TURISMO, MERCANTILISMO E CAPOEIRA

O Furto da Ludicidade nas “Rodas de Vadiar”
 
O reconhecimento da importância do turismo como negócio, tem despertado nas comunidades, em nível global, o interesse pela atividade na busca e na apropriação dos resultados através da captação de fluxos de visitantes e das receitas que eles geram. Enquanto atividade econômica do 3º setor, o de serviços, o turismo permeia os campos sócio-econômico e político-social exercendo sobre estas áreas decisivamente, importância ímpar. 
 
 A referida atividade pressupõe movimento, deslocamento de pessoas. Esse fluxo é gerado por motivações diversas de viagem, a saber: negócios, lazer, religião, fuga do cotidiano, saúde, contacto com a natureza, dentre outras. O processo de forma abrangente envolve conhecimento, trocas culturais e relações sociais. É possível observar que um dos princípios básicos que norteiam o interesse do turista pelos atrativos de uma localidade, independentemente da motivação direta da viagem, é a busca de novas experiências que lhes propiciem momentos de prazer e satisfaçam suas necessidades imediatas.
O Turismo na Bahia, particularmente na Cidade do Salvador, mantém uma íntima relação com as manifestações populares, notadamente as de origem afro-brasileiras. A exploração de tais elementos extrapola os aspectos culturais, lúdicos, artesanais e gastronômicos e avança em direção ao consumo da imagem e da própria identidade negra.
 

{mosimage}
 
 A tão famosa identidade baiana, que ajuda a consolidar a imagem de Salvador como o ethos do prazer, não é apenas resultante do simples encontro entre negros, brancos e índios. Primeira capital do Brasil por sua importância econômica cultural e política, a capital baiana sempre atraiu imigrantes de várias partes do mundo: espanhóis, italianos, dentre outros. Esta miscigenação, porém, tem na cultura negra o seu maior manancial de contribuição para a contínua construção da identidade do baiano. Uma “marca registrada” da herança escrava que se torna um grande diferencial e atrativo turístico, pois só aqui na Bahia elas são tantas e tão evidentes. E deixaram marcas tão profundas em vários aspectos do nosso cotidiano como na música, religião, lazer e alimentação, só para citar os mais importantes.
As atividades turísticas sempre se materializam em relação a um produto e estes produtos são vendidos juntamente com um “pacote” de serviços. A colocação dos elementos culturais característicos de uma sociedade como um cardápio de opções para o turista os transforma em produto e como tal são tratados na maioria das vezes, deixando-se de levar em conta a dimensão humana e social que os caracterizam, enfocando apenas o seu aspecto comercial. Sendo assim, quase sempre os turistas consideram a cultura local como mais um bem disponível durante a sua viagem para ser consumido como os demais itens do seu “pacote”. Seguindo este raciocínio, os legados culturais  aqui entendidos como atrativos turísticos correm o risco de se prostituir e descaracterizar para atender a demanda.
Este é o caso específico da capoeira em Salvador. Esta forma do turismo lidar com os elementos culturais os banaliza e “coisifica” limitando a sua dimensão a de um simples bem de troca dentro de uma cadeia produtiva.
 
O ato de transformar em simples mercadoria os elementos oriundos da cultura popular avança rápido em todos os campos, nos quais o adjetivo “exótico” funciona para o Turismo como uma “tatuagem cultural”, imprimindo nestas manifestações o selo de “bom para o consumo”. O comércio da cultura afro-brasileira, particularmente da imagem da capoeira, é feito diariamente com a venda de CDs, abadás, uniformes, exames, graduações, ainda de berimbaus e demais instrumentos e dos espetáculos montados, dentre outros itens.
 
Apesar de reconhecermos a legitimidade deste tipo de comércio, inclusive para prover a sobrevivência de muitas pessoas, temos que admitir que o sentido capitalista, onde o consumismo dita as regras, está cada vez mais presente na capoeira em detrimento de algumas de suas características básicas, dentre elas a ludicidade, que a nosso ver é uma das mais importantes. Quem já viu o jogo do Mestre Curió ou leu Canjiquinha: Alegria da Capoeira, ou ainda, entende o sentido das rodas de rua do início do século XX, quando se jogava aos domingos de terno branco e chapéu sem deixar sujar a roupa, compreende o que falamos.
 
O jogo, a brincadeira, a camaradagem enfim, os aspectos lúdicos, devem sempre estar sempre presentes onde houver capoeira, mesmo nos espaços onde o espetáculo se faça presente. Ela é parte muito importante dos seus fundamentos e caracteriza o homo ludens na sua mais pura essência. Não perder de vista estes aspectos é garantir vida longa à sua alma, baseada em seus mais recônditos elementos ancestrais. Podemos sobreviver por intermédio da capoeira, afinal é um patrimônio nosso, mas sempre respeitando e preservando os seus valores.
Iê camará…

* O professor e pesquisador Acúrsio Esteves, é formado em Educação Física pela UCSal, com mestrado em Gestão de Organizações UNEB/UNIBAHIA e é professor da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Salvador. Leciona também nas Faculdades Jorge Amado e Fundação Visconde de Cairu, respectivamente nos cursos de Educação Física e Turismo, sendo também autor dos livros Pedagogia do Brincar e A “Capoeira” da Indústria do Entretenimento, de onde foi retirado este fragmento de capitulo.
Contactos: (71) 3233-9255 / 9946-4743
e-mail: [email protected]
 
Crédito: Fotos – Gustavo Esteves

Artigos Relatados

0 0 votos
Avaliar Artigo/Matéria
Subscribe
Notify of
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários