Por Myrian Sepúlveda dos Santos e Gabriel da Silva Vidal Cid.
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A prisão dos capoeiras na Ilha Grande

A prisão dos capoeiras na Ilha Grande

Por Myrian Sepúlveda dos Santos e Gabriel da Silva Vidal Cid. *

A história da Colônia Correcional de Dois Rios, criada em 1894, na Ilha Grande, indica a presença de capoeiras em suas instalações. Contudo, antes de sua criação, a repressão e prisão aos capoeiras já eram brutais desde os tempos do Império.

Após a Proclamação da República, Campos Sales foi nomeado Ministro da Justiça e João de Sampaio Ferraz, Chefe de Polícia. Este último, tornou-se notório pela perseguição aos denominados contraventores, muitos deles, como os capoeiras, suspeitos de apoio ao regime anterior. 

A repressão obteve o apoio e colaboração da imprensa e de parcelas de moradores da cidade do Rio de Janeiro. Os grupos de capoeira foram praticamente extintos nos dois primeiros anos de governo republicano, ainda que não houvesse a tipificação do crime de capoeiragem. Após passar pela Casa de Detenção, capoeiras, às dezenas, especialmente lideranças, cruzavam a Baía de Guanabara, por vezes em segredo, a caminho da Fortaleza de Santa Cruz, e de lá eram enviados para o Presídio em Fernando de Noronha. A intenção do degredo era a de desarticular a organização das chamadas maltas.

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Revista Illustrada, ano 1890, n. 575. Capa. Acervo Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

O novo Código Penal foi decretado em 1890. Procurava-se modernizar os sistemas jurídico-penal e carcerário. A pena privativa de liberdade e a recuperação do preso ganharam destaque. O Código aboliu penas de açoites e a de galés, as perpétuas, as coletivas e de morte, reduzindo-as a banimento, degredo e desterro. Interdição, suspeição, perda de emprego público e multa continuaram fazendo parte do código. Foram estabelecidas penas restritivas da liberdade individual, temporárias e que não deveriam exceder trinta anos: prisão celular, reclusão, prisão com trabalho obrigatório e prisão disciplinar. Nos primeiros anos republicanos foram criadas leis que puniam os contraventores, ou seja, aqueles que não tinham renda e trabalho. Dentre os contraventores, estavam os capoeiras. No capítulo XII, “Dos Mendigos e Ébrios”, os artigos definiam os mendigos como sendo aqueles que estando aptos para trabalhar, fingiam enfermidades e embriagavam-se. As penas variavam de cinco dias a três meses. No capítulo XIII, “Dos Vadios e Capoeiras“, os vadios eram descritos como aqueles que não trabalham, não tinham domicílio certo e subsistiam por ocupações ofensivas à moral e aos bons costumes. A pena era a de prisão por quinze a trinta dias. Os capoeiras (artigo 402) eram descritos como sendo aqueles que praticavam nas ruas e praças públicas “exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem”, que “andavam em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal”, eram submetidos à pena de prisão por dois a seis meses. A repressão era maior contra reincidentes (artigo 403) que poderiam ser recolhidos por 1 a 3 anos em colônias penais, em ilhas marítimas ou nas fronteiras do território. Essa classificação era fluida, uma vez que sob a categoria de “vadios” eram presos mendigos, alcóolatras e capoeiras.

Segundo o Código Penal, indivíduos optavam por uma forma de vida ou um modo de ser que não se coadunava às normas estabelecidas e, por isso, precisavam ser reprimidos. A mendicância e a falta de recursos próprios não eram associadas às condições sociais dos indivíduos que habitavam as ruas, mas a atos de contravenção. A lei colocava na prisão aqueles que vagavam e não tinham “meios de subsistência”, mas não penalizava os que tinham fortuna. Os denominados “mendigos, bêbados e vadios” eram culpados por terem escolhido a miséria e o vício, ou seja, uma afronta à moral e aos bons costumes. Já os capoeiras eram aqueles que optavam pela rebeldia e cumpriam penas um pouco maiores. Embora o novo Código Penal trouxesse maior proteção à integridade do corpo físico, a tortura e os maus tratos continuavam sendo a regra nos estabelecimentos penais. Apesar do texto da lei apontar para o papel reabilitador do cárcere, o tratamento dado aos presos reproduzia o do período escravista. Os capoeiras eram submetidos a castigos corporais, recebendo pranchadas com pedaços de madeira e chibatadas, eram forçados ao trabalho servil e transportados em porões de navios, sem higiene e privacidade. Em Fernando de Noronha, devido à distância, não havia controle sobre a violência do tratamento arbitrário e desumano que lhes era imposto e que estava muito longe dos ideais de recuperação do preso.

