No entanto, subitamente, os velhos mestres voltaram a constituir centros de atração.

É curioso notar que está reviravolta (que trouxe a angola de volta) foi completamente inesperada.  Em nossa tese de mestrado que enfocou “as possíveis alterações causadas pelo discurso da televisão no da capoeira”, concluímos que, a partir de 1985, observou-se uma “inesperada reviravolta que põe em cheque posturas que consideram a mídia onipotente face à cultura popular” (600).  É justamente a dinâmica interna deste movimento de renascimento que vamos estudar agora.

A explicação dos mestres da geração regional-senzala para esta mudança é sempre a mesma: tinham visualizado – na década de 1960 – o caminho da “capoeira-esporte” e dos campeonatos como uma possibilidade de ampliação e evolução para a capoeira, e tinham se jogado de corpo e alma por aquele caminho. Tinham, com o passar dos anos e a experimentação, esgotado as possibilidades daquela opção, e no final chegaram à conclusão que a capoeira com aqueles objetivos tornava-se chata e árida  

A explicação dada pela geração regional-senzala, para a mudança da década de 1980, nos parece um pouco simplista demais: é difícil acreditar que iriam abrir mão do poder hegemônico, passando a dividí-lo com os velhos mestres, apenas por terem chegado ao ífim das “opções da capoeira esporte” (será que a geração regional-senzala da qual faço parte, tão competente, não poderia achar outros caminhos por si própria?).   

Os motivos da revalorização dos velhos mestres – e com eles, a revalorização da angola – foram outros, e diversos.

Vejamos (601):

1. As exigências do mercado estrangeiro.

A capoeira-esporte não se mostrava tão eficaz na Europa, e até mesmo na América (apesar da América ser uma sociedade altamente competitiva).

2. A geração regional-senzala começava a envelhecer.

Em 1985, chegavam aos 40 anos de idade e, sem dúvida, esta perspectiva pesou no sentido de valorizar a “velha guarda” para que, quando eles (senzaleiros) envelhecessem, já houvesse um lugar de honra reservado; e, neste movimento, era inevitável a revalorização da Velha Guarda de então, tão desprestigiada.

3. Angola x Regional: uma disputa revivida.

Aconteceu que entre os pouquíssimos mestres de angola (sucessores de Pastinha e da Velha Guarda) em atividade, encontrava-se o (então) jovem baiano Moraes (1950-).

Ao voltar para Salvador,  no começo da década de 1980, com uns 30 anos de idade,  acompanhado de seu aluno mais brilhante, Cinésio “Cobra Mansa”, Moraes vinha aureolado pelo trabalho – exceção única à hegemonia do estilo regional/senzala – que fizera em terras cariocas. Moraes reuniu ao seu redor alguns dos velhos angoleiros de Salvador, iniciando um movimento de revitalização da capoeira angola na Bahia (mas dando privilégio àqueles da mesma linhagem que a sua, como os mestres João Grande e João Pequeno).

A reação da geração regional-senzala foi imediata: começaram também uma valorização dos Velhos Mestres da angola, dando-lhes lugar de destaque em encontros, chamando-os para darem cursos e palestras. Mas não somente os que Moraes agrupou ao seu redor (da linhagem de Pastinha), mas também outros angoleiros de linhas antagônicas (Caiçaras, Canjiquinha, Waldemar, Paulo  dos Anjos, etc.).

4. O pano-de-fundo.

a. Valorização do movimento ecológico (mais para angola que regional).

b. A queda do muro de Berlim e um clima, no imaginário global, que propiciava ambas as “metades” de uma unidade separada (angola e regional).

c. A queda da URSS, que vinha associada a um excesso de investimento na área armamentista (mais típica da regional que da angola).

d. O fim das ditaduras sul-americanas, em especial da brasileira de 1964-1984; e a “regional-senzala” tinha se tornado hegemônica justamente naquele período.

e. Novos “ventos” (diversos dos do período da ditadura militar de 1964-1984, durante a qual floresceu o estilo regional/senzala), como as “diretas já”; manifestações na morte de Tancredo Neves; cassação do presidente Collor; prisão dos bicheiros no Rio; “CPI da corrupção”.

f. Novas teorias científicas apontando semelhanças entre a Ciência e a Tradição , valorizando esta última.

g. Lewis  aponta que (minha tradução ) :

(…) tem se tornado progressivamente mais difícil, para os brasileiros de qualquer classe, manter o otimismo a respeito das virtudes do trabalho duro e a competição “justa”, uma vez que as desigualdades sistêmicas do sistema econômico, local e internacional, são tão evidentes.  Isto leva o olhar dos setores econômicos médios a se aproximar da maneira de ver da classe baixa, predominantemente de cor (…)  Este processo remete à re-integração de muitas das formas estruturais e semióticas previamente abandonadas sob o enfoque regional, junto com o ressurgimento da participação no estilo angola. (602)

Lewis também analisou a volta da angola extrapolando o acontecimento para um plano global.

Estes acontecimentos recentes colocam um caso interessante para os cientistas sociais, pois problematizam as relacões entre perfomance arts como capoeira e movimentos sociais generalizados no mundo.  A institucionalização e modernização da capoeira começou na decada de 1930, coincidindo com o que era (e talvez ainda seja nos círculos políticos) um modelo standard de desenvolvimento econômico para os países do “terceiro mundo” em geral, mas que foi menos aplicado às artes das minorias étnicas dentro destes países.  No entanto, recentemente, com a re-introdução de mais e mais elementos tradicionais na capoeira, este esporte poderia ser chamado antimodernization, a medida que os novos estilos parecem cada vez mais lúdicos (…).

Os estudos mais recentes de etnicidade comecaram a notar conservative trends similares em muitas sociedades, à medida que grupos minoritários que haviam abraçado o “progresso”, ao menos até um certo ponto, começam a questionar esta escolha (por exemplo, Clifford: 1988, ch.12) (…).

Ironicamente, este tipo de discurso pós-moderno entre o histórico e o mítico se manifesta mais fortemente nos países mais “desenvolvidos”, como os Estados Unidos e a União Soviética. (603)

Então, sob a batuta de Moraes (1950) – inteligente, sagaz, excepcional jogador de capoeira -, a angola começa, cada vez mais, a ter visibilidade. Juntos a Moraes, voltam com grande força os mestres João Pequeno (1923 ????????? ) e João Grande (1933 ?????????? ); e começa a aparecer Cinésio “Cobrinha Mansa” (1955 ??????????? ), e outros jogadores, alunos e ex-alunos de Moraes no GCAP.

Mas logo aconteram várias rachaduras internas , e João Grande e João Pequeno desligaram-se de Moraes e, mais tarde, Cobrinha Mansa ligou-se a João Grande.  

