Anatomia de um prêmio em 12 facadas
por Mauricio Acuna
“Misteriosamente, o Badauê surgiu”
Moa do Katendê
1. Hoje ganhei um prêmio: Menção Honrosa de melhor tese em Ciências Humanas da USP. Reconhecimento de excelência em pesquisa em uma das melhores universidades do mundo;
2. Trabalho escrito por mãos que aprenderam a escrever na escola pública em São Bernardo do Campo, e que apertaram muitas outras mãos sonhadoras em cursinhos populares pré-vestibular. Trabalho estimulado por mãe, irmã, companheira, sobrinha, amigas: muitas mulheres. Trabalho nutrido por mestres de capoeira e suas criações infinitas com os corpos e os instrumentos: muitas artes afro-brasileiras. Trabalho que ganhou a cara de uma das melhores e mais conservadoras universidades públicas do Brasil, mas com as marcas da diferença e dos diferentes que, cada vez mais, participam das aulas com a cabeça erguida pelo direito conquistado;
3. A tese que ganhou esta menção honrosa conta a história de um dos grandes mestres de capoeira nascido no Brasil e mundialmente reconhecido: Vicente Ferreira Pastinha, Mestre Pastinha. Também conta a história de seus saberes subalternizados e racializados. Conhecimento marginal das letras e das gingas. Briga antiga da cidade letrada e das quebradas gingadas;
4. Foi sem o reconhecimento acadêmico, e com muito pouco apoio do Estado em suas várias instâncias, que centenas de mestres contribuíram ao longo de muitas décadas, para a transformação da capoeira em Patrimônio Mundial da Humanidade em 2014, reconhecida pela Unesco;
5. Moa do Katendê, um desses mestres, foi brutalmente assassinado domingo, 7 de outubro de 2018, como efeito trágico da nossa democracia envenenada;
6. “Oi sim, sim, sim, Oi não, não, não”
7. Assim ensinam os capoeiras em uma de suas mais famosas canções. Mas não se enganem, o verso é uma pequena, mas poderosa fórmula na “pedagoginga” – como ensina Allan da Rosa. Cantar esses versos inspira a diplomacia da ginga, a capacidade de se mover entre os contrários, de não se reduzir aos opostos;
8. Como uma forma de democracia, a capoeira hoje é a arte do discordar sem exterminar. Mas não se parece com a nossa democracia de milícias afiadas;
9. Em 2004, Gilberto Gil, o sábio Ministro da Cultura, propôs na ONU, a capoeira como uma “tecnologia social” para a paz. Eis que, mais de uma década depois, ela é ensinada em campos de refugiados noCaribe, África e Oriente, participando, significativamente, junto ao problemas globais das migrações e das catástrofes causadas pelas mudanças climáticas;
10. Como filho de exilados políticos da ditadura assassina no Chile, eu me pergunto se nós, brasileiros, aprenderemos algum dia novamente com os mestres, como se constrói democracia e participação?
11. Que toquem os berimbaus e atabaques, entre terra e céu para Mestre Moa do Katendê. Quem sabe ele joga com Mestre Pastinha, e é assistido por Marielle: “oi, sim, sim, sim…oi, não, não, não”.
12. Democracia sim, cultura sim, liberdade sim….milicianos não, tortura não, extermínio não.
Mestre Moa do Katendê