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O que é fazer política para os capoeiras cariocas da segunda metade do século XIX?

O que é fazer política para os capoeiras cariocas da segunda metade do século XIX?

La vae verso

Que bixo he aquelle/ Que vem enfesado/(…)/Que joga cabeça/ Que he capoeira/ Que diz desaforos/ Por brincadeira?/E que bixo he esse/ Que vem acolá?/He Justiniano/De banda e era chá(…)/Mudo na assembléa/ Os cobres comendo.i

Introdução

O meu principal objetivo neste artigo é buscar compreender o significado do que era fazer política para os capoeirasii cariocas da segunda metade do século XIX.

Procurei trabalhar com o triângulo ritual dos três domínios casa, rua e “outro mundo”, formulados por DaMatta (1997). Partindo do princípio de que a sociedade brasileira é relacional, diz:

a unidade básica da sociedade brasileira assenta-se nas relações “e pessoas, famílias, grupos de parentes e amigos” (…) E, como prestígio social é algo que se localiza na teia de relações – e nas relações- tanto quanto em indivíduos, uma pessoa pode efetivamente colocar à disposição de outra suas redes de relações pessoais (1997:70).

Para este autor, o domínio da casa e o da rua são espaços sociais e só fazem sentido, quando colocados em oposição um ao outro, sendo por ele vistos enquanto categorias sociológicas. Ele esclarece (idem: 136): “(…) O mundo da casa [é aquele] onde as relações predominantes são as de parentesco, compadrio e amizade (…)”. É o local da intimidade, do acolhimento, do universo sob controle.

Já o mundo da rua,

indica basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e paixões (…) implica movimento, novidade, ação (…) [em consequência] é preciso estar atento para não violar hierarquias não-sabidas ou não-percebidas. (1979:70)

A capoeiraiii, uma herança cultural afro-brasileira, é ambígua, por ser, simultaneamente um jogo, uma dança e uma luta. É preciso atentar para os limites que a historiografia nos impõe: tratarei aqui, mais especificamente da capoeira carioca da segunda metade do século XIX – sobre a qual há mais estudos -, cujos dados não são generalizáveis para o país, como um todo.

É uma falácia pensar que a capoeira era empregada apenas contra policiais ou senhores violentos de escravizados. E isso porque, talvez o mais corriqueiro era seu uso pelas Federações de Capoeira Nagôas e Guaiamuns com vistas à disputa, assim como a ocupação e apropriação de territórios da cidade do Rio de Janeiro. (1999; p.27)

A Federação (isto é, um conjunto de maltas de capoeira) dos Guaiamuns e a dos Nagôas eram as duas maiores desse período. Quanto à identidade étnica dos Guaiamuns, vinculavam-se à tradição nativa, “crioula”, ligada aos escravizados nascidos no Brasil. Já a identidade étnica dos Nagôas definia-se de acordo com a tradição africana, principalmente da cultura bantu.

Como veremos, há um surpreendente conluio entre a capoeira e a política. A esse respeito, Mello Moraes Filho (1893/1979: 258), contemporâneo da época, ressalta a importância da atuação dos capoeiras, em cujo “ombro tisnado escorou-se até há pouco o Senado e a Câmara para onde, à luz da navalha, muitos dos que nos governam, subiram”.

Porém, é importante dizer que, as maltas de capoeira, ao interferir nas eleições não são somente agenciadas, mas atuam também como uma força política autônoma e independente. Conforme Soares (1999) sua atuação era uma “opção política”, que mostra sua vontade de participar no

Vamos agora nos familiarizar com o universo da capoeiragem carioca do Novecentos.

2 O que é fazer política para os capoeiras?

Os Nagôas ocupavam as áreas limítrofes da região urbana, os Guaiamuns dominavam as freguesias centrais da cidade. É interessante atentar para a ressignificação popular das maltas de capoeira ao renomear as freguesias com os nomes do catolicismo popular.

Como explica Cunha (1986), a etnicidade é uma linguagem que existe apenas num meio mais amplo e é uma forma de organização política. Conforme a autora, a identidade é contrastiva, situacional e circunstancial sendo, portanto, desprovida de substância e, portanto, “é algo que não se põe apenas se contrapõe”. (idem: 102)

Essas duas maltas tinham como sinais diacríticos as práticas de ritualização de conflito, com seus códigos próprios. Seu palco principal eram as ruas da cidade.