Ainda assim, aos poucos a angola voltou a ser uma referência no universo da capoeira.

Mas infelizmente o movimento não foi o que poderia ter tido, não só pelas fraturas internas mas principalmente pela postura discriminante; pelo discurso fechado, dogmático e sectário, característico da nova geração de (neo) angoleiros. Esta postura contrastava violentamente com a gentileza, a sutileza e a poesia metafísica de Pastinha; a alegria de Canjiquinha; o suíngue do “dono das ruas”, Caiçaras; a generosidade e malandragem alto-astral de Waldemar; a positividade e acolhimento de João Grande e João Pequeno, etc.

Mathias Assunção comenta:

Por ter sempre se desenvolvido em oposição à Regional, na Angola existe uma tendência à eliminar, a “purificar” o estilo de tudo que cheire a uma influência da Regional, mesmo que isto realmente leve o estilo para mais longe da vadiação que existia antes de Pastinha…

Alguns grupos, particularmente os do estilo angola, muitas vezes afirmam que representam contextos negros e de baixa classe (econômica), ao mesmo tempo que caracterizam os praticantes da regional como brancos e da classe média. Embora eu não possa apresentar evidência estatística, minha observação pessoal sugere que, na verdade, grupos classificados como “regional” podem ser tão “negros” e “classe trabalhadora” como qualquer grupo de angola, e não somente em Salvador e no Recôncavo Baiano, mas igualmente no Rio de Janeiro e outras cidades. Em contraste, muitos grupos de angola tem uma significativa quantidade de  de membros brancos e/ou classe média.

(604)  

Os Encontros Nacionais de capoeira

Paralelamente, no mesmo período, aconteceram alguns grandes encontros nacionais de capoeira.

Foi enorme o impacto do Encontro Nacional realizado, em 1984, no Rio; e o Encontro Nacional de Ouro Preto, em 1987.

Nestes dois encontros, era evidente o “lugar de honra” dos velhos mestres como Canjiquinha, Caiçaras, Valdemar da Liberdade, Atenilo, Caiçaras, Leopoldina, João Pequeno (Pastinha e Bimba já haviam falecido).

O encontro nacional pioneiro, e anterior, os Simpósios Nacionais de Capoeira, de 1968 e 1969 – naquela época, “nacional”, em capoeira, sigificava Salvador, Rio e São Paulo -, organizado (o segundo) por Dick Fersen com o patrocínio da FAB (Força Aérea Brasileira), antevia e entrava em sintonia com o “projeto de integração nacional” que seria levado adiante pela Rede Globo, apesar de não estarmos ainda na década de 70.

No simpósio de 69, os capoeiristas buscavam “uma única nomenclatura de golpes”; “um único sistema de graduação para alunos e mestres”; “um único uniforme a ser usado por todos os capoeiristas de todas as academias em todo o Brasil”; a criação das Federações de Capoeira sob a tutela do Estado (CND, Conselho Nacional de Desportes; e MEC, Ministério de Educação e Cultura), o que implicava na realização de “campeonatos” de capoeira, transformando a capoeira em “Esporte Nacional”.

Ou seja – como diria Maria Rita Kehl -, “um só povo, uma só cabeça, uma só nação” (605), no qual o circuito regional ou local parece patético, e a peça única transforma-se num luxo descabido.

Ficava também evidente a questão da vigilância a partir de um poder central: o Estado, representado pelo CND.

Por sua vez, em oposição aos  Simpósios de 1968 e 69, tivemos o “Primeiro Encontro Nacional da Arte Capoeira” – realizado no Circo Voador, no Rio, em 1984 -, onde as propostas eram outras, muito diversas.

Planejado e dirigido por Camisa (que pertencia ao) e pelo Grupo Senzala, “núcleo irradiador” dos novos rumos tele-reais (606) da capoeira; com o suporte do Circo Voador, uma casa de espetáculos de sucesso no Rio; do departamento de Dança do INACEN (Instituto Nacional de Artes Cínicas) – diferente do patrocínio da FAB, em 1969, e do quartel de Campo dos Afonsos como cenário -; contou com a presença de 64 capoeiristas vindos de oito estados diferentes: Bahia, São Paulo, Brasília, Minas Gerais, Espírito Santo, Pernambuco, Ceará e Rio.

Entre estes, estavam algumas das figuras mais conhecidas e atuantes do mundo da capoeiragem incluindo a “velha guarda de Salvador”, tais como Valdemar da Paixão, João Pequeno, Canjiquinha, Atanilo.

Eu (Nestor Capoeira) fui o relator do Encontro, anotando as palestras, o que estava rolando nos eventos noturnos (cada noite, um estado  se apresentou), e entrevistando os Velhos Mestres e também os mestres mais jovens.

Hoje em dia (2009) é comum um Encontro ou Batizado com 100, 200, ou mais capoeiristas, quase todos de um mesmo grupo.

No entanto, em 1984, um Encontro com 64 capoeiristas de bom nível técnico, e vindos de 8 estados diferentes, era algo bem impressionante. Estavam representados alguns dos grupos mais atuantes.

Mas é necessário apontar que, na maioria – havia exceções, como os Velhos Mestres, e o angoleiro Moraes  -, eram “filiais” da Senzala do Rio de Janeiro, ou grupos afins. O universo da capoeira não estava, nem  de longe, representado em sua totalidade.  

Neste Encontro, de 1984, não se pretendia – em oposição ao que acontecera em 1969 – impor, nem votar, nem regulamentar nada: era um “encontro de capoeiristas visando trocar idéias e experiências”.

Eis alguns dados que confirmam a tendência de uma mudança radical no panorama da capoeiragem:

– quatro entre as oito palestras tinham por objetivo o histórico longínquo ou recente, tentando situar o momento presente e redirecionar os rumos de acordo com a herança do passado;

– uma outra palestra discutia “a ciência e a arte na capoeira” (pelo jovem Macaco, de B.H.), concluindo que “a ciência poderia dar sua contribuição, mas deve apenas assessorar sem dominar ou restringir a arte”;

– outra palestra enfocava as Federações de Capoeira (pelo jovem Mulatinho de Recife), e ficou evidente que a “capoeira-esporte” tinha perdido muito terreno;

– finalmente, a “descaracterização e preservação da capoeira”, espécie de mea culpa da geração senzala que tinha organizado o Encontro;

– e o “bate-papo com a velha-guarda”, legitimando e dando status à velha guarda.

Em relação a algumas mudanças, como a presença das mulheres na capoeira, não houve resistência alguma dos Velhos Mestres.

Já outras, como a criação de um organismo, do tipo “fundação” ou até mesmo uma “central de capoeira”, nos Estados Unidos,  a reação adversa foi imediata.

Foi discutido, também, um assunto que era tabu: o racismo na capoeira.   

