Lobisomem: Capoeira e Cordel
E aí vem o Brasil, a capoeira e a literatura de cordel, e o bem e o mal começam a negociar.
No cordel de apresentação de seu personagem, Lobisomem, o capoerista e cordelista Victor Alvim Itahim Garcia, do grupo Abadá Capoeira, diz a respeito de si mesmo: ninguém lá é perfeito. Ele lê este verso e começa a jogar sua capoeira dançada, uma negociação entre investidas e defesas. Mais (ou menos) do que uma luta, uma longa conversa de pernas e pés com seu oponente-parceiro.
Dele também, os versos de abertura do cordel Zumbi & Bimba:
É claro que não podemos
Nunca generalizar
A minha intenção não é
De querer polemizar
Pois todos têm liberdade
Pra sua versão contar
Ou, no cordel em que ele homenageia Mestre Camisa, fundador do grupo:
Como todo ser humano
Muitos defeitos tem
Como ninguém é perfeito
Ele erra muito também
Mas a sua intenção
É sempre fazer o bem
É uma distância grande em relação a, por exemplo, os contos de fada originados na Europa, onde um desfile de fracos-bons e fortes-ruins têm, depois de várias crueldades de parte a parte, seu destino modificado graças à intervenção sobrenatural. Ou aos contos hollywoodianos contemporâneos, que seguem o mesmo molde.
Relatos populares têm finalidades precisas. São ensinamentos de sobrevivência e resistência para situações limites e, dentro dessa estratégia, são também instrumentos de integração universalistas. Neles, personagens locais se ligam a arquétipos universais e o indivíduo, eivado de estereótipos psicológicos e sociais – heróis, cenários específicos como encruzilhadas ou estradas, e um tempo colocado em um passado distante ou, no caso hollywoodiano um futuro igualmente distante – se transforma em um ator que exerce sua subjetividade como em um teatro. O problema é que tal linguagem anuncia a crítica e ao mesmo tempo a cancela. Ao se tornar uma encenação que se repete, mesmo se variando detalhes do rito, o relato mostrará uma crítica não mais sobre o poder que oprime o grupo social naquele momento, mas a partir de um poder, o do mito.
O que o sotaque brasileiro traz de interessante é que, ao tornar falível o bem e palatável o mal, não abre espaço para o conceito de que haja algo perfeito de antemão, algo que nós, humanos, devemos nos esforçar para alcançar e uma vez lá, não mais modificar. Sem perfeição à mão, entra obrigatoriamente a negociação.
Viva nóis.
Fonte: Aguarrás – http://aguarras.com.br/