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A mulher e sua relação com a Arte da Capoeira

Por: Jaqueline Machado*

A mulher e sua relação com a Arte da Capoeira

Quando pesquisamos sobre o tema “Mulher e Capoeira” é surpreendente perceber o quão pouco de material temos disponível. E isso se deve principalmente por causa de paradigmas do passado, vestígios de uma sociedade impregnada de pré-conceitos sobre o papel da mulher na sociedade. De maneira geral, a mulher continua sendo descrita a partir de uma visão masculina, provavelmente por causa do aspecto patriarcal em que o mundo foi moldado, onde as histórias das mulheres são deixadas em segundo plano, com pouco ou nenhuma participação, sempre à margem dos homens, estes sim, retratados como grandes heróis e capazes de feitos impressionantes para a humanidade. 

Acontece que o mundo vêm mudando, devagar é verdade, mas já é notável que o papel da mulher na sociedade têm adquirido novas variações e uma das razões para essas alterações pode ser explicada pelo fato de estarmos mudando nossa percepção sobre o que nos cerca, pois quando mudamos a maneira de pensar a respeito do mundo, somos capazes de alterar a maneira como agimos e percebemos tudo ao nosso redor. E dentro desse contexto podemos destacar que essas mudanças atingem também o universo capoeirístico, tendo em vista que a capoeira é formada por pessoas e é através da evolução dessas que é possível modificar os pensamentos, outrora, tidos como normais na sociedade. Mas para falar da mulher na capoeira é preciso voltar um pouco no tempo e mencionar como elas eram tratadas quando relacionadas à prática de exercícios e de atividades esportivas. E, nesse sentido, a defasagem histórica da mulher que resultou, na atualidade, de sua menor participação em tais modalidades.

No século XIX por exemplo, com a chegada da Educação Física no Brasil foi determinado que as mulheres deveriam praticar algum tipo de ginástica, pois se tornariam mais fortes e sadias e teriam maiores chances de gerarem filhos saudáveis, mas a prática ficaria restrita a trabalhos manuais, jogos infantis, ginástica educativa e atividades consideradas pouco agressivas. Esportes como futebol, polo aquático, rúgbi, baseball e todo e qualquer tipo de luta, entre outros, eram totalmente proibidos. Foi somente na década de 60, com a luta feminista, que a situação da mulher começou a mudar, tanto no âmbito familiar, como no profissional. Com o mundo mudando, a sociedade se viu forçada a rever a maneira de agir e tratar o assunto e em 1979, o Conselho Nacional dos Desportos foi obrigado a liberar a prática de artes marciais para as mulheres, principalmente após grande polêmica gerada pela participação de atletas mulheres que forjaram sua identidade para competir em modalidades até então proibidas e mesmo assim conseguiram sair vencedoras. Um ato de rebeldia que como consequência possibilitou outras mulheres sonharem com igualdade de oportunidades nos esportes. 

As mulheres de hoje se mostram tão competitivas quanto os homens e capazes também de realizar grandes feitos nos esportes. A participação delas, no entanto, ainda é constituída de muito preconceito. Mas em uma sociedade pautada principalmente por valores masculinos, é perceptível que cada vez mais a mulher vem ganhando destaque, inclusive consolidando seu espaço nos diversos desportos existentes.

No caso da Capoeira o preconceito advém de uma tradição masculina em sua prática e também devido a sua ambiguidade que da mesma forma que torna a capoeira uma rica manifestação cultural, também a reduz a luta marcial. Esse preconceito não está relacionado apenas ao fato da mulher jogar capoeira, mas também de tocar instrumentos, cantar, etc. Em toda a história da capoeira, a mulher sempre foi subjugada no que tange à conquista de seus direitos fundamentais de participação, mas a participação feminina tem obtido resultados expressivos e espera-se que com a mudança de pensamento da sociedade, a maior inserção de mulheres no mercado de trabalho e a presença constante delas em movimentos culturais e demais segmentos, ocorra também a diminuição do preconceito na prática de esportes, incluindo a capoeira.