O que emerge deste Encontro, de 1984, são novas tendências e rumos, coisa evidente pelos temas das palestras e dos debates, e principalmente pelo convite e destaque dado aos Velhos Mestres e à capoeira angola.

Uma coisa completamente diversa do encontro de 1969, no qual temas como descaracterização e racismo nem de longe eram apreciados; o enfoque sendo feito, naquela época (1969), em como homogeneisar os diferentes segmentos, colocá-los sob a tutela de um orgão federal central e criar a “capoeira-esporte”.

Noutro encontro nacional de grande participação , realizado três anos depois em Ouro Preto, em 1987 – sob a direção de Macaco (fundador do Grupo Ginga), de Belo Horizonte, e com o patrocínio da Universidade Federal de Ouro Preto -, o objetivo era “promover e divulgar a capoeira junto a comunidade em geral, como uma manifestação cultural popular em suas diversas formas de expressão”.

É significativa a preocupação de colocar a capoeira no domínio do “cultural popular” ao invés do desportivo, e na especificação das “diversas formas de expressão “, contrárias às tendências homogeinizantes, hegemônicas desde meados da década de 1960.

Novamente, semelhante ao encontro (no Rio)  de 1984, eu fui uma espécie de relator. Mas para falar a verdade, com muito menos competência e dedicação que em 1984: a cachaça mineira, várias simpáticas senhoritas, e as rodas nas ladeiras da cidade, tomaram bastante do meu tempo.

Neste encontro confirmaram-se os rumos que se delinearam no Encontro de três anos antes, tanto na escolha das palestras e no destaque dado a Velha Guarda (já, agora, com bastante prestígio), como também pelo decorrer das rodas – com muita ênfase no ritual, na parte de jogo, de ludicidade, de criatividade e improvisação.

Foi uma melhoria em relação ao Encontro de 1984 (no Rio), de três anos antes, onde, apesar do discurso de “troca de idéias e experiências” (que realmente rolou nas palestras), houve bastante violência nas rodas – p. ex., um carioca levantou Gideon, de Cabo Frio, e cravou-o no chão, quebrando sua clavícula -; e apesar de “8 estados estarem representados” em 1984, mais de 75% destes representantes eram ligados ao Camisa (que na época era do Grupo Senzala) ou ao Grupo Senzala.

Eis os temas das palestras do encontro  de Ouro Preto (1987):

– origem e evolução da capoeira;

– capoeira esporte; capoeira arte;

– capoeira no Brasil;

– fundamentos da capoeira angola;

– histórias e “causos” de capoeira;

– capoeira para deficientes;

– capoeira na escola;

– ritmos e música na capoeira;

– capoeira, cultura, esporte e Educação Física;

– fundamentos da capoeira regional e atual;

– capoeira na comunidade; a formação da capoeira.

A vitória da mandinga sobre o tele-real

O que se viu, na década de 1980, foi a retomada – favorecida por fatores externos, e impingida por fatores internos, à geração Senzala – da estratégia “capoeira como cultura” – estratégia das mães-de-santo baianas dos meados do século XIX, e de mestre Pastinha nos meados do século XX -, sem abrir mão dos ganhos – técnica e status – conquistados a partir de 1930 com Bimba, o Grupo Senzala, e seus contemporâneos de São Paulo (Suassuna, Acordeon, etc.).

É difícil aceitar esta “vitória” da mandinga sobre o “tele-real”, em especial quando observamos o que aconteceu com, por exemplo, a “obra de arte”.

Quando na Grécia Antiga se fazia um objeto, isso era movido pelo valor-de-uso e por uma dimensão mítica; isto também acontece no universo nagô, onde uma ferradura remete a uma certa energia chamada Ogun: ferro, forja, energia desbravadora e civilizadora.

A arte era um meio adequado de produção destes objetos.  Hoje, a obra de arte está completamente vinculada ao mercado de consumo e legitimada pela mídia.

O ato cultural não se limita a impor valores de classe ou economicistas; há uma “ideologia” da dominação do signo, para além da política e da economia.  Nos Estados Unidos, as atividades culturais de grande público estão sob controle das transnacionais; os desejos são criados – publicidade – e atendidos pelo complexo industrial.

Mas ainda existem exigências artísticas nos segmentos onde o capital penetra fracamente – contexto da capoeira.

Somente levando em conta este último fato, poderemos aceitar a reviravolta de 1985, quando são trazidos de volta os mestres da “Velha Guarda” da tradicional capoeira angola (em oposição, por exemplo, ao que aconteceu com o desfile das escolas de samba cariocas assediado pelo dinheiro dos bicheiros e pelo olhar da televisão, a “máquina de narciso”).

No entanto, nunca é demais frisar: se os Velhos Mestres não estivessem à altura dos acontecimentos, poderiam ter se tornado marionetes manipuladas pela geração regional-senzala; legitimando esta última, mas sem possibilidade de reintroduzir os elementos da música, do ritual, ludicidade e mandinga descartados.

NOTAS:

600 PASSOS NETO, N.S. dos. (Nestor Capoeira). Op. cit., 1995.

601 ibidem pp.110-117.

602 LEWIS, J.L. Ring of liberation.  Chicago:  Univ.of Chicago Press, 1992.  P.210.

603 Ibidem, pp.212-213.

604 ASSUNÇÃO, op.cit., 2005, pp. 204 e 207.

605 KEHL, M. R. “Um só povo, uma só  cabeça, uma só nação”. Anos 70, nº 5, televisão. RJ, 1979.

606 “Tele-real” é uma expressão de Muniz Sodré: valores da “tele-realidade” da televisão. Curioso que Camisa e a Senzala que, justamente, eram carros-chefes da expansão da capoeira daquele período, em sintonia com os valores dos estamentos  hegemônicos de então, subitamente efetuam  esta inesperada mudança, afastando-se dos valores “tele-reais” no encontro de 1984, já presentido que haviam outras forças e energias pintando no pedaço.

2.7.3 – ÚLTIMOS COMENTÁRIOS SOBRE OS 1970s E 1980s

Este período é muito vulnerável às criticas, pois as principais “locomotivas” que movimentaram o cenário e o universo da capoeira tinham entre 20 e 30 anos, no início do período, em 1970; e entre 40 e 50 anos no final, em 1990.

A inexperiência e a arrogância típicas da juventude liderando uma arte tão complexa, certamente era um fator preocupante. Mas a energia, o axé, a dedicação, e a vivência que estes jovens vão adquirindo nestes 20 anos, 1970 a 1990, até entrarem na maturidade, conferem uma real beleza a este período.

Vamos começar pelas críticas.

Mas devemos entender que as críticas são apenas uma faceta deste período, 1970-1990. As pessoas gostam das posturas apocalípticas e das critícas radicais. Mas no fundo, esta atitude disfarça e maqueia a realidade da maioria; transferem a mediocridade, a mesquinharia, e a consequente insatisfação interna da própria pessoa que faz a crítica, para eventos na sociedade (no nosso caso específico, para eventos na capoeira).

Cavalo tem muito, São Jorge é um só.  

A “visibilidade” e o “visual”

Os “estratos” são formações históricas feitos de “coisas e de palavras, de ver e de falar, de visível e de dizível, de regiões de visibilidade e campos de legibilidade”.  

Foucault espera, da história, uma “determinação dos visíveis e enunciáveis em cada época” (607), nos explica Deleuze.  Ou ainda: quem tem o poder de dizer “o que aquilo é”, e como estes pontos de poder se relacionam (ao invés de saber se o que está sendo dito é “verdade ou não”).

Deleuze parece, também, enfatizar que não se trata, em Foucault, de uma história das mentalidades, ou dos comportamentos – enunciados e visibilidades são elementos puros, condições a priori. Nem tampouco do “espírito da época”; nem de algo similar aos arquétipos de Jung – sempre os mesmos, que se apresentam diferentemente conforme época e local.

As evidências, de época para época, é que são diferentes; as rupturas é que são enfatizadas por Foucault.

Vamos seguir as pistas da “visibilidade”:  

as visibilidades não se definem pela visão, mas são complexos de ações e de paixões, de ações e de reações, de complexos multisensoriais que vêm à luz. (608)

Após a década de 1930, quando Vargas permitiu a prática de capoeira “em recinto fechado”, a capoeira era praticada dentro de uma roda formada pelos jogadores.

Entre estes alinhavam-se, um ao lado do outro, os que tocavam os instrumentos musicais, que eram, geralmente  mas não necessariamente, os mais velhos e mais conhecedores do jogo.

Esta roda podia ser dentro de um “recinto fechado” – uma sala, como a academia de mestre Pastinha ou Bimba, no Largo do Pelourinho, em Salvador, na década de 1960 -; ou então ser uma roda em local aberto (apesar da restrição “recinto fechado”, imposta por Vargas), como a roda regida por mestre Waldemar da Paixão, no bairro da Liberdade.

A roda – e a capoeira – apresentava-se com uma certa visibilidade para quem olhasse “de fora”. Por outro lado, a roda também apresentava uma certa visibilidade para os capoeiristas que participavam dela: viam todos seus camarás no mesmo círculo que eles.

Nas cerimônias do candomblé havia, também, uma roda com os tocadores de atabaque alinhados em um certo local.  O mesmo para uma roda de samba.

Coisas diversas, sem dúvida.

Mas para um estrangeiro acostumado ao palco italiano (os assistentes sentados na platéia, e a orquestra no fosso), esta “exótica” visibilidade brasileira era semelhante no candomblé, samba de roda, e capoeira.

No entanto, algo diferenciava a capoeira do candomblé: o berimbau, que “comanda” a roda, passava de mão em mão.  O mesmo acontecia com os outros instrumentos musicais.  Além disto, num momento, uma pessoa “puxava o canto”; noutro, era outra.  Os papéis eram intercambiáveis.

No candomblé, não. Somente os alabês tocam os atabaques.

Além disto, os capoeiristas vestiam-se com suas roupas normais de andar na rua (no candomblé, temos as roupas e apetrechos dos orixás).  Alguns – como o saudoso mestre Waldemar da Liberdade -, primavam pela elegância malandra e espalhafatosa das calças, ou ternos de linho branco, e camisas de seda italiana.

Esta “visibilidade” – este “visual”, diria a rapaziada – mudou completamente, primeiro com Bimba, em 1930 (a rapaziada treinava de calção, na sua academia); depois com Pastinha e seus uniformes preto-e-amarela, em 1941; mais fortemente, após 1960, no Rio e em São Paulo e depois por todo o Brasil (com as calças brancas, e as cordas ou cordéis coloridos na cintura).

Na parte inicial da aula: não mais a roda com dois jogadores jogando livremente, mas o professor à frente da turma que o segue em uníssono.  A roda, no final, ocupa apenas um terço da aula;  os “treinos”, dois terços do tempo.

Sem falar que nas academias de “sucesso” era indispensável, cobrindo toda uma parede, um espelho – Sodré (609) já nos disse como, no século XVII, o indivíduo através o espelho começou a ver com perfeição a própria imagem exaltativa do “eu”, em oposição ao sentimento “grupal” anterior, “resquícios da comunidade tradicional, aquela caracterizada pela incorporação do indivíduo ao grupo” (610), nas palavras de Paiva.

Em algumas academias, o professor encarava os alunos com o espelho às suas costas – os alunos viam o professor à sua frente e também viam a si mesmos, em “formação militar” e movimentando-se em uníssono, refletidos no espelho.  Em outras academias, o professor também encarava o espelho onde via refletida sua imagem e as dos alunos, aos quais controlova para que repetissem os movimentos com semelhança total (postura do corpo, dos braços, pernas, mãos, pés, cabeça; forma e velocidade do movimento ou golpe, etc.).  Todos com o “uniforme” da academia, com suas respectivas “cordas” ou “cordéis” de diferentes cores na cintura, conforme sua posição na hierarquia daquele grupo.

Na visibilidade da aula de capoeira contemporânea (regional, angola, e outras), fica claro que a posição do professor com relação aos seus alunos não proveio da tradição, mas das artes marciais orientais, da Educação Física, da ginástica praticada nas academias de “malhação”, ou do sargento à frente do pelotão de soldados do exército.

Uma autoridade exercida, na capoeira, num leque que vai do déspota benevolente ao autoritarismo de um ditadorzinho frustrado.

Por exemplo,se naquela época, ou hoje (2009), algum capoeirista quisesse ir ao lançamento de meu novo livro numa livraria, este capoeirista teria que pedir licença ao seu mestre. A grande maioria dos mestres diria ao aluno: “pode ir”. Mas alguns perderiam a calma: “lançamento do livro do Nestor? Aquele cachorro? Você ficou louco? Ele é nosso inimigo! Você não sabe o que ele escreveu no penúltimo livro? Você pode ir, mas é pra dar um tiro na cara daquele fila-da-puta!”. E o capoeirista não iria, mesmo se tivesse 38 anos de idade, 25 de capoeira, mais de 50 alunos pagantes e ser economicamente independente, e ter mulher e 2 filhos.

O leitor deve achar que estou exagerando, ou que um autoritarismo deste tipo é exercido somente por uma meia duzia de mestres fascistas. Mas não: este tipo de relacionamento, entre aluno com o chefe do grupo de capoeira, é o normal; é o que acontece em mais de 90% das academias.

Outro aspecto da visibilidade era a eletrola e o toca-fitas.

