Carta do Mestre Squisito, apresentada na Camera Federal, sobre capoeira
Senhores e Senhoras presentes,
Muitas vezes a paixão dos não capoeiristas pela Arte se traduz numa relação platônica, às vezes atônita e insegura de ser manifestada, pois essa arte é misteriosa, fugidia, escorregadia aos contatos indesejados, que rejeita manuseios e usurpações…
Na Capoeira dizemos que ela é a água de beber que jorra nas correntezas das fontes da vida e cai como uma cachoeira: nela podemos matar nossa sede, podemos nos banhar, mas não podemos retê-la, pois ela irá escorrer por entre nossos dedos quando tentamos pegá-la em nossas mãos num gesto de tentar possuí-la…!
No caso de Manoel, porém, há uma diferença fundamental: ao se apaixonar pela capoeira ele se tornou um ativista, um perseguidor dos conhecimentos por trás da Arte, da magia por trás da fala que entoa e encobre os seus segredos centenários.
Com isso ele arranca aplausos do mais cético, do mais frio, do mais incrédulo de nós, de quem nunca ousou investir nesse terreno abstrato de nosso dicionário, transformando-se assim num pioneiro de inequívoco valor.
Mas, acreditem, felizmente esta obra de Manoel não é um caso isolado dentro da capoeira. Ela tem sido cultuada e cultivada, por dezenas e centenas de obstinados solitários que se atiram nos seus meneios e buscam lhe dar a sustentação documental que esteja a seu alcance!
Pensadores e estudiosos, estudantes, pesquisadores, professores, mestres e capoeiristas em geral, tem se desdobrado e produzido muito trabalho e documentos, teses e monografias, discos, filmes, textos, vídeos, peças, shows e músicas, jornais e reportagens, num sem numero de outros artefatos que a materializam no terreno intelectual, acadêmico, literário, educacional, desportivo, cultural e artístico, entre outras tantas possibilidades que nossa arte abriga e com isso temos hoje milhares de registros o mundo abstrato e metafísico da capoeira, como é o caso de Manoel…
No entanto, essa produção é sempre independente, autodidata, solitária e sofrida, complicada e desafiante, pois é quase sempre o produto de esforços
isolados e obstinados, quase contrariando as expectativas sempre pessimistas e negativas, que entendem a capoeira como uma construção desprovida de elementos formais de sua ciência, sua História e sua linguagem e sua produção…
Para se ter uma idéia dessa produção, em 1993, o MEC apoiou o lançamento de um trabalho sobre a Bibliografia da capoeira, onde já se registrava mais de 3.000 mil títulos publicados a seu respeito…!
Hoje esse número deve estar na casa de mais de 20 mil títulos publicados, haja vista a explosão em que se tornou a capoeira espalhada por literalmente todos os cantos deste país e por centenas de países mundo afora…
Manoel empenha toda a sua competência e coragem no seu trabalho original e se alinha com esses guerreiros emergidos do povo brasileiro que se tornam os que documentam e fazem respeitar mais um pouco a nossa arte nesse monopolizado mundo da produção intelectual em nosso país.
E isso é importante em particular porque temos certeza de que a capoeira é mais que um folguedo, é uma arte complexa e densa, que abriga muitas dimensões e pode oferecer muito mais do que uma prática lúdica simplesmente, desportiva ou cultural, artística ou filosófica, marcial ou plástica. Ao contrário, é tudo isso!
Essa produção toda não tira em nada o mérito de Manoel que com sua competência está focando num ponto absolutamente inédito dessa Arte, que é a sua dicionarização, iniciando assim a sistematização e a classificação de sua terminologia e isso nos faz refletir sobre o que falta, então, acontecer na capoeira.
Senhores e Senhoras.
O que falta à capoeira, é o mesmo que nos falta enquanto povo brasileiro:
– nós saímos da condição de banidos pelo direito oficial deste país, até termos o direito de estar do lado de dentro oficial das coisas!
– nós temos o direito de estar aqui, nesta casa, discutindo nosso futuro e nosso espaço de existência, e temos que agradecer por esta oportunidade e respeito manifestado aqui e agora;
– nós temos a gloriosa e histórica resistência contra a alienação dessa malfada globalização, onde o que se pretende é na verdade nos alijar de nossa própria identidade para nos tornar robôs compradores de subprodutos da indústria da cultura americana…!
– nós temos uma História secular de dignidade e de luta contra todas as formas de opressão, que não pode ser negada nem mesmo quando contada pelo opressor…!
– nós temos hoje o segundo maior numero de praticantes e seguidores de práticas desportivas neste país, só perdendo para o futebol;
– nós já estamos em milhares de instituições de ensino de todos os níveis deste país e do exterior;
– nós somos uma das mais importantes forças de inserção social de todos os tempos e trabalhamos com pessoas de todas as idades em praticamente todos os lugares desta Nação;
– nós temos consciência de um sem-número de jovens e adultos que temos tirado das ruas, em situação de risco social,
– temos canalizado energias de jovens de todas as faixas sociais, induzindo- os a se concentrarem numa atividade que os oferece espaço para exercitarem e conquistarem a sua vitalidade, a sua felicidade e a sua auto-estima;
– nós ocupamos os espaços que nos oferecem nos teatros, nas praças, nos shoppings, nos salões, nas festas de largo e de rua, nos trios elétricos, nos momentos solenes de celebrações de toda natureza deste país e também no exterior;
– nos comícios, nos festejos, nas igrejas, nas comunidades de todas as matizes políticas, religiosas ou espirituais, estamos também;
– temos estimulado e subsidiado estudos de Sociologia, Antropologia, História, Música, Educação Física, Pedagogia, Medicina, Arte, etc., do mundo inteiro…
– enfim, vou me contentar em parar aqui para não cansá-los…!