A Criação da Colônia Correcional de Dois Rios

Como não havia prisões que permitissem a recuperação pelo trabalho, o governo brasileiro autorizou, em 1894, a criação da Colônia Correcional de Dois Rios (CCDR), na Ilha Grande. Diferentemente das demais casas correcionais, esta tinha como objetivo reabilitar pelo trabalho, os chamados “contraventores”. As autoridades penais da época acreditavam na cientificidade do processo de recuperação e na existência de marcas biológicas que facilitariam o processo1.

A CCDR foi criada segundo regulamento extenso, que detalhava o tratamento a ser dado aos presos. Outras experiências do gênero foram criadas, como a Colônia Correcional de Bom Destino, em Sabará, Minas Gerais, em 1896, extinta em 1901, e a Colônia Correcional do Porto das Almas, na Ilha dos Porcos, São Paulo, em 1908, transferida para Taubaté em 1914.


1  No final do século XIX, médicos criminologistas voltavam-se para o estudo da natureza do réu, aproximando positivismo e racismo, criando formas de classificação do criminoso por características biológicas.

A CCDR, ao ser criada, recebeu homens, mulheres e crianças, processados como contraventores. No regulamento da Colônia, não havia norma relativa à separação de homens, mulheres e crianças, ou à separação dos condenados segundo a contravenção, apenas uma cláusula que propunha que fosse evitada a promiscuidade de sexos e idades.

Fotografia Aérea da Vila de Dois Rios. Apud Santos (2018, p. 26)
Fotografia aérea da Vila de Dois Rios, do livro “Quatro histórias, duas vilas, uma ilha”, de Myrian Sepúlveda dos Santos.

Em 1895, havia na Colônia apenas 12 mulheres e 5 homens, todos recebendo tratamento precário. A Colônia teve dificuldade de funcionamento devido à distância da cidade e foi fechada dois anos após ser inaugurada. Em 1903, contudo, a prisão foi reaberta, com novas instalações, e a transferência de 90 detentos, se tornando o principal destino dos contraventores. Em 1907, 139 homens e 110 mulheres duplicavam a lotação prevista, ocupando alojamentos precários, coletivos, e úmidos e sem quaisquer condições de higiene. Doenças derivadas de problemas respiratórios, gástricos, venéreos e infecciosos somavam-se ao trabalho árduo na lavoura e às chicotadas que permaneciam como castigo.

Dentre os enviados para Dois Rios, muitos eram deixados nas colônias correcionais até a morte. Entre 1903 e 1907 havia uma pequena maioria de homens, grande parte adultos, solteiros e pardos. Praticamente metade dos presos não sabia ler. As mulheres, nesse período, eram uma presença marcante, adjetivadas como “vagabundas”, e as reformas, sustentadas por ideais cientificistas, aumentaram o estigma sobre pretos e pobres, considerados mais propensos ao crime. Esses dois aspectos garantiram um encarceramento capaz de reprimir de forma violenta os menos privilegiados e sem recursos.

Após duas décadas de funcionamento, a Colônia continuou a tratar os contraventores de forma brutal, com superpopulação, condições humilhantes e degradantes. As frequentes declarações de óbito mostravam que muitos presos faleciam com poucos meses de internação. Morria-se de beribéri, disenteria, tuberculose, sífilis, doenças resultantes da má alimentação, da falta de higiene e dos maus-tratos. Em 1917, a Colônia, ocupando as mesmas edificações precárias reconstruídas em 1908, abrigou, pela primeira vez em sua história, mais de mil presos. Sua importância para as forças governamentais assumia grandes proporções. O aumento do número de internos coincidia com o aumento das manifestações sociais e políticas nas ruas da capital federal. Com o passar das décadas, contraventores conviviam com criminosos de todo tipo. O isolamento que a Ilha Grande representava passou a ser destinado aos considerados mais perigosos à ordem e com penas maiores a cumprir. Os tratamentos extremamente violentos garantiram a denominação de Ilha da Maldição.

A capoeiragem nas práticas de resistência

Dada a escassez de fontes, criminalização e estigmatização da capoeira, é difícil precisarmos os capoeiras na CCDR. A diminuição da quantidade de prisões de capoeiras no decorrer das décadas no século XX nos leva a supor que a capoeiragem, como organizada no século XIX, se perdeu. No entanto, integrada a outras gramáticas, no bamba ou no malandro, vemos sua permanência estigmatizada na prática da vadiagem. É possível conhecermos um pouco da repressão aos considerados “vadios” nos processos crimes dos condenados à reclusão na CCDR. Pires (2010) apresenta alguns exemplos: Guilherme Henrique Mendes e Péricles Francisco, condenados, em 1909, a dois anos; e Alfredo dos Santos Barbosa e Silviano de Barros, condenados a 15 meses, em 1915. Avaliando alguns dos últimos processos baseados nos artigos 402 e 403, vemos um caso de 1933, onde Rubem Lydio dos Santos cumpriu pena de 15 meses. Casos similares são os de Ivan de Almeida Bastos e João Bittencourt, condenados a 15 meses, em 1935, na CCDR.