Eletrola e toca-fitas modernos, vistosos, importados, com alto-falantes estereofônicos pendurados na parede, de cada lado da sala, colocados em local de destaque como um pequeno altar.

Esta eletrola tomou lugar do berimbau (ou berimbaus, “tradicionalmente” eram três),  que na hora da roda eram passados de mão em mão.  Numa academia de capoeira de status, na década de 1970, tinha de ter uma eletrola (para os discos) e um toca-fitas (para as fitas cassete).  A roda era feita ao som de um disco ou fita de capoeira.  Fazer a roda com música ao vivo – com berimbau, pandeiro, atabaque e as palmas e o canto em coro – era coisa de professor de capoeira “subdesenvolvido”; sem dinheiro para comprar o toca-fitas, sem sucesso em número de alunos e valor de mensalidades cobrada.

A questão do “quem tem o poder de falar?”, não poderia ser mais clara: a eletrola, a tecnologia.

Pois não se tratava de tocar apenas os “clássicos” – o disco de Traíra e Cobrinha Verde, o de mestre Bimba, mestre Pastinha, mestre Caiçaras -; qualquer Zé Mané que gravasse um disco de capoeira também era tocado.

Não se tratava de “quem” tocava e cantava no disco, mas do fato de ter uma eletrola na academia.

Não importava a mensagem, e sim a mídia.

Nas grandes metrópoles, estas academias “modernas” representavam o sucesso – dinheiro e status -, e estavam geralmente localizadas nas áreas da classe média, ou dos novos ricos e emergentes. Estas academias “modernosas” também existiam nas cidades menores, e nas capitais em que há uma grande discriminação contra a capoeira – e contra o negro -, como algumas capitais do sul ou do nordeste do país.

No entanto, no fim do período que estudamos, por volta de 1990, nas partes ditas “nobres” da cidade, o professor começou a procurar uma aparência mais “rústica”, “primitiva”.  A visibilidade “sofisticada” começou a ser considerada “cafona” ou “careta” – semelhante às mulheres com uma visibilidade excessivamente maquiada e cheia de jóias vistosas, as chamadas “peruas”.

Hoje em dia, um professor experiente, no Rio de Janeiro, dará preferência a uma academia “sofisticada” nos bairros da periferia e nos bairros de novos-ricos, como a Barra da Tijuca; e procurará um visual “mais simples” num bairro mais sofisticado como o Jardim Botânico.

No Jardim Botânico ele pode, inclusive, dar aulas ao ar livre – “… é tão ecológico!” -, numa praça, ou na quadra de futebol de salão (ao ar livre) de uma cara universidade particular.

Quem fizer isto numa área carente – ou, até mesmo, numa área de emergentes novos-ricos -, se caracterizará como “um pobretão, um mal-sucedido que não tem dinheiro para alugar uma sala para dar aulas”.

Durante as décadas de 1960 e 70, muitas vezes a própria roda era executada ao som da eletrola.

A partir aproximadamente de 1990, como explicamos, esta visibilidade não era mais “politicamente correta”, em especial nas àreas nobres das grandes capitais, onde grande número de alunos eram universitários e mais sensíveis à opção da roda com berimbau, uma vez que possuir uma eletrola – para estes alunos – era coisa banal e não um símbolo de status.

No entanto, os capoeiristas todos vestidos iguaizinhos com o uniforme da academia, cada um com sua respectiva “graduação” – o cordel ou corda de diferentes cores amarrado na cintura -, continuava contrastando com a antiga visibilidade das rodas da década de 1950.

Os alunos – assim eram chamados e considerados (em oposição a “os capoeiristas” ou “os jogadores”) -, ao se acocorarem no pé do berimbau, antes de jogar, já se colocavam, a priori,  numa relação ditada pela cor da corda – hierarquia, graduação – que usavam no cintura.

Além disto, antes de 1970,  o ritmo (o toque do berimbau) era inicialmente lento, só depois de muitos jogos tornava-se mais rápido.

Nas rodas das década de 1970/80, influenciados pelo modelo regional-senzala, o ritmo já começa o mais rápido possível, caracterizando uma visibilidade de jogo rápido, objetivo, vigoroso – muitas vezes, beirando a fronteira da luta -, diversa da visibilidade dos jogos lentos que iniciavam as rodas, onde podiam ser inseridos os elementos rituais e lúdicos, de manha e malícia, de floreio e estilo e malandragem da capoeira tradicional.

A visibilidade apresentada pelos jogadores também se modificou.

Anteriormente os jogadores respondiam ao coro e batiam palmas, dando uma visibilidade de total integração.  A partir do período 1970-1990, muitos jogadores ficam “plantados”, os pés afastados e os braços cruzados, uma expressão séria, arrogante e ameaçadora no rosto – não raro com uma das sobrancelhas mais levantada que a outra -, e o olhar que circulava lenta e ameaçadoramente de um ponto a outro.

Poderíamos pensar que a re-entrada da capoeira angola, por volta de 1985, iria modificar para melhor este quadro.

E realmente isto aconteceu.

Mas mais no que se refere aos berimbaus e à música (o que já é muita coisa); e ao reaparecimento de uma outra opção, diversa do estilo regional-senzala uniformizado, uniformizante, e hegemônico.

Mas infelizmente, as mudanças pararam por aí.

O autoritarismo dos mestres dentro das academias de capoeira angola – “mestre, posso ir ao lançamento do livro?” – conseguiu ser ainda maior que os da regional, algo que parecia impossível.

Os novos mestres e professores angoleiros desenvolveram um discurso fechado, messiânico, dogmático, que lembrava o discurso dos estudantes de esquerda nas universidades brasileiras naquele mesmo período (da ditadura militar de direita), ou então o discurso radical das novas “seitas” cristãs que tanto sucesso fazem hoje em dia (2009).

Os angoleiros se colocavam como a única salvação quando, na verdade, o autoritarismo, a discriminação, a uniformização, grassava tanto, e às vezes até mais, quanto dentro dos círculos regional-senzala.

No entanto só por haver outra opção (embora tão fechada e limitada quanto a anterior), novos ares refrescaram o universo da capoeiragem.

O clarão límpido dos fundamentos da malícia

Apesar de todas estas críticas, também era possível vislumbrar muitas vezes, na capoeira de 1970-1990, como um relâmpago no meio da obscuridade, o clarão límpido e inesperado – os “fundamentos da malícia” -, no jogo de excepcional nível técnico e de  muita mandinga, dos melhores capoeiristas daquele período:

– João Grande (1933 ????), o angoleiro discípulo dileto de mestre Pastinha (ao lado de João Pequeno), que durante o período 1970-1990 foi obscurecido pelo sucesso da regional, mas em 1992 volta a brilhar, já em Nova Iorque;

– Suassuna (1940 ??????? ), o baiano de Itabuna que se tornou seminal em São Paulo com seu grupo “Cordão de Ouro”;

– Acordeon (1940 ??????? ), o discípulo de Bimba que, após passar por São Paulo, se radicou nos Estados Unidos, em 1978, tornando-se uma referência;

– Peixinho (1947), que pertencia ao grupo inicial da Senzala, desde o início dos 1960 e, hoje (2009) é seu principal vetor;

– Moraes (1950), que veio de Salvador para o Rio em 1970, fundou o Grupo Pelourinho de Capoeira Angola, e 12 anos depois, a partir de 1982, reergueu a capoeira angola em salvador;

– Camisa (1953 ??????? ), que veio para a Senzala do Rio em 1972, trazido por seu irmão mais velho, Camisa Roxa (de Bimba), e que, por volta de 1990 sairia da Senzala depois de 18 anos, para abrir seu grupo Abadá.

Quando chegamos no final do período que estamos estudando – em 1990 -, estes excepcionais jogadores, que também eram os mestres carismáticos de grupos extremamente influentes, quando se encontravam numa roda extrapolavam os limites do Jogo.

Estes caras já tinham influenciado mais de uma geração de capoeiristas, no Brasil e exterior;  mas ainda eram jovens em 1990 – entre 40 e 50 anos. Nas décadas seguintes ainda teriam muito a dizer.

No entanto, para mim (Nestor Capoeira), a admiração que sinto por eles manifestava-se principalmente quando eu os via jogando entre si. Algo que faria Bimba sorrir e dizer: “… bonito!”.

Algo que faria Pastinha pensar: “menino da menina dos meus olhos”.

NOTAS:

607 DELEUZE, op. cit., 1995, pp. 57-58.

608 Ibidem, p.68.

609 SODRÉ, op. cit., 1977, pp.14-22.

610 Paiva, Rachel. Op. cit., 1998, pp.17-18.

2.7.4 – A ESTRUTURA EM 1990: A VELHA GUARDA, A REGIONAL-SENZALA, E A “NOVA” GERAÇÃO

Já mencionamos os velhos mestres baianos – a Velha Guarda ; e também os mestres (nascidos por volta de 1945) da geração regional-senzala; e até alguns mestres mais novos que foram seminais em cidades que se tornaram centros irradadores de capoeira, como Belo Horizonte, Curitiba, e Recife. etc.

Agora, vamos estruturar o mais claramente possível estas gerações, como se apresentavam em 1990.

Este “mapeameamento” é importante pois trata-se do fim de mais um ciclo, e do início de um novo.

Os mestres da Velha Guarda, que reapareceram no cenário por volta de 1985 com grande força, irão, quase todos, falecer no período seguinte, de 1990 a 2000. Restaram, até nossos dias (2009), somente uns poucos: os mais novos, como João Pequeno e João Grande. Ou seja; a Velha Guarda vai aos poucos sair de cena e passar o bastão para as gerações mais novas.

Por sua vez, os mestres da geração regional-senzala, nascidos por volta de 1945, que dominaram todo o período de 1970-1990, continuarão com força total até nossos dias. Tantos os mais velhos desta geração, como Acordeon e Suassuna, nascidos por volta de 1940; quanto o pessoal da Senzala, muitos deles nascidos por volta de 1945; assim como os mais novos, nascidos por volta de 1950, como Moraes e Camisa.

Os mestres da (então) “nova geração”, como Mulatinho, Mão Branca, e Burguês; assim como alguns excepcionais jogadores, como Espirro-Mirim, Cobrinha Mansa, e Camaleão; que começam a aparecer por volta de 1985, vão se firmar e, a partir de 1990, aos poucos serão tão influentes como a turma mais velha.

Quando chegamos em 1990, eu (Nestor Capoeira) estava com 44 anos de idade, e 25 de capoeira. No período entre 1970 e 1990, passei metade do tempo, em diferentes períodos, no estrangeiro, ensinando capoeira, fazendo shows, comenda as gringas.

No Brasil, comecei a me tornar conhecido por ter sido o “herói” capoeirista do filme Cordão de Ouro (1979); por ter publicado dois livros (1981 e 1985); e gravado um disco LP  com músicas de capoeira (1985). Sem falar das aulas; dos shows em teatro e na TV que eu próprio produzia e organizava; e nas viagens “capoeirísticas” por todo o Brasil, no lançamento dos meus livros ou apenas porque tinha “entrado numa” (de viajar), algo que não era comum naquela época.

Então, tive a sorte e o prazer de conhecer e conviver com todos “atores” do cenário da capoeira daquelas décadas; de ver e viver o desenvolvimento em diferentes cidades e países, diferentes estilos, diferentes academias.

Tem sido uma viagem e tanto.

A Velha Guarda

Em 1974, mestre Bimba faleceu; e em 1981, mestre Pastinha. A geração seguinte, mais nova que eles, ficou conhecida como a “Velha Guarda”.

Os mestres da chamada “Velha Guarda”, da capoeira angola de Salvador, são homens nascidos antes de (aproximadamente) 1930. Em 1990, estavam na faixa etária dos 60 a 80 anos de idade, muitos com mais de 50 anos de capoeiragem.  Eram uns dez ou quinze em atividade.

O conhecimento, prático e teórico, destes homens, era transmitido aos poucos, através dos anos, à medida que observavam o desenvolvimento do iniciante e que se estabeleciam laços de confiança e camaradagem.

Em sua maioria, eram extremamente gentís e atenciosos, aparentemente não apresentavam a tradicional “esquiva” e “desconfiança” característica ao capoeirista.  No entanto, ao se tentar colher informações, apesar das respostas prolixas, só se conseguia como resposta o óbvio, ou até mesmo informações desencaminhadoras.  Eram eles (os mestres) que, em momentos específicos, decidiam o que era necessário transmitir.

Eram , na quase totalidade, baianos, negros ou mulatos, de baixo nível de escolaridade.

Apesar de não serem todos adeptos do candomblé, sua visão geral do mundo tinha sido amplamente influenciada pela cosmogonia afro-brasileira.

Mais tarde (mas isto foi mais tarde), a partir aproximadamente de 1995, vários viajaram para os USA e Europa a fim de dar cursos; sem falar nas constantes viagens pelo Brasil, convidados para os “batizados” e outras festividades realizadas nas academias de outros capoeiristas, estando, desta maneira, extremamente atualizados com a realidade e o momento atual da capoeira.

Este constante viajar e o contato com pessoas de outros contextos, abriu, mais ainda, a cabeça destes homens. Apesar da idade, 60 a 80 anos, muitos ainda estavam, em 1990, em boa forma física, jogando com qualquer capoeirista.   