O que quero aproveitar neste momento é para trazer aos Senhores e Senhoras uma mensagem bem simples sobre o que nos falta. O que falta à Capoeira…
E acreditem, é bem simples mesmo: falta uma iniciativa legislativa oficial e definitiva que produza, aprove, publique e faça cumprir uma lei que transforme a capoeira em parte oficial da educação brasileira!
Nós queremos respeito pela nossa necessidade intelectual e espiritual!
Queremos ter acesso à produção dos que estudam a capoeira em todos os seus viéis, pois somos corpo e mente que tem sede de existir harmonicamente e sabemos que os livros são o alimento da alma;
A indústria cultural prefere publicar o lixo da subcultura globalizada a dar algum tipo de atenção a nossa própria produção intelectual da capoeira e isso tem que ser revisto e modificado;
Nós estamos nas instituições de ensino deste País inteiro, mas temos que sair dos pátios e das portas das escolas e ir pra dentro das salas de aula, pois a reflexão e a dimensão intelectual tem que se privilegiada e isso não pode ser feito nas condições de prática informal;
Queremos e podemos ser parte oficial do currículo de nossas escolas, inerente ao instrumental dos professores para falar de Brasil e de brasilidade, de História e da atualidade, de sociedade e de exclusão social na prática…
Podemos sim nos tornar uma disciplina sucessora atualizada e moderna da deposta educação moral e cívica, pois temos o que falar sobre cidadania e sobre civismo, já que ensinamos isso todos os dias a centenas de milhares de pessoas, só que numa prática informal e improvisada;
Sabemos que a capoeira pode ser o grande instrumento capaz de demonstrar tanto a desigualdade (como foi e como é…) como também a igualdade, como ela deve ser…
Queremos estar inseridos dentro da discussão oficial da educação no Brasil, temos experiências concretas e efetivas, em número e grau de quantidade e qualidade dessa educação integral de fato que a capoeira tem exercido para uma grande parcela da população brasileira e de muitos estrangeiros…!
Temos incentivado muito mais do que movimento das pernas e dos braços na capoeira, pois a produção de projetos de eventos, a produção de textos e músicas, a expressão corporal, o teatro, o convívio pacífico e harmonioso entre pessoas de todas as camadas sociais, a produção de roupas e uniformes, a construção de instrumentos, a música e o exercício musical, o discurso e a auto-estima, tudo isso é produto direto da prática da capoeira;
Senhores Deputados, Senhoras Deputadas, vocês tem o instrumento que precisamos para atingir a nossa cidadania plena: a delegação da sociedade para formularem leis que beneficiem os nossos cidadãos e essa é uma questão de Estado, é uma questão crucial:
Digam por escrito através de leis que a capoeira é um assunto educacional e que pertence à prioridade do ensino para todos os níveis de ensino deste País em nosso País;
Oficializem o que já ocorre em centenas de espaços extra-oficiais, extracurriculares, informais em escolas de inúmeras cidades de nosso Brasil, que doravante a Capoeira é matéria oficial do ensino de nosso povo!
Digam que isso abrange todos os níveis de ensino, da pré-escola até o ensino superior de nossa Nação, sejam quais forem os meios que isso requeira para ser efetivado, pois sabemos que antes de qualquer coisa é preciso ser dito e escrito que isso é uma vontade política de quem faz as leis e elege as prioridades deste País…!
Digam agora que o Ministério da Educação tem que viabilizar os meios para que a capoeira se torne essa disciplina, pois é ele que define o que será produzido para alimentar os currículos das nossas escolas;
Não, senhoras e senhoras, não precisa ser amanhã, isso pode demorar o tempo que for, desde que seja perseguido e que abra o debate sobre como isso deve acontecer, em cada nível, em cada região, em cada tipo de instituição, para cada público alvo e de acordo com as disponibilidades e interesses de tantas abordagens da alma holística da capoeira;
Assegurem-se de que todas as matizes e variantes que compõem a capoeira na sua interculturalidade e interdisciplinaridade serão respeitadas;
Digam que a nenhuma autoridade por mais importante e reconhecida que seja será outorgada a condição de dona dos desígnios da capoeira enquanto disciplina, pois se isso acontecer vai mutilar a sua alma e transformá-la em um monte de regras frias e dispensáveis, pois o principal interesse é a reflexão que a escola abriga e a diversidade como regra, como principio;
Acreditem, se houver uma tentativa que seja de amordaçar a capoeira, ela se ocultará de novo dos olhos oficiais, pois não será jamais sufocada por políticas ou atitudes tacanhas, limitantes, opressivas e arbitrárias, pois a sua essência é a de ensinar e pregar a liberdade humana;
Digam, enfim, que a capoeira é plural, como nosso povo, como nossa cultura nacional, como o é nossa riqueza regional brasileira, tendo o direito de se manifestar em todas as extensões que assim queiram os seus seguidores;
Senhores e Senhoras, isso é o que esperamos que possa realmente acontecer…!
Brasília – DF, 22 JUNHO 2005
Mestre Squisito