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O “Decano” da Regional

CAPOEIRAS DE SALVADOR
O “Decano” da Regional
Por: Mestra Brisa e Mestre Jean Pangolin

A terminologia “decano” significa que o indivíduo com esta designação é o membro mais antigo de uma instituição, corporação ou assembléia, mas no caso em questão, a analogia para uso da expressão está relacionada à Luta Regional Baiana, pois, estamos tratando da escrita sobre um dos maiores ícones da capoeira, o Mestre Decânio.

Filho do Dr. Ângelo Augusto Decânio e Georgina de Barros Decânio, nasceu em Salvador, no dia 12 de fevereiro de 1923… Epa! Pára tudo! Não posso seguir falando de meu amigo “Deca” de forma burocrática e formal… “Tá rebocado” que ele iria se “revirar no túmulo”, se assim o fizesse.. Rsrsrrs… Com certeza me chamaria de: – “Burro!”, e diria que eu não aprendi nada com a capoeira.

Quando conheci, mais intimamente, Decânio, por intermédio de meu amigo Mestre Zézo, ele era uma espécie de semideus da capoeira, aqui na cidade de Salvador, e uma autoridade mundial na arte. Sem contar os diversos títulos na medicina, na carreira acadêmica, no judô, no candomblé e por aí vai… Resumindo, lá estava eu, um “Zé Ninguém”, tentando me aproximar de uma figura desta envergadura. Como era um tempo em que o ímpeto juvenil prevalecia em minha mente ingênua, parafraseando a interpretação bíblica que: – Deus perdoa os inocentes, acredito que “Deca” deve ter pensado: “Ele merece atenção, pois, apesar das bobagens que diz, seu brilho nos olhos pela capoeira poderá catalisar coisas interessantes!” E assim foi. Em pouco tempo, já estava em minha casa, tomando café com meus pais e rindo muito com histórias de meu pai.. Rsrsrsr.

Decânio virou uma espécie de mentor para mim, e os discípulos que me cercavam na época, mas, não só isso. Ele era um amigo querido e uma companhia extremamente divertida (quando estava de bom humor.. Rsrsrsrsr…). Em uma das diversas vezes que fomos, eu e a Mestra Brisa, no sítio Vivendas Yemanjá, na Rua Eduardo Dotto, s/n, Praia de Tubarão, Paripe, Salvador – Bahia, Brasil, lembro-me de Bel (companheira de Decânio) falando: – Hoje ele não tá bem, acordou dizendo que precisa passar o acervo para você, pois, vai morrer e precisa deixar isso com alguém de confiança…”. E eu entrei em “parafuso”, pois, era um misto de alegria pela confiança e o peso da responsabilidade que ele depositava em mim, sem contar com as condições práticas para acomodar todo aquele material de forma segura. Hoje, após décadas deste dia, penso que meu maior “medo”, naquele momento, era aceitar a ideia da morte de “Deca”. Enfim, relutei e esquivei da responsabilidade, argumentando que seria mais prudente passar o acervo para universidade. Arrependo-me amargamente de ter sido tão “fraco”. Por isso, hoje, peço perdão ao Mestre e a capoeira.

Quero partilhar com vocês a história do “JUVENTA”, uma “garrafada” (combinações de plantas medicinais que têm como veículo aguardente ou vinho) criada por “Deca”, que, segundo ele, tinha este nome por ser um “elixir da juventude”, sendo capaz de rejuvenescer o organismo, com impacto também na potência sexual. Isso foi maior “qüiproquó” (situação confusa e cômica) com minha mãe, pois, Decânio havia convencido meu pai a beber diariamente, e minha mãe passou a dizer que meu pai, depois de velho, estava virando “cachaceiro e safado”, toda hora queria fazer amor com ela e ainda, fedia a cachaça.. Rsrsrs… Para mim, como “Deca”, por ordens médicas, estava proibido de consumir álcool, o “JUVENTA” foi uma maneira inteligente de burlar a proibição e, “de quebra”, ainda aumentar a libido. Coisas de uma mente brilhante, “Um menino no corpo velho”, como ele mesmo se definia.

Opa, mestre Jean, vou pedir licença para comprar seu jogo, e contar como foi a minha aproximação com o nosso querido amigo e mestre Decânio. Ainda aluna formada, uma simples menina na arte, fui a um evento na Universidade Católica do Salvador, sendo este capitaneado pelo mestre Saci – aluno do Mestre Bimba, e lá fui apresentada àquele mestre, que na época, já com o avanço da idade, ficava recolhido ao fundo da roda, a observar, creio eu, os desdobramentos e nova formatação da capoeira nestes tempos, década de 90. Após ser apresentada a ele, passei o restante do batizado todo ao seu lado em conversas intermináveis. Até que chegamos à conversa sobre os arquétipos dos orixás, primeira memória que guardei do mestre em nossa relação. Nesta conversa ele me dizia: – Menina, você tem uma Oxum muito forte! Eu curiosa perguntei: – E o que quer dizer isso, mestre? Ele rapidamente passou a falar sobre o poder que eu tinha para fertilizar e nutrir os processos que eu quisesse nessa vida. Vindo do mestre, era a “deixa” que eu precisava pra seguir acreditando no que parecia impossível, ser mestra de capoeira, reconhecida na minha terra, Salvador – Bahia, em meio há tantas dificuldades deste percurso.

