O Mestre de Capoeira e a Pedagogia do Oprimido: Um Sugestivo Encontro
É notório, no mundo da capoeira, e das lutas em geral, o fascínio e o poder exercido pela figura do mestre (para efeito desta reflexão, incluiremos também na categoria de “mestre”, os contramestres, professores, instrutores, monitores, ou qualquer outro grau investido da função de ensinar). Geralmente, são vistos como dotados de poderes absolutos, conquistados através de façanhas e proezas admiráveis ou, simplesmente, pelo carisma e liderança que exercem sobre seus discípulos.
Se, por um lado, a figura de mestre sugere sabedoria inconteste, misticismo, transcendência, por outro, no caso da capoeira, ela tem despertado muita atenção, face à exacerbação da violência que assola os grandes centros urbanos, onde, por extensão, está concentrado o maior número de academias destinadas à prática desta modalidade.
Na maioria das vezes, a conquista da condição de mestre não obedece a parâmetros claramente definidos. Não raro, tal condição resulta do reconhecimento da própria comunidade envolvida, que ao aceitar o líder como um mentor, um orientador, começa a denominá-lo ‘mestre’.
No âmbito da capoeira verifica-se, comumente, por parte de alguns mestres e professore, atitudes extremamente autoritárias e centralizadoras, que, aliadas a rigorosos mecanismos disciplinadores e hieraquizadores, vêm contribuindo para a formação de uma avalanche de facções de forte conotação doutrinária, com intenso poder de contágio.
Diante destas constatações, acreditamos que os mestres e discípulos desta manifestação, criada pelos negros oprimidos, podem se beneficiar dos fundamentos formulados por Paulo Freire, na obra Pedagogia do Oprimido, principalmente, no que diz respeito ao diálogo, à superação da contradição “opressor-oprimido”, à autonomia e à liberdade.
Na maioria das vezes, percebe-se que os fundamentos, os valores e os rituais, historicamente consagrados no contexto da capoeira, são repassados e absorvidos na forma de prescrições.
Para Paulo Freire (1987), toda prescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra. A prescrição contém, em seu bojo, um sentido alienador, à medida que transforma a consciência recebedora numa “consciência hospedeira” da consciência opressora. O comportamento do recebedor é edificado à base de pautas estranhas a ele. O recebedor, ao introjetar a ‘sombra’ do prescritor, teme a liberdade, pois esta, implica na expulsão da ‘sombra’ e exige o preenchimento do vazio deixado pela expulsão com outro conteúdo – “o de sua autonomia” (p. 34).
E autonomia só se conquista com liberdade. É preciso não temê-la. A liberdade é uma conquista e não uma doação, exige uma permanente busca. “Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem” (p. 34). Enquanto tocado pelo medo da liberdade, o recebedor prefere a gregarização à convivência autêntica. Sofre uma dualidade que se instala no seu ser. Quer, mas teme a liberdade. É ele e, ao mesmo tempo, o outro introjetado nele, como consciência opressora. Sua principal luta se trava entre ser ele ou o outro. Entre seguir prescrições e ter opções. Entre ser espectador e ator. Entre atuar e ter a ilusão de que atua na atuação do opressor. Entre dizer a palavra ou não ter voz. Para Paulo Freire, esse é o trágico dilema dos oprimidos, que a sua pedagogia tem de enfrentar.
Aos oprimidos é dada a tarefa de libertar a si e aos opressores. Essa tarefa constitui, para Paulo Freire, num “parto doloroso”. Desse parto nasce “um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que á a libertação de todos” (p. 35).
O autor então sugere a dialogicidade como uma estratégia essencial da educação como prática de liberdade. Não um diálogo como um meio, mas como um fenômeno humano, “uma interação tão radical que, sacrificada, ainda que em parte, uma delas, se ressente, imediatamente, a outra” (p. 77). Em outras palavras, o diálogo, para Paulo Freire, contém duas dimensões: ação e reflexão, que resultam na práxis, cuja essência é transformar o mundo.
A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutri-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-la. (p. 78)
O diálogo não é privilégio de alguns, mas direito de todos os homens, por isso ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, como se fosse uma prescrição, que rouba a palavra dos demais. Não pode ser reduzido ao ato de depositar idéias no outro, nem discussão aguerrida, polêmica, onde cada um quer impor sua verdade como absoluta. Para haver diálogo verdadeiro é preciso amor incondicional aos homens e ao mundo, humildade e fé, a priori, nos homens. “Sem fé nos homens, o diálogo é uma farsa, transforma-se em manipulação adocicadamente paternalista”. O diálogo não pode ser um ato arrogante. A auto-suficiência é incompatível com o diálogo. Nesse encontro dialógico “não há ignorantes absolutos, nem sábio absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais” (FREIRE, 1987, p.81). O diálogo se faz numa relação horizontal, em que a confiança entre os sujeitos dialógicos é uma conseqüência óbvia e os transforma cada vez mais em “companheiros na pronúncia do mundo” (p. 82). Paulo Freire destaca que a confiança se perde se a palavra não for levada a sério. Dizer uma coisa e fazer outra é desestimular a confiança. Para a existência de um diálogo verdadeiro é preciso um pensar verdadeiro, um pensar crítico, que percebe a realidade como processo em constante devenir, e não como algo estático. “Somente o diálogo, que implica um pensar crítico, é capaz, também, de gerá-lo” (p. 83). Por fim, convém acentuar que a esperança, enquanto componente da própria imperfeição dos homens, alimenta o diálogo na busca da humanização dos homens.