A invasão dos domínios de uma malta por outra era tida como uma provocação e resultava muitas vezes em mortes. Segundo Soares (1994) as rivalidades territoriais pareciam ser um dos principais motivos de conflitos entre ambas.

Nesta disputa, estavam em jogo prestígio, posições e certos privilégios sobre o “pedaço”. É importante ressaltar que as trocas de favores entre os capoeiras e os políticos asseguravam a seus membros, em particular ao líder da malta, uma posição de prestígio junto a seu “pedaço”. Assim, quanto maior a sua intimidade com o poder, maior será a sua fama.iv

Uma das características da malta é que, tanto a “terra dos Guayamús”, quanto à “terra alheia”, a de seus inimigos Nagôas, são espaços onde há segurança, semelhanças de origem e étnicas (africanos, mestiços e brancos – boa parte imigrantes portugueses), valores culturais semelhantes e ainda de condição jurídica . Tal domínio onde parece haver um maior controle é o da casa, portanto. Já o mundo da rua, é perigoso, lugar do imprevisto, impessoal, das hierarquias não percebidas.

3)A política dos gabinetes

A malta Flor da Gente dominava a freguesia da Glória, onde morava boa parte dos políticos dessa época, não por coincidência, já que muitos deles contratavam capoeiras como seus capangas políticos. Nas eleições de 1872, ocasião em que o gabinete conservador Ventre Livre corria o risco de ser alijado do poder, os liberais denunciaram a presença de 65 guardas nacionais que estariam atuando como capoeiras naquela freguesia, para lá deslocados pelo juiz de paz da região, o deputado conservador Duque-Estrada Teixeira.

Para azar deste deputado, seus inimigos publicaram um bilhete com sua ordem: “(…) aí vai o reforço pedido; este é de lei: é parte da Flor da Minha Gente; desejo-lhes triunfo e felicidade”. Nascia a Flor da Gente (cujo nome evocava a capoeira como uma “criação nacional”, como em 1890, Mello Morais Filho a ela se reportaria) a qual, tendo colaborado para a vitória do Partido Conservador nessa ocasião, se tornaria, a partir daí, “sinônimo da capangagem política” (SOARES, 1994: 196-206).

Tal conluio entre a ordem e a desordem perpassa todo o século XIX e até hoje se faz presente e não apenas na cidade do Rio de Janeiro.

Diante das constantes denúncias de ameaça à segurança pública, motivada pelos capoeiras, levantam-se as primeiras vozes favoráveis à torná-la um crime. É o que solicita, em 1872, o chefe de polícia da cidade do Rio de Janeiro. Reconhecendo os esforços da polícia para reprimir a petulância dos capoeiras, terror da população pacífica, reclama, em seu relatório anual, da dificuldade de repressão àqueles, posto que a capoeira não é um crime de acordo com o Código Criminal em vigor. (HOLLOWAY: 1989: 669).

4) A hora e a vez dos capoeiras na arena política

A partir da segunda metade do século XIX, a capoeira ingressa com mais força no campo da política. Ainda que tenha sido bastante perseguida nessa época, os documentos policiais comprovam que sua prática foi tolerada durante a Monarquia. Vejamos alguns dos motivos para tanto.

Nagôas e Guaiamuns atuavam na capangagem política, e, como veremos, tinham sua visão particular do que é fazer política. Ambas eram autônomas em relação a políticos e partidos e possuíam signos próprios de distinção e padrões de comportamento.

Manduca da Praia é até hoje lembrado nesta cantiga de capoeira: Rio de Janeiro, minha memória não falha/ O maior capoeira foi Manduca da Praia! Ele possuía uma banca de peixe na Praça do Mercado e morava na Cidade Nova. Manduca era muito famoso entre a população fluminense e, ainda que tenha sido autuado em 27 processos por ferimentos leves e graves, foi absolvido em todos eles devido à sua influência pessoal, bem como à de seus amigos (Mello Moraes Filho 1893/1979: 262).