“Deca” era um sábio, irreverente, e, muitas vezes, incompreendido pela forma firme e impaciente com a qual tratava alguns assuntos na capoeira. Quantas vezes ele tentava nos ensinar algo na capoeira, para ele tão óbvias, para nós ainda um processo em aprendizagem. Falava com encantamento da capoeira para crianças. De quão elas representavam a espontaneidade e a leveza que perdêramos na lida profissional com a capoeira. Apreciava nosso ímpeto de construir o impossível. Gostava que não perdêssemos tanto tempo com coisas inférteis, e quem disse que a gente escutava?… Rsrsrs… “Quando o discípulo ta pronto, o mestre aparece”, ou seja, talvez ainda não estivéssemos prontos para aprender.

A aproximação com o mestre Decânio nos fez desmitificar muitas questões sobre a capoeira e a Luta Regional Baiana. Ver o mestre Bimba como um homem, não um Deus, que tinha seu brilhantismo e pioneirismo, justamente pela sua condição humana, de levar a capoeira além do óbvio e preconceituoso lugar que a cristalizaram. Ele nos falava, por exemplo, sobre a bateria da Regional, que se fez diminuta com um berimbau e dois pandeiros, simplesmente porque os seus discípulos gostavam mesmo era de jogar, não se voltando para o aprendizado dos instrumentos, logo ele contratava capoeiras, mestre Gigante era um deles, para tocarem na sua charanga, fato que não compromete toda competência musical da “Regional” na harmonização rítmica, considerando a beleza da sonoridade de um único berimbau.

Sem dúvidas, como “Deca” sempre dizia, a boa capoeira esta balizada sempre pelos três “Rs”, ritmo, respeito e ritual, ou seja, por analogia, a existência humana tem um ritmo para o fluxo da “vida, e é preciso respeitar isso para assegurar o bom andamento do ritual / existência em sociedade. Desta forma, como “calça de homem não cabe em menino”, que possamos aprender com a sabedoria dos mais antigos, assegurando os três “Rs” em tudo aquilo que nos rodeia.

Odò Ìyá, mãe das águas Yemanjá….!!! Que sua força ilumine e guarde os caminhos de seu filho “Deca”, e que me ajude a manter sempre VIVA na memória alguns dos especiais momentos vividos ao lado do grande mestre. Assim, com uma gratidão eterna por ter podido conhecê-lo e reconhecê-lo, me despeço de um dos capoeiras mais ilustres dessa minha terra Salvador, o “Decano da regional”.

Axé.:


O Novo site Capoeira da Bahia:

Caros Amigos Jean e Brisa,

Fiquei imensamente feliz com este artigo e a forma tão especial que escreveram sobre o nosso querido Decânio.

Sobre a responsabilidade do acervo digital, eu gostaria de dizer que Mestre Jean, Acúrsio Esteves e Bruno Teimosia, tiveram um impacto enorme na decisão e no processo da migração do “CAPOEIRA DA BAHIA” (hospedado na estrutura da gigante TERRA) para o novo site “CAPOEIRA DA BAHIA” , mantido pelo Portal Capoeira e gerido por mim.

Jean foi um dos principais intermediadores neste complexo processo… Quem conhecia o Mestre Decânio sabia que era necessário muita dedicação e muita energia para poder compartilhar sua vasta biblioteca, artigos e textos… enfim a sua enorme sabedoria… Decânio tinha uma personalidade forte e vincada… homem de uma enorme capacidade intelectual e dono de uma rede tão vasta de conhecimentos que era capaz de falar sobre quase tudo aquilo que pudéssemos imaginar… Não é a toa que tantos capoeiristas o consideram uma referência fundamental em todo o processo de criação da Luta Regional Baiana.

Foram anos de trabalho até que Decânio validasse a migração de todo o conteúdo do seu antigo site para a sua nova casa o Portal Capoeira. Alguns anos antes de Decânio falecer a sua maior preocupação era que tudo aquilo que ele tinha escrito, tudo aquilo que havia construído de forma tão altruísta, visando sempre divulgar e partilhar conhecimento, ficasse perdido após a sua morte pois ele tinha medo que a empresa a qual ele pagava mensalidade pelo acesso a internet poderia apagar o seu site.. Explico:

“Luciano, depois que eu morrer e deixar de pagar as contas… acabou!!! Tudo aquilo que existe no Capoeira da Bahia irá desaparecer!!! Isso não pode acontecer! É todo um trabalho de uma vida… E eu tenho visto Bimba muitas vezes… ” Angelo A. Decânio Filho.

E foi ai então que eu iniciei o processo e decidi comprar esta demanda que gerou enorme energia e diversas situações difíceis… Mas após quase dois anos de trabalho árduo e muitas ligações (era mesmo complicado se naquela época existissem as ferramentas que existem hoje… ) o novo site Capoeira da Bahia foi completamente migrado e remodelado e hoje faz parte do ecossistema do Portal Capoeira e desta forma pude ajudar a realizar um dos últimos pedidos de um amigo e mentor e continuar a mostrar ao mundo a beleza e a vastidão desta mente brilhante e deste ser humano ímpar que passou a fazer parte integrante da minha vida!

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Obrigado a todos os amigos que fizeram parte deste processo e meu agradecimento especial a Jeam Pangolim por me propocionar um dos momentos mais importantes da minha caminhada na capoeiragem, quando em Salvador, na Faculdade Jorge Amado, organizou uma palestra sobre capoeiragem e me presenteou com a ilustre presença do querido Decânio.

Saudades meu querido amigo… Tenho a certeza que agora está ao lado de Mestre Bimba e tantos outros que já fizeram a passagem…

Veja também:

https://portalcapoeira.com/capoeira/publicacoes-e-artigos/jesus-vigotisky-capoeira-e-cidadania/

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