A humanização e a desumanização são, para Paulo Freire, possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão. Porém, se ambas são possibilidades, apenas a humanização, ou seja, o ser mais, é uma vocação dos homens. Admitir que a desumanização é vocação histórica dos homens, destino dado, nada mais teria que se fazer, a não ser “adotar uma atitude cínica ou de total desespero” (p. 30). No entanto, a vocação dos homens para a humanização tem sido negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores. Esta violência leva, cedo ou tarde, a uma luta do oprimido, contra quem o fez menos. Para Paulo Freire, essa luta só tem sentido, se ao lutar para recuperar sua humanidade, o oprimido não se sentir idealisticamente um opressor, mas restaurador da humanidade de ambos. “Aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos –libertar-se a si e aos opressores” (Freire, 1987, p. 30).
Para Paulo Freire só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos. O poder do opressor não é capaz de libertar o oprimido, uma vez que a ordem injusta contribui para a permanência da dominação, mesmo que o opressor, sensibilizado com a condição do oprimido, assuma ares de generoso. Essa generosidade é, no entanto, falsa porque coaduna com a ordem vigente. Geralmente, o opressor se nutre da morte, do desalento e da miséria dos próprios oprimidos. Sendo assim, ela não liberta, pois generosidade verdadeira implica em luta contra as razões da injustiça. E esta luta deve ser de todos os “condenados da terra”, dos “esfarrapados do mundo” e dos que com eles se solidarizam.
Os princípios da pedagogia do oprimido dão sustentação a uma luta que se constitui num ato de amor, forjada pelos próprios oprimidos e não pelos opressores.
Paulo Freire destaca, porém, a existência de um grande problema na empreitada da libertação dos oprimidos. Trata-se do fato do oprimido hospedar o opressor em si, transformando num ser duplo, inautêntico. Enquanto viver essa dualidade, na qual ser é parecer e parecer é parecer com o opressor, é impossível implementar uma pedagogia libertadora, porque a verdadeira libertação não significa a identificação com o opressor.
Raros são os camponeses que, ao serem ‘promovidos’ a capatazes, não se tornam mais duros opressores de seus antigos companheiros do que o patrão mesmo. Poder-se-á dizer – e com razão – que isto se deve ao fato de que a situação concreta, vigente, de opressão não foi transformada (FREIRE, p. 33).
Imerso e condicionado à realidade existencial opressora, o oprimido assume uma postura de aderência ao opressor. Reconhecer-se como oprimido é uma necessidade para a libertação desta condição, porém esse reconhecimento não basta. É preciso superar a situação opressora, e isso implica no reconhecimento crítico desta situação e numa ação transformadora que incida sobre ela, na busca do ser mais. É preciso não temer a liberdade, mas correr o risco de assumi-la. Necessário se faz entregar-se à práxis libertadora.
Essas contribuições de Paulo Freire, o pedagogo dos oprimidos, são fruto de uma consistente e comprometida experiência com a educação de adultos, em vários países do mundo. Seus fundamentos têm sido fonte de inspiração para inúmeros projetos educacionais. Considerando que educação crítica e libertadora passa, também, pelo corpo, aliás, começa por ele, sugerimos que todos os mestres de capoeira se apropriem dos seus princípios e os apliquem em suas práticas cotidianas.
A ação dialógica constitui-se numa eficaz estratégia de libertação das amarras impostas pela lógica opressora. Ao mesmo tempo em que humaniza os homens, possibilita a conquista da autonomia.
José Luiz Cirqueira Falcão, conhecido como Mestre Falcão é natural de Cristalândia (TO). Falcão iniciou na capoeira em 1975, no Colégio Agrícola de Brasília, Planaltina (DF) sob a orientação do Mestre Zulu. Formou-se mestre de capoeira em 1984. É licenciado em Educação Física pela Universidade Católica de Brasília (1982). Atuou durante 11 anos (de 1985 a 1996) na Fundação Educacional do Distrito Federal, como professor de Educação Física, onde implantou e coordenou o Centro de Aprendizagem de Capoeira (CAC) de Taguatinga.
É mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994). É doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia (2004). É autor de vários artigos em revistas nacionais e internacionais. É autor do Livro "A Escolarização da Capoeira". É Professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina, onde atua na graduação e na pós-graduação. É integrante do Grupo de Estudos da Capoeira (GECA) e do Núcleo de Estudos Pedagógicos da Educação Física (NEPEF). É Sócio Pesquisador do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte.
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