A sobrevivência no interior das prisões era difícil, havia necessidade de se ter liderança entre os presos e de se manter o respeito dos guardas. Personagens conhecidos como Madame Satã ou Seu Júlio, que permaneceram por muitos anos presos na Ilha Grande, tinham conhecimento da capoeira. Embora Madame Satã não se considerasse capoeira, em suas memórias, cita malandros capoeiras que estiveram presos em Dois Rios, como Sete Coroas (que era baiano), Edgard e Americano. Mestre Celso Carvalho do Nascimento, em entrevista, nos falou de um primo de apelido Americano que esteve na Colônia e sabia tiririca, com movimentos parecidos com capoeira. Seria o mesmo Americano? De quando esteve na Penitenciária Central, Madame Satã cita Viola, considerado o rei da capoeira do porto.

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Satã, Cartola, Natalino e morador desconhecido, na Vila do Abraão. Fotografia de autor desconhecido. Acervo particular da família Orestes Ribeiro. Imagem do livro Quatro histórias, duas vilas, uma ilha, de Myrian Sepúlveda dos Santos.

Em momentos distintos, Madame Satã respondeu a 26 processos, condenado em 10 deles a 27 anos e 8 meses de prisão, cumprindo quase toda a pena, de forma intercalada, em Dois Rios. Após ter sua liberdade, continuou morando na Ilha Grande, faleceu e foi sepultado na Vila do Abraão, em 1976.

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Julio de Almeida chegou a Dois Rios, em 1958, permanecendo na Ilha até seu falecimento, em 2018, mesmo após terminar sua pena, em 2014. Em 2012, Seu Julio, como era conhecido, tinha 82 anos e relatou seu contato com capoeira no Rio de Janeiro, no quartel e na Casa de Correção. Quando viveu no morro da Catacumba, praticava capoeira, corrida e boxe com “nortistas” (baianos) na Lagoa Rodrigo de Freitas, especialmente com um amigo, conhecido como Boa Viagem, que também cumpriu pena em Dois Rios. Seu Julio afirmava que na Colônia havia a tiririca: “a capoeira e a tiririca quer dizer uma coisa só, depende muito do professor e (…) a ligeireza, a instrução (…) que era diferente de capoeira”. Seu relato dá conta de que havia presos mais velhos que sabiam movimentos de luta e passavam para os mais novos, mas evitavam chamar de capoeira.

Julio de Almeida chegou na Colônia Agrícola do Distrito Federal (CADF)/IG com 27 anos. Em 1963, retornou com uma pena de mais de 60 anos. Em 1994, o Instituto Penal Cândido Mendes foi desativado e Julio continuou a morar na Vila Dois Rios, com o compromisso das idas periódicas ao juiz

Myrian Sepúlveda dos Santos é socióloga, professora titular no ICS/UERJ. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0342378193333117.
Gabriel da Silva Vidal Cid sociólogo, bolsista FAPERJ de pós-doutorado no PPICIS/UERJ. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6389147860157195.
Myrian e Gabriel são coordenadores do grupo de pesquisa Arte, Cultura e Poder. Link: https://www.arteculturaepoder.com

Maiores informações:

Bretas, Marcos Luís. “What eyes can’t see”. In. The birth of the penitentiary in Latin America: essays on criminology, prison reform, and social control, 1830-1940, Austin: University of Texas; Press: Institute of Latin American Studies, 1996, p.104

Cid, Gabriel da Silva Vidal. A capoeira no Rio de Janeiro 1910 – 1950 : narrativas de Mestre Celso. Mopheus, Ano 02 – número 03, Número especial Memória Hoje, 2003.

Dias, Luiz Sérgio. Da “Turma da Lira” ao Cafajeste. A sobrevivência da capoeira no Rio de Janeiro na Primeira República. Tese, UFRJ, Rio de Janeiro, 2000.

Holloway, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro; repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

Lussac. Ricardo Martins Porto. Entre o crime e o esporte: a capoeira em impressos no Rio de Janeiro, 1890-1960. Tese. UERJ, 2016.

Mattos, Romulo Costa. A construção da memória sobre Sete Coroas, o “criminoso” mais famoso da Primeira República. Anais do XV Encontro Regional de História da ANPUH-RIO. 2012.

Memórias de Madame Satã. Rio de Janeiro: Lidador, 1972.

Pires, Antônio Liberac Cardoso Simões. Culturas Circulares: A Formação Histórica da Capoeira Contemporânea no Rio de Janeiro. Salvador: Fundação Jair Moura, 2010.

Santos, Myrian Sepúlveda dos. Os porões da República: A barbárie nas Prisões da Ilha Grande: 1894-1945. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

Santos, Myrian Sepúlveda dos. Quatro histórias, duas vilas, uma ilha. Rio de Janeiro: Garamond, 2018.


Nosso muito obrigado aos autores deste interessante artigo:

Por Myrian Sepúlveda dos Santos e Gabriel da Silva Vidal Cid.

Fonte: https://capoeirahistory.com

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