Apesar destes pontos comuns, que não são poucos, são pessoas de idéias e personalidades extremamente diversas.  Existem velhos antagonismos entre eles e, não raro, uma resposta ou informação visa muito mais “derrubar” um adversário, ou à linha de capoeira à qual este esta ligado, do que esclarecer com transparência o que foi indagado.

A situação ideal para a colheita de dados era encontrar três ou quatro destes mestres numa mesa de bar: após algumas horas, as divergências entre eles produziam valioso material de campo.

Quem eram os mestres da Velha Guarda, em 1990?

Alguns, como Aberrê, Maré, Juvenal; eu (Nestor Capoeira) não conheci. Outros, que tive o prazer e a honra de conhecer, tiveram grande influência, não somente no que se referia à capoeira, mas também sobre a pessoa que eu estava me tornando: Canjiquinha (1925-1994), Valdemar da Liberdade, Noronha, Caiçaras, Atenilo (o único regional, entre os “velhos), Gato (não é o Gato da Senzala do Rio, de 1947), Cobrinha Verde, João Pequeno.

E alguns outros, um pouco mais moços: João Grande (1933 ????? ), Leopoldina (o único carioca, 1933-2007), Decânio e Jair Moura (de Bimba), Paulo dos Anjos (1936-1996).

A grande maioria, hoje (2009), está morta. Sobraram apenas Decânio, João Pequeno, João Grande, e Jair “Perigo” Moura.

A geração regional-sezala

Outro segmento importante no mundo da capoeiragem foram os mestres nascidos por volta de 1945.  Em 1990, tinham de 40 a 50 anos de idade e uns 30/35 anos de capoeiragem.

Vamos chama-los de  “geração regional-senzala” .

Esta geração, uns 50 capoeiristas espalhados entre Rio, Salvador, SP, Brasília, Estados Unidos, foi (e ainda é) a que mais movimentou o mundo da capoeiragem no período 1970-1990. E se houve “melhorias” ou “deturpações”, foi justamente esta geração que introduziu estas mudanças. As gerações que vieram depois – pelo menos até agora, 2009) -, simplesmente seguiram as trilhas e os modelos criados pela regional-senzala.

O perfil sócio-cultural da geração regional-senzala é bem diverso da “velha guarda”. Os regionais-senzala, em grande parte, foram formados ou profundamente influenciados pela capoeira regional, criada por mestre Bimba.

Quase 70% são brancos da classe média que tiveram acesso à universidade.  O restante 30%, negros, que coincide com uma origem nas classes economicamente desfavorecidas, também – em sua maioria -, tiveram acesso através da capoeira (contatos e dinheiro das aulas) ao ensino superior.  A Faculdade de Educação Física é a que mais representantes tem, apesar de encontrarmos, praticamente, todas as áreas do ensino acadêmico representadas.

Da mesma forma que a velha guarda, as viagens ao exterior e a todo o Brasil eram (e são) frequentes; o acesso e o convívio com a TV, o cinema, o teatro, a música – e àqueles que pertencem a estes universos -, é fato já integrado, há muitos anos, no dia-a-dia destes capoeiristas.   

Para o pesquisador, as dificuldades de colheita de material são semelhantes à velha guarda: cada um destes mestres é um feroz defensor de seu grupo ou estilo e isto – para eles – é mais importante que responder corretamente às perguntas de uma pesquisa.

Mas quem são os mestres da Regional-senzala?

São os caras da minha geração.

Em 1990, haviam, talvez, uns 30 destes capoeiristas em atividade. Mas hoje, apenas uns dez continuam em plena atividade, com uns 55/70 anos de idade. Todos são muito conhecidos.

Os mais velhos, Suassuna e Acordeon. Depois, Peixinho, Gato, Tabosa, Jelon Vieira, Itapuan.

E alguns, um pouco mais novos, que não participaram do início da criação dos “modelitos” e infra-estruras; quando começaram a ter influência, os caminhos já estavam desbravados.  Mas depois tiveram ativa participação: Moraes (angoleiro), Camisa, Nô, Sombra, Lua Rasta (angoleiro).

A “nova” geração  

Além da velha guarda, quasse toda da angola de Salvador; da geração regional-senzala, quase toda da capoeira regional; também já se fazia sentir, em 1990, a influência de uma “nova geração” de mestres, nascidos (aprox.) em 1960, e que em 1990 estavam na faixa de 30 a 35 anos de idade, e uns 15 anos de capoeiragem.

Esta geração é composta, em oposição às outras duas mais velhas, por centenas de mestres e foi gerada durante o período de expansão: entraram para a capoeira depois de 1970. No entanto, em 1990 e também hoje (2009), apenas uns vinte têm influência a nível nacional/internacional.

Enquanto praticamente todos mestres da velha guarda da angola sao negros e mulatos das classes populares; e que a maioria da geração regional-senzala são brancos da classe média; na “nova geração” esta divisão é mais equilibrada, e não existe um relacionamento entre o estilo de capoeira – angola ou regional – com a cor da pele ou com a classe econômica.

Existem, ainda, milhares de jovens professores – a “novíssima” geração -, nascidos após 1970 , que em 1990 tinham 15 anos de idade, em 2009 têm uns 30/35 anos, e dão aulas e engrossam as fileiras da capoeiragem.  Mas estão , todos, sob a tutela de seus mestres e  sua influência – individual e direta – nos rumos da capoeira é mínima.

Mas, como grupo, é óbvio que sua influência também é determinante pois talvez sejam uns 20.000 entre os 25.000 estimados professores e mestres de capoeira.

Mas quem são os mais conhecidos mestres da “nova geração”?

São capoeiristas que, em 1990, tinham por volta de 20/25 anos; hoje (2009) têm (aprox.) 40/45 anos, Entre eles se tornaram muito conhecidos: Mão Branca, Burguês, Mulatinho, Boneco, Paulão Ceará, Paulinho Sabiá, Cobrinha Mansa; e alguns mais moços como Espirro-Mirim, Barrão (Canadá), Samara e Grilo (Holanda), Camaleão (Marselha), Bruzzi (Montpelier) etc.  

A “bagagem da “novíssima” geração  

Um novo elemento, contrário ao “padrão tele-real” – valores contemporâneos que são difundidos pela televisão (e outras mídias) -, diz respeito aos mestres da “novíssima geração”, que nasceram após 1970 e foram crescendo, justamente, no período de maior influência da ação pedagógica da televisão – 1975-1990 -; e que, na adolescência, quando aprendiam capoeira, conviveram com o começo da “globalização”, dos computadores, Internet, e telefones celulares.