Quando falamos sobre a presença feminina nos esportes, discutimos não somente o papel da inclusão social, mas a valorização da mulher em sua plenitude. A importância da mulher na capoeira por exemplo, vai muito além da graça e beleza que elas proporcionam a essa manifestação. A mulher sendo respeitada e valorizada numa roda de capoeira, garante que esse espaço seja cada vez mais um espaço democrático, onde a diversidade e a convivência harmoniosa entre os diferentes, significam um exemplo de tolerância e convívio social nesse mundo tão cheio de preconceitos e discriminações. E esse é um dos ensinamentos mais importantes que a capoeira pode oferecer às sociedades contemporâneas. Além disso, a mulher é fundamental no trabalho de organização da capoeira. Não podemos pensar numa academia ou em um grupo de capoeira, em que as mulheres não ocupem um papel estratégico nessa função. Talvez isso se dê pelo fato da mulher possuir essa capacidade de organização em um grau mais desenvolvido que os homens ou talvez porque esse papel tenha sido desempenhado tanto por elas que a experiência as fizeram mais preparadas para tal, não sei.  que podemos afirmar com certeza é que sem a presença das mesmas, a maior parte dos grupos de capoeira de hoje em dia não sobreviveria por muito tempo.

A cada dia as mulheres têm conquistado mais e mais espaço nesse universo que durante muito tempo foi predominantemente um espaço masculino. Já temos muitas mulheres com o título de “mestre” ou “mestra” de capoeira, como queiram. E são mulheres muito respeitadas no meio, que realizam trabalhos importantes e reconhecidos, apesar de ainda haver resistências por parte de alguns setores mais conservadores da capoeira. O que na opinião desta que escreve, é questão de tempo para que também seja superado. É bom lembrar que apesar das dificuldades do passado, existiram muitas mulheres que deixaram seus nomes gravados na história da capoeiragem com histórias impressionantes de valentia e destreza, como por exemplo: Dandara, Teresa de Benguela, Salomé, Catu, Chicão, Angélica Endiabrada, Almerinda, Menininha, Massú, entre muitas outras mulheres. A maioria das grandes referências femininas de força, garra e coragem retratadas na história remetem-nos à década de 1940, quando se destacaram as famosas “Maria 12 homens”, “Calça Rala”, “Satanás”, “Nega Didi” e “Maria Pára o Bonde”, mulheres essas que se fizeram passar por homens para poderem conviver no meio da malandragem das rodas de capoeira. Também podemos citar personagens lendárias como Rosa Palmeirão que serviu de inspiração para Jorge Amado no romance Mar Morto.

Há vários mitos em torno dessas mulheres que fizeram de sua honra uma batalha de vida, tornando-se modelos de coragem e determinação. E mito ou não, é possível nos inspirarmos nas histórias de valentia, dedicação e superação, pois acima de tudo, essas mulheres buscaram seu espaço com muita astúcia e malícia e abriram caminho para que nós hoje em dia, possamos estar presentes em todos os âmbitos da capoeira. Imaginarmos os confrontos com a polícia, as brigas com arma branca, facas e navalhas e as discussões com valentões da época e percebemos  a importância da luta e da crença de que o espaço é para todos, homens, mulheres e crianças.

Com a desagregação do padrão de domesticidade feminina, este frágil modelo antes tão comum, deu espaço para novos ideias, muito mais adequados ao conceito de “mulher ativa”, que foi estabelecido já no início desse século. E embora ainda não haja mulheres suficientes presentes na capoeira, bem como em atividades físicas no geral, é possível afirmar que as que estão inseridas nesse contexto representam muito bem o gênero feminino, pois seja na Capoeira ou em qualquer outro esporte, a mulher têm demonstrado sua capacidade de entrega, provando seu valor para sociedade e acima de tudo adquirindo cada vez mais espaço na cultura como um todo. Em busca de liberdade, seja de expressão corporal ou de direitos e deveres, são nessas mulheres que devemos nos inspirar a continuar lutar por um meio mais justo e igualitário.

Me orgulha poder continuar trilhando o caminho que essas mulheres, tão duramente, percorreram no passado para que nós pudéssemos estar onde estamos, seja na capoeira ou na sociedade. Sabemos que ainda há muito a ser feito até que as mulheres sejam reconhecidas como iguais e todos tenham as mesmas liberdades de escolha. Mas o importante é que estamos aqui, viemos para ficar e iremos lutar como nossas ancestrais para que no futuro toda menina que tenha vontade, possa estar numa roda de capoeira e se sentir acolhida e respeitada.

*Professora Tempestade (Grupo Geração Capoeira). Biomédica.

Integrante do Coletivo Mulheres da Garoa

 E-mail: [email protected]

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