(…) Não recebia influências da capoeiragem local nem de outras freguesias, fazendo vida à parte, sendo capoeira por sua conta e risco (…) nas eleições de São José dava cartas, pintava o diabo com as cédulas (idem: 263)

Nos dias de eleição, as maltas de capoeiras se reuniam nas igrejas, as quais serviam como postos eleitorais, atacando eleitores de oposição ou fraudando as urnas, fingindo serem eleitores ausentes (os populares fósforos). Além disso, compravam votos e atacavam urnas, onde a vitória dos opositores era certa. Constantemente, tudo acabava em grossa pancadaria.

  1. O processo de criminalização da capoeira

Alguns dias após a Proclamação da República, Sampaio Ferraz é empossado como chefe de polícia do Distrito Federal. Com extrema violência e arbitrariedade, ele conseguiu desbaratar, em poucos meses, boa parte das maltas de capoeira. A capoeira, a qual, como reiterado era tolerada pela Monarquia, com a publicação do Código Penal de 1890, passa agora a ser considerada um crime.

Se, durante o período escravista, o africano escravizado tinha o seu lugar social definido, agora, ao longo do Novecentos, paulatinamente, as fronteiras sociais foram sendo diluídas e após a decretação da Lei Áurea, a obtenção da igualdade jurídica é alcançada. Desse modo, a indefinição do lugar social do negro cidadão alimenta o imaginário do medo branco da onda negra. (AZEVEDO, 1987).

Considerações finais

A importância do favor pessoal por parte dos políticos que arregimentavam maltas ou capoeiras, individualmente, para atuarem na capangagem política é evidente.

Ainda que tenha sido perseguida ao longo do século XIX, a capoeira sempre foi tolerada, uma vez que sua manutenção no nível da contravenção penal interessou sobremaneira a partidos e políticos do país. É líquido e certo afirmar que fosse a capoeira vista como “negregada instituição”, “carcinoma” ou “ginástica degenerada”.

Com efeito, os capoeiras e suas maltas desempenharam um papel decisivo na política carioca, sobretudo nas três últimas décadas do século XIX. E mostraram seu jeito particular de fazer política: “a cabeçadas e navalhadas”.

Referências bibliográficas

Livros

ABREU, Plácido. Os capoeiras. Rio de Janeiro: Tipografia da Escola de Serafim José Alves, 2019.

AZEVEDO, Célia M. M. Onda negra medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

HOLLOWAY, Thomas. “O ‘saudável terror’: repressão policial aos capoeiras e resistência dos escravos no Rio de Janeiro no século XIX”, in: Cadernos de Estudos Afro-asiáticos, n.16. Cândido Mendes, março, Rio de Janeiro, 1989.

KOSERITZ, Carl von. Imagens do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980.

LÉVI-STRASS, Claude. Antropologia Estrutural. 5ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no Pedaço: cultura popular e lazer na cidade. 2ª ed. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1998.

MORAIS, Mello. Festas e tradições populares do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1893/1979.

MOURA, Jair. Plácido de Abreu – Os Capoeiras (Epítomes e Notas de Jair Moura). 1ed. Salvador: JM Gráfica e Editora Ltda, 2019.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: os Capoeiras na Corte Imperial – 1850-1890. Rio de Janeiro: Access, 1999.

i O Alabama, 21 de dezembro de 1863, apud ABREU, 2005: 114.

ii Nessa época, o termo capoeira refere-se tanto a esta arte marcial propriamente dita, como a seus adeptos.

iii Tida hoje, como um dos símbolos da cultura brasileira, a capoeira sempre foi perseguida em nosso país, especialmente na passagem do Império para a República. Entretanto se no período monárquico sua prática, ainda que tenha sido perseguida, foi tolerada por alguns motivos, como veremos neste artigo. Mas, com a publicação do Código Penal Republicano de 1890, torna-se um crime até meados da década de 1930, quando será legalizada na forma de esporte.

iv Agradeço aqui ao Prof. Dr. Cinézio Peçanha (Mestre Cobrinha Mansa) pela sua arguta observação. Sou grata também ao Prof. Ms Marcelo Stotz (Mestre Kblera), ao Prof. Dr. Júlio César Tavares e ao Prof. Dr. Luiz Renato Vieira (Mestre Luiz Renato) pelas suas valiosas contribuições.

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