Mas a “novíssima geração” também sofreu as influências  da reviravolta de 85; quando a capoeira angola renasceu. E talvez assim se explique como vários (não são muitos) conseguiram quebrar (de maneira positiva), em parte, os modelos (da regional-senzala e da neo-angola) que foram criados pelos regionais-senzala nas décadas de 1960/1970, pelos angoleiros nas décadas de 1980/90, e que continuam vigorando em nossos dias (2009).

Ou seja, alguns destes jovens professores (vários são contramestres e alguns, de grupos não tão exigentes, carregam o título de “mestre”), estão conseguindo  pensar com a própria cabeça,  longe das “lavagens cerebrais” do grupo ao qual pertencem, e também dos valores estereotipados “tele-reais” e “globais”. Infelizmente são poucos; mas não é necessário  muita gente para carregar a pequena chama que poderá acender as fogueiras de um tempo futuro.

E, se não for este o caso (que provavelmente não será) – um futuro melhor -, ao menos podemos confiar que a capoeira estará em boas mãos, como também acontece agora (2009), apesar de todas as minhas duras (e justas) críticas. Alguns destes destes jovens já são conhecidos no Brasil e exterior, pela excelência do jogo e pelas realizações:

– Jorge Itapuã Beiramar, com seus DVDs (Mestre Leopoldina, a fina flor da malandragem; e Escola Nestor Capoeira), além dos vídeos de jogos, e do canal que criou na Internet;

– Ferradura (aluno de mestre Marrom), com seu hostel (RJ) que abriga estrangeiros de passagem no Brasil;

– Esquilo (aluno de mestre Suassuna), que praticamente mora dentro de um avião a jato; já esteve 23 vezes somente em Israel;

– Poncianinho (aluno de mestre Suassuna e Espirro-Mirim), que apesar da juventude é o capoeirista de mais alunos e que mais movimenta Londres.

E muitos outros.

Atualmente, em praticamente todas as academias destes jovens professores é constante a temática da necessidade de “bagagem”: “capoeira que é bom, tem de ter bagagem!”

Esta tal “bagagem”, tão valorizada pelos jovens professores de (aprox.) 30/35 anos, envolve vários saberes:

a) Saber jogar em ritmo lento, dentro do ritual e com malícia.

b) Ter jogo rápido e objetivo; com golpes velozes, precisos, potentes, para os ritmos rápidos de berimbau.

c) Dominar o floreio e os movimentos acrobáticos.

d) Tocar berimbau (os toques da angola, e os da regional); pandeiro; atabaque. Ter alguma noção do pandeiro no samba; do atabaque no macuelê, puxada-de-rede, e candomblé.

e) Cantar e compor música de capoeira.

f) Conhecer o histórico da capoeira, e os grandes mestres do passado.

g) Conhecer os fundamentos e a filosofia.

h) Viajar pelo Brasil (e posteriormente pelo estrangeiro), visitando e jogando nas principais academias; conhecendo os capoeiristas famosos pelo seu jogo; e em especial, jogando, e “trocando idéia” com os mestres da geração nova, da regional-senzala, e os sobreviventes da velha guarda.

i) Desenvolver um trabalho de ensino que produza alunos que conheçam a parte teórica e prática do Jogo. Formar (no futuro) mestres que sejam admirados pelo resto da comunidade.

j) Com o passar do tempo, assumir um lugar entre os mestres mais conhecidos e influentes da capoeiragem, ao lado dos mestres da nova, regional-senzala, e velha guarda.

O processo de “adquirir bagagem” está em total ressonância com os preceitos e fundamentos defendidos pelos mestres da velha guarda e, como vemos, em oposição ao padrão tele-real do (exclusivamente e em primeiro lugar) dinheiro e do consumo.

QUEM É MESTRE NESTOR CAPOEIRA?

Nestor Capoeira (Nestor Sezefredo dos Pasos Neto, 1946) foi iniciado em 1965 por mestre Leopoldina (1933-2007), um ícone da capoeiragem e da malandragem carioca.  Mais tarde Nestor juntou-se ao Grupo Senzala do Rio de Janeiro onde recebeu a corda-vermelha (graduação máxima da Senzala) em 1969.

Em 1992 ele começou um trabalho independente, com metodologia de ensino própria, na sua Escola Nestor Capoeira.

Nestes últimos 45 anos, Nestor jogou, ensinou, pesquisou e difundiu a capoeira no Brasil e no estrangeiro.

Foi o pioneiro do ensino fora do Brasil, começando na London School of Contemporary Dance, em 1971.  Viveu e ensinou no estrangeiro 12 anos, em diferentes períodos, entre 1971 e 1996.

Atualmente passa de 3 a 5 meses na Europa e América do Norte, todos os anos, ensinando; dando palestras; fazendo apresentações em teatros, universidades, TV, etc.

Organizou e participou de 2 “especiais” de uma hora (TVE 1979, 1984). Foi o ator principal do longa Cordão de Ouro (1978),

Escreveu o roteiro e produziu dois DVDs (documentários, 50 min. cada): Nestor 40 anos de Capoeira (RJ, 2004), e Mestre Leopoldina, o bom malandro (RJ, 2008).

Gravou um disco LP com músicas de capoeira, Galo Já Cantou (1985); e uma fita cassete didática com Tony Vargas, Os Fundamentos da Malícia (1992),  ambos independentes e, atualmente, disponíveis em CD.  Gravou recentemente um CD duplo,  A Balada de Noivo-da-Vida e Veneno-da-Madrugada (a ser comercializado pela North Atlantica Books/Blue Snake, Berkely, USA, em 2011).

Escreveu 4 livros publicados no Brasil (Editora Record) e nos EEUU, Alemanha, França, Dinamarca, Holanda, Polônia, Finlândia e Portugal:

– Capoeira, o pequeno manual do jogador (1981)

– Capoeira, galo já cantou (1985)

– Capoeira, os fundamentos da malícia (1992)

– A balada de Noivo-da-Vida e Veneno-da-Madrugada (ficção, 1999)

Apresentou-se nos principais teatros brasileiros e em outros, no estrangeiro: Sala Cecília Meirlles, Teatro Municipal do Rio de Janeiro,Teatro Castro Alves.  Sadlers Wells (London), Paradiso (Amsterdam), The Kennedy Center (Washington, D.C.), etc.

Formou-se em Engenharia (UFRJ, 1969), trabalhou 2 anos na Light (Rio, 1969-1971).

Possui (Nestor S. dos Passos Neto) Mestrado (Ritual roda, mandinga x tele-real, ECO-UFRJ, 1995) e Doutorado (Jogo corporal e comunicultura, ECO-UFRJ, 2001) em Comunicaçao e Cultura, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Quando está no Brasil, dá aulas de capoeira às 2af, 4af e 6af no Galpão das Artes Urbanas, às 19 horas, na Gávea (Rio de Janeiro, RJ).

Bemvindos ao site de mestre Nestor:

www.nestorcapoeira.net

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